Postado em 02/12/2009
Roteiro de cinema no Brasil
Desde 1995, quando teve início a chamada retomada do cinema brasileiro, a cinematografia nacional vem garantindo presença constante nas telonas de todo o país. O fato reacendeu as discussões acerca das características e qualidades da nossa produção, bem como de nossos diretores, atores, editores e também dos roteiristas – figuras que nem sempre recebem atenção do público. Por esse motivo, a Revista E convidou o crítico de cinema Luciano Ramos e o professor de história do cinema brasileiro Wagner Pinheiro Pereira para escreverem sobre um dos primeiros estágios de uma produção: o roteiro
O poder do roteiro de audiovisual
por Wagner Pinheiro Pereira
A grande maioria das pessoas nunca teve a oportunidade de folhear um roteiro, mas, certamente, se indagadas sobre o que seria isso, poucas não arriscariam um palpite. Provavelmente, o maior equívoco nas respostas seria considerá-lo a história de um filme. O roteiro conta a história de um filme, mas não é a própria história. Esta é a definição de argumento, que, desenvolvido na etapa inicial da pré-produção (pitching), apresenta a ideia aos produtores, executivos de um estúdio de cinema ou emissora de televisão, ou outras pessoas influentes, que, com o roteirista, passam a discutir o conceito sobre o qual se desenvolverá uma série de personagens e de acontecimentos – que constituirão, futuramente, o roteiro.
O roteiro de audiovisual é, portanto, um documento escrito que desenvolve uma história e indica como deve realizar-se uma obra para um meio – como o cinema e a televisão – que transmite mensagens por meio de sons e imagens, expressas no contexto da estrutura dramática. Luiz Carlos Maciel, em O Poder do Clímax, lembra que os norte-americanos o chamam de screenplay e os franceses de scenario – respectivamente “peça para a tela” e “conjunto de cenas”. Na língua portuguesa a palavra roteiro designa uma via em rota a ser seguida até o seu objetivo final.
Em linhas gerais, o roteiro esboça uma pré-visualização da futura obra audiovisual e define o enredo, dando uma perspectiva ao diretor do que e como pode ser filmado, assim como aponta soluções para todos os problemas técnicos e artísticos que possam surgir. Por meio do roteiro escrito há a possibilidade de calcular quantos atores, cenários, equipamentos e estúdios serão necessários e o financiamento para todos estes elementos, o que permite minimizar os riscos de investimentos. Ele não se assemelha a uma obra literária, exceto quando se trata de um roteiro literário, onde o roteirista apenas desenvolve as ações e as falas. Já as indicações técnicas – posicionamento de câmeras, luzes, cortes, efeitos audiovisuais – são descritas no roteiro técnico, numa fase conduzida pelo cineasta, que tenta fundir esses dois tipos de roteiros.
De acordo com Syd Field, roteirista, consultor de Hollywood e autor do Manual do Roteiro, um bom roteiro apresenta três partes essenciais que precisam estar bem delineadas: personagens, estrutura e enredo. Sendo este dividido em: parte um, dedicada à introdução da obra, delimitação das personagens e suas ações, assim como a preparação para o primeiro “ponto de virada” (turning point), de onde se passa para a parte dois: o desenvolvimento do filme, a confrontação e a manutenção do suspense da trama. Por fim, a parte três, o desfecho da história, que define o significado e mensagem da obra. Lembramos, contudo, que se trata de um modelo de “roteiro clássico”, sobre o qual são feitas inúmeras variações, mas que segue essa regra básica com certa regularidade.
A figura do roteirista de audiovisual e o futuro dos roteiros – As origens da figura do roteirista remontam aos dramaturgos do teatro clássico grego, ou ainda aos primeiros contadores de história, criadores de mitos de tempos imemoriais. No entanto, foi no final do século 19, com o nascimento do cinema, que uma fascinante forma de contar histórias foi inventada e uma nova profissão começou a se configurar.
Durante o período do cinema mudo não havia propriamente roteiristas de cinema, apenas escritores de gags cômicas, adaptadores literários, continuístas e letreiristas. Este cenário mudou com o advento do cinema falado e sonoro, em 1927. Os filmes realizados a partir de O Cantor de Jazz demandaram a criação de diálogos para os seus atores e ênfase nas motivações psicológicas das personagens nos enredos. Para tal tarefa, Hollywood contou com o trabalho de uma série de escritores vindos dos espetáculos da Broadway e dos campos da literatura e do jornalismo, tais como William Faulkner, F. Scott Fitzgerald, Bertolt Brecht e Thomas Mann.
A partir da década de 1930, a profissão de roteirista passou a ganhar forma e o roteiro tornou-se a peça-chave da indústria de cinema, sendo nas palavras de Giba Assis Brasil, “uma utopia criativa a serviço de um objeto fundamentalmente econômico”. Afinal, embora os aspectos artísticos possam ser decisivos a priori, as possibilidades econômicas se impõem na hora da aprovação de um projeto. Neste sentido, os estúdios de Hollywood sentiram necessidade de elaborar uma pesquisa de mercado que assegurasse ao filme uma boa recepção de público, ou seja, na concepção de seus produtores, o filme é pensado como um produto comercial rentável e não como uma obra de arte.
Apesar da gradual relevância do trabalho do roteirista, este era ainda marginalizado. A criação do Screen Writers Guild, em 1933, possibilitou-lhes reivindicar melhores condições de trabalho e uma parcela maior sobre os lucros obtidos por Hollywood, que somente foi alcançada em 1941, quando, por meio de um acordo com os estúdios, garantiu-se um piso salarial e a concessão de créditos passou para a jurisdição da associação.
No cenário da Guerra Fria, o clima de histeria contra o “perigo comunista”, estimulado pelo senador Joseph McCarthy, dominou Hollywood. O House Un-American Activities Committee (HUAC) começou a investigar a vida e as atividades de uma série de pessoas, passando a acusar roteiristas, como John Howard Lawson, Dalton Trumbo, Sam Ornitz, Lester Cole, Ring Lardner, Alvah Bessie e Albert Maltz, de serem comunistas. Muitos profissionais tiveram de regressar aos seus países, trabalhar com nomes falsos ou fazer parcerias com roteiristas de fachada. Em 1954, o Screen Writers Guild fundiu-se ao Radio Writers Guild e ao Television Writers Guild. A nova associação passou a se chamar Writers Guild of America e os roteiristas tornaram-se uma classe profissional respeitada em Hollywood.
Já no Brasil, a profissão de roteirista foi regulamentada em 1978, com a publicação da Lei nº 6.533 e do Decreto nº 82.385, que dispõe sobre a regulamentação das profissões de artista e de técnico em espetáculos de diversões, e define a profissão do roteirista cinematográfico. Em 1979, a Lei 6.615 e seu Decreto 84.134/79 regulamentam a profissão do roteirista de televisão e de rádio. A nova CBO – Classificação Brasileira de Ocupações –, publicada em 1994, tem como família 2615 os profissionais da escrita e há, como subdivisão, o item “2615-05 – autor-roteirista”.
![]() |
“(...) no caso brasileiro, os roteiristas poderiam investir mais em vender suas histórias para os produtores, em vez de ser apenas contratados para escrever sobre argumentos alheios”
Brasil: verdade ou ficção?
por Luciano Ramos
Pela quinta vez consecutiva, o filme escolhido para representar o Brasil na corrida pelo Oscar de melhor filme estrangeiro se baseia em fatos verdadeiros. Salve Geral, de Sergio Rezende, reconstitui o ataque do crime organizado que paralisou São Paulo, em maio de 2006. No ano anterior concorria Última Parada 174, de Bruno Barreto, sobre um sequestrador capturando a atenção do Rio e do país inteiro em 2000, no dia dos namorados.
Antes dessa obra de Barreto, as fichas foram para O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias, que retrata o ano de 1970, feliz pelo tricampeonato brasileiro e desastroso pela ditadura, conforme as lembranças do seu diretor Cao Hamburger. Em 2007, Marcelo Gomes evocava o sertão nordestino durante a Segunda Guerra em Cinema, Aspirinas e Urubus e, um ano antes, com Dois Filhos de Francisco, Breno Silveira narrava a bem-sucedida trajetória de uma dupla sertaneja.
Talvez a circunstância de todos esses roteiros terem raízes em fatos documentados não indique uma tendência da cinematografia brasileira como um todo. Aponta, porém, para a ideia de que as peças de ficção ganhem credibilidade com o respaldo da “vida real”, tornando-se tão respeitáveis quanto os documentários − com a vantagem de serem interpretadas por atores profissionais, seguindo roteiros capazes de atribuir dramaticidade à exposição da história. Como se as crenças, as posições ideológicas e até as fantasias dos realizadores pudessem ser referendadas por aqueles acontecimentos situados aquém da imaginação. Em outras palavras, assim como os documentários fazem asserções sobre o mundo, nas entrelinhas de seus roteiros os diretores daqueles “docudramas” veiculam valores, conceitos e interpretações acerca do país. Seu alcance cultural, portanto, seria maior se espectadores dispusessem de mais ferramentas para a análise desses roteiros, como, aliás, já acontece com o documentário. Como exercício nessa direção, tomamos dois lançamentos do gênero, incluídos entre os quatro filmes de maior sucesso de público em 2009.
Lançado em outubro de 2009, Salve Geral atingiu o quarto lugar entre as maiores bilheterias do ano, com quase 265 mil ingressos vendidos. A história é toda narrada a partir do ponto de vista de uma mãe que tem o filho na cadeia. Para diferenciar essa personagem de um tipo popular, ela é desenhada como uma professora de piano, interpretada pela estrela global Andréa Beltrão. O filme se inicia com ela vendendo o instrumento, o que indica uma queda na escala social. Para ajudar o filho preso, quase sem querer, ela acaba se envolvendo com uma advogada ligada ao crime organizado. Este drama corre paralelo com o dos presidiários e autoridades judiciárias ao radicalizarem as suas contradições.
Quem conhece os demais docudramas escritos e dirigidos por Rezende, como Zuzu Angel (2006), concordará que esse é um dos traços de estilo do cineasta: um conflito individual servindo de fio condutor para a exposição de momentos históricos nos quais se insere, bem como para as ideias e visões do autor. Nesse sentido, ele surpreende ao destacar o comportamento ético dos presos, ainda que seja uma ética da violência. Alguns deles até praticam meditação e mantêm bibliotecas nas celas. Já os policiais, quando não são corruptos, mostram-se incompetentes. E ao contrário do que, na vida real, foi declarado à imprensa pelas autoridades, o filme revela que os conflitos só cessaram após uma negociação entre as partes.
Se importantes obras anteriores sobre o tema, como Linha de Passe (2008), de Walter Salles e Daniela Thomas, e Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund, repisavam no nexo causal entre a pobreza e a criminalidade, esta acrescenta a noção de que todas as camadas da sociedade são responsáveis por ela. E entrega à personagem de Andréa Beltrão a incumbência de garantir uma identificação plena do espectador com a protagonista e, por extensão, com o filho dela e tudo o que ele representa por trás das grades. Por isso, o roteiro tem o cuidado de fazer com que o envolvimento dela com o “partido” tenha sido apenas com uma liderança que fora eliminada semanas antes dos acontecimentos de maio. Enfim, é demasiado peso para uma figura que deveria ser mero “fio condutor”. Em artigo na revista Piauí (2009, #37), Eduardo Escorel afirma que essa estratégia tem a função de “eliminar qualquer ambiguidade”, comparando Salve Geral a Carandiru: “São filmes que procuram causar impacto cuidando, ao mesmo tempo, de apaziguar o espectador”.
Com outra diretriz de roteiro, em 2009 destaca-se Jean Charles − terceiro lugar no ranking brasileiro de bilheteria, com 270 mil espectadores. Conta a história do trabalhador mineiro assassinado por policiais no metrô de Londres, após ser confundido com um terrorista. O filme mostra que o incidente foi resultado de uma pista falsa que a polícia vinha seguindo, em meio à paranoia coletiva provocada pelos atentados que haviam acontecido na cidade. Para atribuir dramaticidade à narrativa, o diretor e roteirista Henrique Goldman se concentrou na luta do brasileiro para se estabelecer profissionalmente como eletricista na capital britânica. Nas semanas que antecederam o seu fim, ele tinha introduzido uma prima no cotidiano londrino, ajudando-a a superar a insegurança. Essa personagem vale como “escada”, ou seja, uma coadjuvante com quem ele pode dialogar e revelar seus pensamentos. E, principalmente, exibir os seus sentimentos altruístas − ainda que não fosse propriamente “um santo”, como a habilidade do ator Selton Mello deixou claro, ampliando assim a sua identificação com a plateia.
![]() |
“Com outra diretriz de roteiro, em 2009 destaca-se Jean Charles − terceiro lugar no ranking brasileiro de bilheteria, com 270 mil espectadores. Conta a história do trabalhador mineiro assassinado por policiais no metrô de Londres (...)”