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REVISTA E - PORTAL SESCSP

 

 


Toda vez que um crime cometido por um menor de idade ganha os noticiários da TV e as manchetes dos jornais, a questão da redução da maioridade penal - hoje estabelecida em 18 anos - volta a circular na sociedade. De um lado, há os que defendem penas mais rígidas que determinem a jovens, e muitas vezes crianças, pagarem por seus delitos da mesma forma que os adultos. De outro, há o time daqueles que afirmam que o ponto principal é anterior, está na educação. Em artigos exclusivos, o advogado Ariel de Castro Alves, coordenador do Movimento Nacional de Direitos Humanos, e a psicóloga Nancy Cardia, membro do Núcleo de Estudos da Violência (CEV) da Universidade de São Paulo (USP) debatem o assunto.

 

 

Educar para não encarcerar


por Ariel de Castro Alves

 

 

A sociedade atônita com o problema da violência, que não mais atinge apenas as grandes metrópoles mas também as pequenas cidades - antes consideradas paraísos de tranqüilidade e qualidade de vida -, muitas vezes clama pelo aumento de penas, redução da maioridade penal, pena de morte, prisão perpétua, entre outras ilusórias "soluções" para a crescente criminalidade que aflige todos os cidadãos. Porém, não se vê o mesmo clamor e muito menos mobilização em defesa da inclusão de crianças de 0 a 3 anos na educação infantil (creches), nem das crianças e adolescentes num ensino fundamental e médio de qualidade, muito menos dos jovens nas universidades, preferencialmente públicas. O ciclo de exclusão e marginalização começa na infância. Para garantir a inclusão social e econômica da criança e do jovem, o Estado, a família e a sociedade devem priorizar o atendimento integral do período do pré-natal até o primeiro emprego. No entanto, não estamos nesse caminho, apesar de ele estar trilhado, desde 1988, pela Constituição Federal brasileira e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 1990).
O Brasil tem 11,5 milhões de crianças na faixa etária de 0 a 3 anos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mas só 13% delas estão freqüentando creches (ensino infantil), de acordo com dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). Além de ser um direito de mães e pais previsto na legislação trabalhista, a educação infantil é um direito fundamental da criança, conforme o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). O ensino infantil é a base do aprendizado e do desenvolvimento da criança.
Com relação ao ensino fundamental e médio, o país tem evoluído consideravelmente no que se refere ao aumento de vagas. Como exemplo, segundo o IBGE, 81% dos adolescentes com idade entre 15 e 17 anos freqüentam a escola. Porém, a qualidade do ensino e a grave situação social de muitos alunos geram enormes dificuldades de aprendizado, defasagem e evasão escolar. Uma pesquisa da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), feita em 2005 nos 26 estados brasileiros, mostrou que muitas vezes a escola mais exclui do que inclui. Conforme o levantamento, 21% das crianças e adolescentes que estavam fora da escola já tinham abandonado o ensino anteriormente. Outros 14% já tinham deixado os estudos por três ou mais vezes. No que diz respeito ao ensino universitário, apenas 31% dos jovens com idade entre 18 e 24 anos têm possibilidade de acesso à universidade.
Do outro lado do colapso educacional no país, temos as prisões. Manter alguém na prisão é a forma mais cara de tornar a pessoa pior. O colapso prisional é reflexo da crise educacional e social que vive o Brasil. Quanto menos escolas e universidades são construídas hoje, mais presídios terão de ser construídos. Primeiro temos de considerar que é uma grande contradição prender alguém para ensinar essa pessoa a viver em liberdade. Formalmente, o sistema prisional tem a finalidade de privar temporariamente da liberdade uma pessoa que, em razão de sua conduta e dos crimes cometidos, gera intranqüilidade social, apresenta periculosidade e representa risco à ordem pública. Essa pessoa precisa ser contida para ser reeducada e ressocializada através do estudo, do trabalho, da religião, do acompanhamento de saúde e psicológico e da compreensão da existência de leis e regras de convívio social. No entanto, ao invés de cumprir com essas finalidades, a maioria dos presídios e boa parte das unidades de internação de adolescentes infratores são verdadeiras faculdades do crime. No Brasil, aproximadamente 340 mil pessoas adultas estão custodiadas em prisões. São 15 mil os adolescentes que estão cumprindo medida socioeducativa de internação (privação de liberdade). Os dados educacionais desses jovens mostram bem a relação falta de educação/crime. Entre os adolescentes internados em 366 unidades brasileiras, 51% não freqüentavam a escola, 90% nem sequer concluíram o ensino fundamental e 85% eram usuários de drogas. Várias pesquisas já feitas com internos da Fundação Casa (ex-Febem de São Paulo) mostraram que os adolescentes mantidos lá são provenientes dos bairros com maior população infanto-juvenil, mas com menos oportunidades - locais onde faltam creches, escolas, postos de saúde, áreas de lazer, cultura, esportes etc. Onde o jovem vai procurar emprego no comércio, na indústria, e nunca há vaga, mas na boca de fumo sempre existe. Vivem em contextos violentos, sem oportunidades e perspectivas, exceto o crime.
O custo mensal aos cofres públicos de cada pessoa privada de liberdade, em média, está em torno de R$ 1.100 por mês no sistema adulto, e R$ 2.300 mensais para cada adolescente internado. Por outro lado, estudos já feitos pelo Instituto Latino-Americano para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (Ilanud) mostraram que uma criança na escola pública custa, em média, R$ 700 por ano ao Estado. Além disso, o Brasil gasta 10% do Produto Interno Bruto (PIB) com segurança pública e privada, de acordo com estudos realizados no começo da década pela Fundação Getulio Vargas (FGV). No entanto, investe menos de 4% do PIB em educação, conforme o próprio Ministério da Educação.
Para reverter o aumento da criminalidade, em vez de investir na educação e em políticas sociais, alguns querem investir mais em prisões. Nesse contexto, muito tem se falado da redução da idade penal, como medida contra a criminalidade. No entanto, destaco cinco pontos, entre muitos, para ser observados:
1) o Brasil tem aproximadamente 60 milhões de crianças e adolescentes, 21 milhões vivem abaixo da linha de pobreza, sem direitos básicos. São 25 milhões de pessoas entre 12 e 16 anos no país, dos quais apenas 0,2% é que cometeram atos infracionais (crimes);
2) crianças e adolescentes são mais vítimas da violência do que autores. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), 16 crianças e adolescentes são assassinados por dia no Brasil. Um estudo feito pelo Instituto de Segurança e Cidadania mostrou que enquanto os adolescentes cometem 9% dos crimes no Rio de Janeiro, 90% dos crimes são praticados por adultos contra crianças e adolescentes. Um levantamento da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, divulgado no final de 2003, mostrou que os adolescentes são responsáveis por apenas 1% dos homicídios praticados no estado e por menos de 4% do total de crimes;
3) a reincidência nos presídios brasileiros chega a 70%. No sistema de internação de adolescentes, apesar dos problemas, a reincidência fica em torno de 30%. Porém, em experiências de correta aplicação das medidas socioeducativas, mesmo de internação, a reincidência não ultrapassa 5%, como nos exemplos dos trabalhos desenvolvidos em São Carlos (SP), em Florianópolis (SC) e em algumas cidades do Rio Grande do Sul;
4) outro argumento dos que defendem o rebaixamento da idade penal é que adultos utilizam as crianças e adolescentes para a execução de crimes. Nesses casos, temos de punir mais severamente quem os utiliza e não quem é utilizado/explorado. Se também levarmos em consideração esse argumento, a idade penal seria reduzida para 16 anos. O problema não se resolveria! Certamente, proporiam a redução para 14, 12, 10, 8 e assim por diante, sem nenhum êxito. Pelo contrário, teríamos criminosos cada vez mais precoces;
5) alguns países que reduziram a idade penal há quatro anos, como a Espanha e a Alemanha, verificaram um aumento da criminalidade entre os adolescentes e acabaram voltando a estabelecer a idade penal em 18 anos e, ainda, passaram a oferecer um tratamento especial, com medidas socioeducativas, aos jovens de 18 a 21 anos.
Diante disso tudo, será que é melhor aplicar recursos em prisões ou em educação? É para o leitor refletir!

 

 

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Ariel de Castro Alves é advogado, coordenador do Movimento Nacional de Direitos Humanos,
secretário-geral do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) e membro
do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda)

 

 


Prevenindo a violência juvenil: reduzir a maioridade penal funciona?

 

 

por Nancy Cardia

 

 

A cada novo episódio de violência, com forte repercussão na mídia, envolvendo jovens menores de idade, quer como suspeitos quer como agressores confessos, ressurge na sociedade o debate sobre como punir esses jovens. Dois grandes temas reaparecem nesses momentos: o questionamento da eficácia das medidas socioeducativas, contidas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e a definição da idade a partir da qual o adolescente pode responder criminalmente por seus atos, como um adulto.
Embutida nessa discussão está a preocupação legítima da sociedade em garantir que esses jovens não cometam mais violência e evitar que outros jovens sigam pelo mesmo caminho. À medida que cresce a violência e o medo dentro da sociedade, cresce também a sensação de que, para ser eficaz, a punição tem de ser mais severa que no passado. Isso porque o crescimento da violência é entendido como sinal de que as penas existentes não são mais eficazes, isto é, não exercem o papel de dissuadir quer da reincidência de jovens que delinqüem quer do ingresso de novos jovens na delinqüência.
O apelo a medidas mais severas e a penas mais duras é alimentado por outra percepção: a de que os jovens são responsáveis por grande parte do crescimento da violência. Esse seria mais um indicador do fracasso das políticas de prevenção e de controle da violência. Também presente em parte da opinião pública está a percepção de que as medidas socioeducativas previstas no ECA estariam baseadas em uma visão da criança e do adolescente como indivíduos que necessitam de proteção e que têm capacidade de recuperação/regeneração que não mais se aplicaria às crianças de hoje. Os jovens e as crianças de hoje amadureceriam mais cedo do que no passado - tanto que, quando se desviam das normas, o fazem de modo menos eventual que no passado, ou seja, já estão tão envolvidos com o delito que a recuperação é questionável. O amadurecimento mais rápido e a existência de condições de decisão consciente entre os jovens são tão verdadeiros que hoje os jovens podem votar já a partir dos 16 anos de idade. Outro argumento que circula com freqüência é que as medidas socioeducativas, com sua ênfase na reabilitação, estariam promovendo a impunidade que, por sua vez, alimentaria o comportamento de adultos de recrutar adolescentes para perpetrar delitos graves - colocando, de fato, mais jovens em situação de risco em vez de servir de instrumento de proteção.
Essas percepções, argumentos e idéias circulam por nossa sociedade sem o contraponto de informações e dados objetivos. Sofremos de uma ausência de dados objetivos que nos permitam avaliar qual o efetivo envolvimento de jovens com crimes violentos, não só como agressores mas também como vítimas. Tampouco sabemos se esse envolvimento vem crescendo e, se cresce, em quais tipos de delito ou qual o grau de reincidência, e menos ainda qual a freqüência com que jovens participam de delitos junto com adultos. O mesmo ocorre com o perfil de vitimização não fatal de jovens: desconhecemos que tipo de violência sofrem, bem como quem são seus agressores: outros jovens ou adultos?
Soma-se a essa falta de informações a ausência de avaliações científicas sobre a eficácia das diferentes medidas socioeducativas - como o ECA - aplicadas aos diferentes tipos de delito, nos diferentes estados da federação. Ou seja, não sabemos se essas medidas são ou não eficazes, quer em relação aos jovens que recebem as medidas (se diminuem ou não a reincidência), quer em relação aos jovens em geral (se servem como dissuasores). Mais crítico ainda para um debate informado é identificar se essas medidas fracassam ou não e quais seriam as causas desse fracasso: descompasso entre as medidas e os jovens? Aplicação inadequada? Ambos?
O que justifica que se trate jovens infratores de modo diferente de adultos infratores? Os estudos sobre o processo de desenvolvimento dos adolescentes têm reiterado que não se pode confundir amadurecimento físico com amadurecimento emocional, e daí inferir competência emocional e cognitiva, e plena condição de responsabilização. Isso não significa não punir jovens infratores, mas sim que essa punição não deve ser uma cópia da punição atribuída a um adulto porque há a probabilidade de existirem fortes atenuantes. Alem disso, há entre os jovens grande potencial de regeneração e de recuperação, se a eles forem dadas condições adequadas para se recuperar.
Nos Estados Unidos, onde há forte e longa tradição de estudos tanto sobre o desenvolvimento na adolescência como de avaliação da eficácia das políticas penais aplicadas aos jovens, os resultados desses estudos têm levado as cortes de justiça a mudar suas práticas, a aplicação de penas e os procedimentos aplicados a jovens infratores. Exemplo disso foi a proibição da aplicação da pena de morte a menores de 18 anos em todos os estados pela Suprema Corte, em 2005.
Essa proibição se baseou na aceitação por parte da casa dos resultados de estudos que demonstraram que a responsabilização penal de jovens tem de receber um tratamento diferente daquele dos adultos. Esses estudos vêm demonstrando que se aos 16 anos a maioria dos jovens já dispõe de habilidades cognitivas semelhantes às de adultos, é somente na faixa dos 26 aos 30 anos que esses indivíduos estão maduros em termos de habilidades intelectuais para a maturidade psicossocial. Esse descompasso entre a maturidade cognitiva e psicossocial significa que, ao tomar decisões em situações de pressão, os jovens tendem a ser impulsivos, a subestimar as conseqüências negativas de seus atos, a exagerar no valor dos ganhos imediatos, e a ser extremamente suscetíveis à influência de seus amigos (MacArthur Foundation Research Network on Adolescent Development and Juvenile Justice).
Esse descompasso ocorre em parte porque o desenvolvimento de áreas do cérebro ainda não terminou: resultados de novas pesquisas em neurobiologia e neurofarmacologia têm demonstrado que as áreas do cérebro responsáveis pelas emoções e pela impulsividade (sistema límbico) se encontram muito mais ativas nos adolescentes, assim como essas áreas e outras áreas do cérebro só passam a se equilibrar após os 18 anos de idade. Processo semelhante ocorre com a capacidade de processar informações e de tomar decisões. Estudos revelam que essa capacidade ainda é limitada entre os jovens e que, novamente, é ao longo da terceira década de vida (entre 20 e 30 anos) que esses sistemas complexos de processamento de informações se formam. Se o processo de tomada de decisão dos jovens não é idêntico ao de adultos, podemos considerá-los tão responsáveis e tão culpáveis como adultos e, portanto, podemos aplicar a eles as mesmas penas e sanções? E se assim for feito qual grau de sucesso se obtém?
Foi realizado recentemente nos Estados Unidos um grande esforço para avaliar qual o grau de sucesso da política de transferir jovens infratores do sistema de justiça juvenil para o adulto - ou seja, tratar os jovens segundo a mesma lógica que se aplica aos adultos, pressupondo-se que os jovens evitariam se envolver em delitos pelo temor de sofrer penas mais severas. Essa transferência de jovens para o sistema de justiça de adultos foi implantada lentamente em vários estados dos EUA desde os anos 60 e, em meados da década de 90, esse tipo de transferência ocorria em 47 dos 50 estados americanos. Ao longo do tempo, informações foram acumuladas, dados que permitiram analisar qual a eficácia dessa política em termos da dissuasão da reincidência de jovens infratores e da perpetração de violência por jovens em geral. Os resultados dessas avaliações sofreram recentemente, neste ano, uma revisão por parte de um grupo de pesquisadores independentes que vêm buscando identificar as experiências que realmente funcionam: aquelas que foram submetidas a uma análise científica rigorosa e cujos resultados só podem ser conseqüência da intervenção realizada. Esse grupo é conhecido como Task Force on Community Preventive Services [Força-tarefa em serviços preventivos da comunidade, numa tradução livre] e é apoiado pelo Departamento de Saúde do governo dos EUA - e recebe ainda apoio técnico do Centers for Disease Control, o CDC [Centros de controle de doenças, idem]. Foram encontradas seis avaliações de eficácia de transferência de jovens para o sistema judicial de adultos que preenchiam todos os requisitos científicos, e essas avaliações demonstram que não há evidência suficiente de que a transferência reduza a violência da população jovem em geral. Ainda, há indício de que aumenta a violência dos jovens que são tratados como adultos pelo sistema de justiça - mesmo que não se possa afirmar com toda a certeza que esse resultado seja fruto desse tratamento. Avaliações comparativas da política criminal não são muito fáceis nos EUA, já que cada estado tem sua legislação penal. Mas os pesquisadores da Task Force concluíram que tratar jovens adolescentes como adultos é "contraproducente para reduzir a violência juvenil e aumentar a segurança do público".
No Brasil temos um Código Penal e um Estatuto da Criança e do Adolescente aplicados em todos os estados da federação, o que varia é como são colocados em prática. Temos condições privilegiadas para avaliar de modo comparativo a eficácia do estatuto, tanto em reduzir a violência juvenil em geral como a reincidência em particular. Nosso estatuto é considerado por especialistas, de dentro e de fora do país, como um marco no tratamento do problema da infração juvenil e como um modelo a ser seguido por outros países. Uma avaliação isenta de sua eficácia permitirá à sociedade aprimorar o que for necessário e onde necessário, guiada pela informação e não pela percepção, colocando-nos, assim, mais próximos de obter a segurança que buscamos.

 

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Nancy Cardia é psicóloga e membro do Núcleo de
Estudos da Violência (CEV) da Universidade de São Paulo (USP)

 


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