Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Ficção Inédita

REVISTA E - PORTAL SESCSP

 

 


por Vicente Franz Cecim

 

Isso, o Aquilo, o Sem Nome, O


O que faz a árvore, o que faz o vento, o que faz
eu me perguntar essas coisas?


- Lá.

Vê: aquela árvore, lá, se movendo.
Vês, vendo?
Parece coisa de sonho, não é? Aquela árvore
longe, no horizonte se movendo.
O que move a árvore?
Para isso a gente tem uma resposta humana na
ponta da língua: o vento. Outro Verbo.
Mas, ah, o que sopra o vento?
Para isso, eu não tenho a resposta.
Tu tens?
Ninguém tem, te digo.
É o Isso, o Aquilo, o Sem Nome,
e de onde vindo ninguém sabe, pois só sabemos
que ao chegar aqui vai logo se escondendo de nós sob muitas formas, as Várias: aves, estrelas,insetos, peixes,
e de vento vento
Pois se até sob a forma humana se esconde, em
nós.
E se aquela árvore, lá, parar de se mover?
Para onde terá ido?
Diz-se disso: o vento sopra em toda parte, o
vento: o Vento.
Da minha boca, agora mesmo ele está soprando
para ti sob a forma destas palavras, onde também está e
se mantém, escondido. Abro a boca, sopro um
pensamento, e eis: ele aparece, mas desaparecido, pois
só percebes as palavras.
Ouve, assim, com a tua mão roçando a minha
boca.
É a voz do vento das palavras.
Sentes?
Ah, olha: agora a árvore parou de se mover.
Vês? Não-vendo¿
Ele terá ido embora dela, ou se mantém lá, nela,
até a próxima brisa, ventania, sopro disso que nos
sopra? Escondido¿
São muitas as perguntas que nos fazemos só de
olhar as coisas, não é?
Então, essa que eu me faço agora: esse vento que
sopra pela minha boca sob a forma das palavras com
que estou te perguntando isto: ele é o mesmo vento que, antes, soprava lá aquela Árvore, longe, no horizonte, e
agora veio soprar em mim, através de Mim?
Pudesse, pois se Isso sopra os ventos um só, se
dispersando em vários istos, vários ventos, peixes,
homens
Ou será que depois que deixa de ser o Isso ele é,
em cada isto, um Isto que não se compara a nenhum
outro?
Então, são muitas as perguntas que fazemos a
elas, sós, olhando as coisas
As Coisas.
Elas, de Lá, nos olhando.
Aqui.
E aqui: um tU e um eU. Peixes homens
Ah, somos mesmo dois homens conversando, ou
só um? O Mesmo.

O Um¿

 

Lenda


Sim

nos éramos os Obscuros, os de lama, os de terra.
Só a tribo.

Mas ela, um dia, quis o Mais: quis Aquilo: ser só
luz: estrela.

Há muito sabíamos: estava encantada pela Lua.
Mas não dando importância a isso, pois como? Se
embora sendo Obscura, de lama e terra como
nós, e humana
nos cegava mais e era mais bela que a Lua?
Não víamos o Limo se formando, então não
ligávamos.
Nós, a tribo. Os Obscuros, os de terra.

E eis que um dia Ela subiu, subisse. Mas foi só
para descer. No monte mais alto subisse. Queria, através da Lua, chegar àquelas luzes lá, as estrelas, vejam só. Como um homem pode ser um sol?
Mas ela queria.
E subia.
Uma noite, oculta de nós

Aquela lua humana crescente que se ocultava
querendo se tornar a nossa irmã lunar¿

Lá de cima, então, viu: as luas: duas. Uma no
céu, outra na terra.
E se foi.
Se atirou

Mas sendo de lama e de terra,
pesou
caiu.
Tombasse para a única luazinha possível para
nós:
a das miragens.

Sua terra não ascendeu: afundou nas águas do
rio, bem no centro da Lua de água refletida.

- Outras águas vieram em nossos olhos,
ah, as salgadas,
celebrando aquilo: um sonho de asas se
convertendo em queda de pedra.

- E no entanto

depois a tribo visse: das águas, renascia.
Não mais gente, Obscura e feita de terra e lama,

e,
imersa, emergia. Algo, no Fundo, sabe de nós?

E vinha em flor flutuar nas Águas

e seu Perfume nos fazendo sábios
e suas cores fazendo nossos olhos Santos

e suas folhas então nos tentando,
quisessem fazer das nossas carnes, flores de
carnes, como Ela, a estrela líquida,
ah, se saltássemos de nós, também,
e através da nossa Obscuridade
- víssemos as luzes,
as Outras, também Elas lá por cima da tribo
humana

- as Luzes

que sobre a nossa tribo já cintilam, cintilassem,

é no tempo das Lendas, O eterno, se nos doamos
ao Sonhante


pois da água eis a nascida:

Ela,

a Mãe Líquida

 

______________________________________
Vicente Franz Cecim é autor de Ó Serdespanto
(Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2006)

 

voltar