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REVISTA E - PORTAL SESCSP

 

 


 


por Valentim Gentil Filho

 

 

O médico psiquiatra Valentim Gentil Filho declara-se um profundo interessado no cérebro e seu funcionamento. Formado pela Universidade de São Paulo em 1970, Gentil Filho optou pela área da psicofarmacologia atraído exatamente pela possibilidade de desvendar o efeito dos medicamentos nesse "sofisticado sistema", como define."Eu nunca tive interesse muito grande pelos medicamentos em si, mas sim pelo efeito que eles tinham no comportamento, nas emoções", revelou na conversa que teve com o Conselho Editorial da Revista E. Ph.D. em sua área - o equivalente ao título de doutor, obtido na Universidade de Londes, em 1976 -, o convidado da seção Encontros deste mês é professor titular da USP e divide seu tempo entre a sala de aula, as atividades no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas e o consultório onde atende três vezes por semana. Otimista com relação aos avanços dos estudos em psiquiatria, Gentil Filho acredita que novas terapias devem continuar surgindo, desde que se dê o devido valor às pesquisas - sua grande paixão, apesar dos entraves de caráter prático vividos nesse campo. "Descobri que é muito difícil ser pesquisador no Brasil, a não ser que você faça uma renúncia grande a muitas coisas." A seguir, trechos do bate-papo no qual o psiquiatra falou da importância de diversas patologias psiquiátricas, entre elas a depressão - mal que vem sendo cada vez mais detectado no mundo contemporâneo.

 

Havia uma expectativa gerada pela psicanálise e pela psiquiatria social, na década de 60, de que, se a população fosse bem orientada, não se gerariam doenças graves cuja origem se pensava ser psicossocial. Foi o auge da medicina psicossomática e de teorias, hoje desacreditadas, como a da "mãe esquizofrenogênica" [expressão cunhada em 1948 por Frieda Fromm-Reichman para definir a mãe que, em linhas gerais, se caracterizaria por uma atitude ambivalente com a qual simultaneamente superprotegeria e rejeitaria o filho]. Acreditava-se que os serviços de cuidados primários detectariam e fariam prevenção efetiva dos transtornos mais comuns, como as depressões, e que logo os hospitais psiquiátricos se tornariam dispensáveis como os leprosários e outros serviços para doenças contagiosas. Se os problemas fossem sociais, não precisaríamos da psiquiatria, substituída por abordagens psicossociais e psicoterapias psicodinâmicas, lidando não mais com doenças, mas com "sofrimento psíquico". Infelizmente, isso não é verdade. Doenças mentais, conhecidas há séculos em todos os povos e situações, requerem atendimento médico. Acho difícil não reconhecer que temos métodos eficazes para prevenir e atender aos principais problemas psiquiátricos. Movimentos antipsiquiátricos, com base nas limitadas perspectivas do pós-guerra, adotaram posturas radicais, antimédicas, anti-hospital. Um hospital psiquiátrico moderno é um equipamento médico indispensável para casos agudos que requeiram atendimento intensivo. Ele não deve ser identificado com os antigos manicômios, mistos de hospital, asilo e prisão. Serviços ruins não devem ser tolerados, sejam eles hospitalares ou não. Acho que já gastamos tempo e energia demais em discussões anacrônicas, enquanto tantas pessoas estão sofrendo e precisando de ajuda eficaz. Temos de encontrar um modelo melhor.

 


Quadro clínico consistente
A depressão é uma das condições médicas mais reconhecidas hoje. Houve aumento de informações para se fazer o diagnóstico, permitindo maior capacidade de detecção por parte dos profissionais e da própria população (quem já teve uma depressão a diagnostica em outra pessoa com facilidade), além do possível aumento da incidência desses problemas no mundo atual. Não dá para justificar isso como simples resultado do marketing de antidepressivos e "furor de prescrição", como querem alguns. Depressões são mais freqüentes, por exemplo, no período pós-parto. A redução da mortalidade das mães contribuiu para aumentar as taxas. As depressões puerperais [relativo a puérpera, mulher que deu à luz há pouco tempo], embora subdetectadas e não tratadas até recentemente, são conhecidas há muito tempo e indicam risco de recaídas futuras. O quadro clínico é muito consistente. Na depressão clássica, a pessoa sente a angústia vital, a dificuldade de concentração, a ineficiência do pensamento, piora sistematicamente de manhã e melhora à tarde (ou o contrário), tem perda (ou aumento) de apetite etc. As pessoas usam cafeína como se fosse alimento, ingerem grandes quantidades de álcool como se fosse normal, usam remédios para emagrecer, trabalham em turnos sem cuidar de manter os ritmos de sono e vigília etc. Tudo isso pode aumentar o risco de transtornos de ansiedade ou depressão.

 

Mal das grandes cidades?
Não é só o fato de você morar em uma cidade como São Paulo. Nós moramos em São Paulo, e olha o que nós estamos fazendo aqui [refere-se à sala onde acontece a reunião]. Por que algum de nós teria depressão? Temos ar-condicionado, iluminação, não temos dilúvio [na cidade], nossos filhos não estão morrendo de infecção na primeira infância como antigamente, os cachorros são os animais mais perigosos com os quais a gente convive nesta cidade, não temos jaguatiricas comendo nossos filhos. É claro que há a violência, mas imaginem como eram as condições de vida nesta cidade há 300 anos ou antes do saneamento do Oswaldo Cruz [1872-1917, cientista, médico, bacteriologista, epidemiologista e sanitarista brasileiro, erradicou a febre amarela no Rio de Janeiro no final do século 19]. Imaginem quanta gente morria quando havia uma epidemia e não tinham atendimento médico eficaz. Temos mais doença mental porque convivemos com mais fatores de estresse? Nós somos uma espécie que conseguiu sobreviver a tudo nestes últimos 10 mil anos de civilização. O que a humanidade enfrentou - e a que conseguiu sobreviver - não é brincadeira. Eu não acho que a teoria do estresse seja suficiente para explicar quadros como a depressão, exceto como um desencadeante. Diversos fatores estão contribuindo para esse aumento significativo da incidência das doenças mentais no mundo desenvolvido. Não sabemos muito sobre os países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, porque as estatísticas são pouco confiáveis e os estudos epidemiológicos são recentes ou ainda estão sendo feitos. Só para citar, alguns transtornos mentais ou de personalidade talvez tenham até maior probabilidade de transmissão hereditária. Outros, como as demências e algumas formas de depressão, ficam mais evidentes devido ao aumento da longevidade da população.

 

Futuro da psiquiatria
Daqui a 20 anos, teremos terapêuticas que hoje nem imaginamos. Já ocorreu uma transformação muito grande desde 1950. Em 2050, quem sabe se tudo o que fazemos hoje não será só história. Isso, é claro, desde que se invista bastante no estudo do cérebro humano e seus 100 bilhões de neurônios - número igual ao de estrelas da Via Láctea. São 100 bilhões de células se comunicando instantaneamente. Será que esses estudos vão invalidar tudo o que disse Freud [Sigmund Freud, 1856-1939, médico neurologista austríaco fundador da psicanálise]? Não creio. Acho que esses conhecimentos permitirão integrar algumas de suas descobertas. A atividade científica é um quebra-cabeça que se monta ao longo de gerações, ou um quadro impressionista que vai ficando mais claro quanto mais temos a visão do conjunto. E é muito estimulante sentir que estamos estudando não só as partículas elementares, que os astrofísicos pesquisam para entender as origens e a estrutura de um universo de quase 15 bilhões de anos, mas também o sofisticado sistema de informações que ocorre dentro e entre as células do cérebro.


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