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Entrevista

 

 

ALBERTO DA COSTA E SILVA

 


 

O especialista em história da África fala de escravidão no Brasil e no mundo

O ensaísta e historiador Alberto Vasconcellos da Costa e Silva nasceu em São Paulo, em 12 de maio de 1931. Em 1957 formou-se pelo Instituto Rio Branco, instituição ligada ao Ministério das Relações Exteriores, e serviu como diplomata em Lisboa (Portugal), Caracas (Venezuela), Washington (EUA), Madri (Espanha) e Roma (Itália). Ex-embaixador do Brasil na Nigéria, em Portugal, na Colômbia e no Paraguai, o historiador foi chefe do Departamento Cultural do Ministério das Relações Exteriores, subsecretário-geral e inspetor-geral da mesma pasta e é doutor honoris causa pela Universidade Obafemi Awolowo, da Nigéria. A experiência profissional no continente africano levou-o a aprofundar-se na história da região, tornando-se especialista no assunto - é autor, entre outros livros, de A Manilha e o Libambo - A África e a Escravidão de 1500 a 1700 (Nova Fronteira, 2002) e Um Passeio pela África (Nova Fronteira, 2006). O vasto currículo do também poeta inclui o título de imortal desde 2000, quando passou a ocupar a cadeira nº 9 da Academia Brasileira de Letras (ABL), entidade da qual foi presidente, em 2003. Durante a conversa com a Revista E, falou sobre a África contemporânea e a dos séculos 16 e 17, abordou fatos históricos ligados à escravidão no Brasil e no restante do mundo. "Todos nós somos descendentes de escravos", afirmou. A seguir, trechos.

 

Fala-se muito nos livros escolares que um dia o Império resolveu acabar com a escravidão, apesar de, claro, haver os movimentos abolicionistas. Como é que se deu realmente esse processo?
O processo de abolição no Brasil se estendeu, sobretudo, durante a segunda metade do século 19. Ele foi progressivo, foi afetando cada vez mais as pessoas no início indiferentes ao problema da escravidão. Elas foram se convencendo, pouco a pouco, da injustiça intrínseca ao processo. De maneira que houve não só uma série de leis mudando a estrutura do trabalho escravo, mas também a libertação provocada pelos próprios escravos, que passaram a comprar sua liberdade - e também do que hoje nós chamaríamos de movimentos da sociedade civil, que asseguraram a libertação em muitos casos. O importante é que, por volta de 1850, termina o fluxo de escravos negros vindos da África e nós passamos a ter cada vez mais um número maior de escravos crioulos, ou seja, nascidos no Brasil. E aqueles que eram nascidos aqui aprenderam muito cedo como conquistar a liberdade. Aprenderam as técnicas e os processos para ter acesso a ela. Então realmente você passa a ter uma população negra muito grande, mas que era basicamente livre em 1888.

 

Quem eram esses africanos que chegavam ao Brasil como escravos?
Não sou especialista em escravidão, sou especialista em história da África. O que posso dizer é que os africanos vinham de praticamente todas as partes do continente. Mas, sobretudo, de determinadas áreas, chamadas "áreas de captação". Partes da costa principalmente. A África atlântica. Pode-se dizer que quase a metade dos africanos que vieram para o Brasil foi arrancada da região que vai do Gabão até o Rio Cunene, que inclui os dois Congos atuais, Angola e o sul do Gabão. Foram, sobretudo, indivíduos de língua banta. Foram abundos, ovimbundos, vilis, congos, lundas, iacas, e vai por aí.

 

Qual era a categoria social deles?
Tanto havia aqueles que já eram escravos na África e foram vendidos para o Brasil quanto aqueles que tinham sido condenados pela justiça local e eram vendidos como escravos. Mas a grande maioria provém de guerras ou de razias [invasões de território inimigo ou estrangeiro], quer dizer, de ataques contra populações indefesas. Muitos deles eram prisioneiros de guerra. Vieram soldados, agricultores, pastores, caçadores, remeiros e aristocratas. A escravidão também foi uma forma de penalidade política.

 

Então já havia escravidão na África.
Mas houve escravidão em todos os continentes. A escravidão é um fato universal. Houve escravos até entre os índios brasileiros. Os tupinambás tinham escravos, os índios americanos tinham escravos. Havia escravidão na China, no Japão, na Europa toda. Até praticamente o início do século 16 existiam, na Inglaterra e na França, grandes mercados de escravos, vindos, sobretudo, do Mar Negro, dos países eslavos. Havia escravidão no mundo árabe e na África toda. Esse foi sempre o processo mais eficiente de conseguir e conservar a força de trabalho. Ele só começou a ser praticamente abandonado no século 19. A prevalência do trabalho assalariado sobre o trabalho escravo é quase dos nossos dias, é de anteontem. No século 20, ainda havia escravidão em muitas partes do mundo. Na Arábia Saudita, nos Emirados Árabes. Na Mauritânia [país do noroeste da África], foi abolida em 1982. Ou seja, a escravidão legal chega praticamente a nossos dias. Agora, a ilegal, a disfarçada, essa continua a existir em muitas partes do mundo. E olha que eu não confundo escravidão com trabalho forçado. A escravidão pressupõe a possibilidade de comprar e vender a mão-de-obra. Você é dono da pessoa, pode comprá-la e vendê-la. O trabalho forçado é o que você obriga a pessoa a trabalhar sob ameaça. É igualmente terrível, mas você não pode confundir uma realidade com a outra.

 

Isso explica o fato de, no Brasil, haver negros libertos que se tornavam senhores de escravos?
E que não tinham culpa nenhuma nisso por um motivo muito simples: era difícil, quase impossível, viver, trabalhar, enfim, estruturar-se no Brasil sem ter escravos. Se você era um liberto marceneiro e queria ter ajudantes para trabalhar com você, a maneira mais simples, mais fácil, era comprar um escravo que soubesse trabalhar a madeira para te ajudar - ou alguém a que você pudesse ensinar, enfim... Até mesmo abolicionistas eram obrigados a ter escravos porque não havia quem fizesse o serviço doméstico. Conta-se até que os estudantes da faculdade de direito de São Paulo, que eram um grupo extremamente antiescravista e que combatia a escravidão fortemente, iam para a aula na faculdade e os escravos que cuidavam deles ficavam esperando do lado de fora. Os estudantes moravam sozinhos e cada um tinha seu escravo, mesmo sendo todos contra a escravidão. De certo modo, a estrutura da sociedade estava de tal maneira formada que, para ter um determinado tipo de trabalho, você precisava de escravos. Por exemplo: não havia esgoto, os dejetos da família eram colocados naqueles grandes penicos que se chamavam capitães. Tudo isso tinha de sair de casa, então era levado para o mar, para o rio ou para os terrenos baldios. Uma pessoa livre não se disporia, de maneira nenhuma, por pagamento nenhum, a fazer esse trabalho. Porque aquilo era um trabalho de escravo, era um trabalho ignóbil. Ou seja, mesmo você sendo contra a escravidão, era obrigado a ter um escravo.

 

Mesmo os ex-escravos...
O que se passou com os brancos se passou com os negros. Quando você faz os inventários por morte de negros libertos, em geral é curioso que entre as propriedades deles sempre há escravos. Depois, havia o seguinte fator: o escravo era um produto caro, ao contrário do que se dizia. Era um investimento. Você investia as suas economias em escravos. É preciso não esquecer que a escravidão era um processo entre seres humanos. Logo, com todas as perversidades, os maniqueísmos, os sadismos a que o ser humano é dado, mas também com todas as generosidades, bondades e entendimentos afetivos que se processam nas relações entre seres humanos. É uma instituição que tem de ser estudada sempre com muito cuidado. Era perfeitamente possível que entre um escravo e um senhor ou entre um escravo e uma senhora, ou entre um senhor e uma escrava se estabelecessem relações de afetividade, e nós temos várias dessas histórias. Em geral as relações eram de violência, mas havia essas exceções que também explicavam que a escravidão era um fenômeno entre seres humanos com todos os nossos defeitos e as nossas qualidades. E é preciso não esquecer outra coisa: não há escravidão, há escravidões.

 

Por que seriam escravidões?
Porque elas são diferentes. A escravidão vai mudando ao longo dos séculos e muda também conforme a região e a aplicação econômica do escravo. Agora, claro, ela é sempre violenta, sempre uma agressão de um ser humano contra outro ser humano, mas ela vai mudando de roupagem. Por exemplo, no século 18 o escravo tinha um preço que não era barato, era um preço determinado, geralmente caro. Mas ele podia ser explorado ao máximo no trabalho no menor espaço de tempo. Ele morria rapidamente, era essa a vantagem econômica para o proprietário desse escravo. Valia a pena você matar um escravo de trabalho e retirar dele o máximo de dinheiro que você podia em um espaço de três, quatro, cinco anos, porque [o escravo] já estava pago no primeiro ano. A partir de 1830 até 1850, o escravo passou a ser caríssimo. Era antieconômico matar um escravo em pouco tempo de trabalho. Pelo contrário, ele deveria durar o máximo possível porque não podia ser substituído, não havia quem o substituísse. Morto o escravo, você só poderia substituí-lo se fosse comprar no próprio Brasil, no Norte, por exemplo, ou no Sul, um escravo que ia valer duas ou três vezes o preço daquele que havia morrido. É uma coisa extraordinária que seria inconcebível no século 18, até mesmo na mesma região. Você vai ter no Vale do Paraíba grandes fazendas de café em que havia um hospital e um médico para os escravos. Por quê? Bondade? Porque escravo passou a ser um investimento extremamente alto, que tinha de ser protegido, que tinha de ser preservado. Você não pode apresentar o mesmo retrato em todos os três séculos e meio que durou a escravidão no Brasil.

 

É interessante notar como se desmonta nos seus livros a idéia da escravidão ligada a raça.
Todos nós somos descendentes de escravos. Todos nós temos alguns escravos entre nossos antepassados porque a escravidão existiu em todo o mundo, não importa a nossa origem. O que faz a escravidão americana especialmente perversa e diferente das outras - na Grécia, em Roma, ou na Inglaterra no século 15, na Espanha no século 14, Escandinávia, enfim, onde você quiser - é que naquelas qualquer pessoa podia ser escravo, independentemente de sua cor e de sua origem. Embora fosse sempre o outro, porque ninguém escraviza os seus próprios, a não ser por motivos jurídicos, mas aí o indivíduo é afastado de seu grupo, deixa de pertencer ao grupo. O problema com a escravidão americana é que ela começa com a escravização do índio e, a partir do início do século 17, ela passa a ser caracteristicamente africana. Escravo passou a ser sinônimo de negro. Isso teve uma repercussão, uma maldade essencial, que é a seguinte: se você é um europeu descendente de escravos gregos de 20 gerações passadas, você não é discriminado. Nas Américas a escravidão ficou ligada à cor da pele. Isso fez com que a escravidão - que era perversa e violenta - continuasse a se projetar sobre os descendentes dos escravos até nossos dias.

 

Em um de seus livros, você fala que os africanos ajudaram a moldar o Brasil, mas, de outro lado, o Brasil acabou ajudando a moldar a África. Fale um pouco sobre isso.
O Atlântico ao sul de Gibraltar era um mar praticamente vazio. Quando os portugueses e os espanhóis começam a ocupar as estradas desse oceano, eles chegam à África, fazem o costeamento da África e chegam às Américas. E imediatamente se estabelecem vínculos entre os dois lados do mar. Nós sabemos que, no fim do século 16, em 1560, 1570, já existiam brasileiros no reino do Congo. Brasileiros já haviam saído da Bahia, do Rio de Janeiro e de Pernambuco e se endereçado ao reino do Congo. Quando os holandeses invadem Angola, saem de Pernambuco e levam tropas brasileiras com eles, levam índios brasileiros que foram para Angola com os holandeses e lá ficaram. Quando os portugueses tomam Angola dos holandeses, também levam índios, levam mamelucos, que também ficam lá. Nem todos voltaram. Posteriormente, durante os séculos 18 e 19, brasileiros, tanto brancos quanto mulatos, cafuzos, mamelucos e negros, foram para a costa da África comerciar escravos, produtos africanos para os quais havia grande demanda no Brasil, como azeite-de-dendê e tantas coisas mais. Ou seja, estabeleceu-se um vínculo permanente de um lado a outro. O Brasil fornece à África a farinha de mandioca e os processos de fabricá-la, de fazer de uma raiz tóxica um alimento. Do Brasil também sai o milho para a África, sai o abacaxi, o amendoim. Um enorme número de vegetais brasileiros vai para a África e começam a modificar a paisagem africana. Por outro lado, determinados vegetais que havia na África, alguns deles vindos da Ásia, atravessam o oceano para o Brasil. Então você tem essa coisa extraordinária: toda a costa do Brasil povoada de coqueiros, e os coqueiros vieram da África. Eles na realidade vêm do sudeste da Ásia, mas passaram antes pela África e depois vieram para o Brasil. Assim como a África influenciou o Brasil, o Brasil influenciou a África, sobretudo no século 19. Influenciou a arquitetura africana, influenciou a maneira de viver africana, influenciou as comidas africanas, sobretudo a África Ocidental, a África atlântica. A África índica é outra conversa. A África índica pertence a outro universo.

 

Falando um pouco da África contemporânea, você acha que muitas das coisas que ocorrem lá hoje são motivadas pelo degredo do passado?
Primeiro vamos qualificar as coisas: o que aparece na mídia são os desastres da África. Secas, epidemias, guerra civil etc. Mas há outras áreas da África que não aparecem no noticiário. E por quê? Porque nelas se passa uma vida normal, tranqüila. As pessoas estão indo para a escola, estão plantando seus cereais, cuidando de seu gado, fazendo suas indústrias, as universidades funcionam normalmente, os centros de saúde. Com as precariedades de países pobres, mas estão funcionando corretamente. Segundo, os males dessa África doente têm numerosíssimas e diferentes causas. Não pode ser apontado só um dos aspectos: ou o colonialismo que durou 50 anos na maior parte dos países ou a escravidão que se estendeu por dois milênios. São processos complexos nos quais entram muitos fatores. Há a desestruturação dos sistemas políticos tradicionais trazidos pelo colonialismo, a substituição de modelos depois das independências, o desprezo por essas organizações políticas e sociais tradicionais e a tentativa das elites de impor a vários países modelos trazidos da Europa ou dos Estados Unidos. A África estava acostumada, antes do colonialismo europeu, a ter Estados que eram plurinacionais. Por exemplo: o reino de Segu era composto de bambaras, mandingas, bozos, de diferentes povos que viviam harmonicamente entre si, cada qual com seus costumes. Os bozos eram pescadores, os bambaras eram guerreiros, os mandingas eram comerciantes e agricultores, os fulas criavam gado, e estavam todos na mesma estrutura política sem que se pensasse que cada nação, cada grupo étnico, cada grupo lingüístico devesse formar um único país. Na medida em que você não consegue ter países, na maior parte da África, que sejam compostos de uma só etnia, você acaba gerando conflitos entre elas pelas posições de mando. E, evidentemente, os poderes externos ao continente exploram essas diferenças. Mas, onde há crise, há a solução. Nenhuma crise é permanente, elas se sucedem, são necessárias, mas não são permanentes. Mais cedo ou mais tarde os Estados africanos que hoje estão em conflito vão encontrar soluções. Muitos deles. Quem pensaria que a guerra civil angolana, que durou tantos anos, de repente, desembocasse em um ambiente de harmonia?

 

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