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Literatura

REVISTA E - PORTAL SESCSP

 

 

PENSAMENTO CRIATIVO

 

Referência para várias gerações de intelectuais, a professora e escritora Gilda de Mello e Souza marcou definitivamente os estudos culturais no país

 

 

Além de contribuir significativamente para a crítica cultural por meio de ensaios e pesquisas, a professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) Gilda de Mello e Souza (1919-2005) ajudou a formar gerações de intelectuais, muitos dos quais hoje em destaque no cenário nacional. Nascida em São Paulo, Gilda foi criada em Araraquara, interior paulista. Em 1930, quando veio para a capital para estudar no Colégio Stafford, ela foi morar na casa de um primo de segundo grau, o qual não por acaso assumiu o papel de mentor da jovem estudante. Com 26 anos a mais do que Gilda, esse parente era ninguém menos que Mário de Andrade - um dos responsáveis pela Semana de Arte Moderna, realizada em 1922 - e autor do livro Macunaíma, de 1928, marco do modernismo brasileiro. "Mário de Andrade teve influência enorme na vida de Gilda", afirma a professora de teoria literária e literatura comparada da USP Walnice Nogueira Galvão, que foi aluna e amiga de Gilda (veja boxe Crítica com arte). "Ele conversava com ela, tomava lição e corrigia os trabalhos dela." Walnice explica que Mário encaminhou o interesse de Gilda "para tudo quanto era arte e cultura". A afinidade intelectual acabou por se sobrepor ao parentesco e, com o passar dos anos, Gilda tornou-se especialista na obra do primo. A admiração e o interesse que sentia pelo trabalho de Mário de Andrade resultou, em 1979, no livro O Tupi e o Alaúde: uma Interpretação de Macunaíma (veja boxe Bibliografia básica). Nesse ensaio - destaque entre os estudos andradinos -, a autora analisa a obra e faz uma interpretação que retoma a indicação do próprio autor de que Macunaíma apresenta uma visão ambivalente e indeterminada do Brasil.
Outro ponto importante na trajetória da intelectual foi o ingresso, em 1937, na então recém-inaugurada Universidade de São Paulo como aluna do curso de filosofia. Criada em 1934 por decreto do governador Armando de Salles Oliveira, a USP abria suas portas, com a contribuição de professores estrangeiros. A faculdade de filosofia, por exemplo, recebeu uma série de docentes vindos da França, num projeto conhecido como "missão francesa" que visava à implementação de um pensamento pautado por critérios acadêmicos e científicos. Entre os professores de Gilda, estava o sociólogo francês Roger Bastide - um dos principais responsáveis por "abrir a cabeça dela para o pensamento internacional de forma sistematizada", como afirma Walnice. Bastide trouxe ao conhecimento dos alunos as teorias sociológicas em voga na Europa, incluindo na bibliografia as obras do conterrâneo Émile Durkheim, considerado um dos pais da sociologia moderna. O que não significava virar as costas para a mentalidade e a cultura brasileiras: Bastide também alertava Gilda sobre a importância de conhecer o país no qual ela morava. "Ele mostrou a Gilda a necessidade de trabalhar as coisas do Brasil, o que se somou ao que Mário de Andrade também dizia", declara Walnice.

 

 

Chato-boys
O ambiente universitário ainda propiciou à aluna laços de amizade com outros jovens talentos de sua geração. Em seu círculo da faculdade de filosofia estavam estudantes que viriam a se destacar no cenário cultural e no pensamento acadêmico do país. Entre eles, Décio de Almeida Prado, estudioso do teatro brasileiro; o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes; e Antonio Candido, expoente da crítica literária brasileira, com quem Gilda se casou em 1943 e teve três filhas. A turma, juntamente com outros que também vieram a se tornar figuras de peso na nossa cultura, ficou conhecida como Grupo Clima, referência à revista homônima que produziram de maio de 1941 a novembro de 1944. Embora a publicação tenha tido apenas 16 números, o trabalho realizado ecoa até os dias de hoje. "Essa revista lançou nomes dos mais importantes da nossa intelectualidade, entre eles a própria Gilda", conta a professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Heloísa Pontes, autora do livro Destinos Mistos - os Críticos do Grupo Clima em São Paulo, 1940-1968 (Companhia das Letras, 1998). A curiosidade é que na primeira edição da publicação Gilda não aparece como ensaísta. Sua contribuição foi o conto Week-end com Teresinha. "É interessante que, enquanto os amigos dela acabaram por se iniciar já escrevendo na modalidade de trabalho na qual iriam se notabilizar, Gilda transitou da ficção às diversas frentes da crítica artística", comenta Heloísa.
De cara, os jovens do Grupo Clima ganharam espaço na grande imprensa. E a geração que os precedia, formada principalmente por artistas e intelectuais modernistas, passou a ter suas obras analisadas e criticadas - o que se pode chamar de um choque de gerações. No livro Destinos Mistos, Heloísa comenta o fato apresentando trechos de um artigo de Ruy Coelho, um dos colaboradores da Clima, publicado no jornal O Estado de S.Paulo em 1943: "Afora Mário de Andrade e [o também crítico modernista] Sérgio Milliet, que 'procuravam aprofundar-se em algum ramo do conhecimento', os demais modernistas viveram, segundo Ruy, 'do palpite'". O próprio Ruy Coelho prossegue em seu artigo: "Imagino a irritação que sentiram quando surgiu um bando de 'chato-boys' que ousaram analisar o que diziam e, suprema afronta, exigir que as opiniões fossem fundamentadas em conhecimentos". Vale lembrar que a alcunha de "chato-boys" foi dada por uma das maiores personalidades do modernismo: o escritor Oswald de Andrade, que os considerava muito sisudos.

 

 

Pioneira dos estudos da moda
A vida acadêmica foi central nas atividades de Gilda de Mello e Souza. Em 1940 - ainda antes de assumir o trabalho de crítica da revista Clima -, bacharelou-se em filosofia. Três anos depois, foi nomeada assistente da cadeira de Sociologia I, da qual Roger Bastide era o professor titular. A partir daí, Gilda decolou no campo de análise da cultura. Em sua tese de doutorado, A Moda no Século XIX, defendida em 1950 na USP, Gilda analisou o vestuário da época do ponto de vista social e cultural. Foi com essa pesquisa - publicada em 1952 na Revista do Museu Paulista e, posteriormente, como livro - que Gilda imprimiu seu estilo. "Não há nada que se compare ao trabalho dela: em profundidade, erudição, elegância, fineza de análise e seriedade", afirma Walnice. "Ela tratou a moda como um conjunto de sinais. Como são sinais, permitem uma leitura. E essa leitura mostra como a indumentária é utilizada para levantar barreiras entre os sexos, as classes ou seja lá o que você possa imaginar."
Em 1954, Gilda passa a ser encarregada da disciplina estética do Departamento de Filosofia, do qual foi diretora entre os anos de 1969 e 1972. Quando ministrava suas aulas de estética, fazia questão de que seus alunos tivessem contato com as obras que seriam examinadas. "Uma das coisas mais ricas das aulas dela foi o ciclo de cinema do [cineasta italiano Michelangelo] Antonioni", lembra também a ex-aluna e coordenadora do Setor de Pesquisa em História da Arte do Museu Lasar Segall Vera d'Horta. "Gilda analisou várias manifestações de arte: cinema, dança, artes plásticas e literatura. Ela é um exemplo muito encorajador para pesquisadores mais jovens, não só os da minha geração, mas também para os atuais." Dona Gilda, como era carinhosamente chamada por seus alunos, aposentou-se em 1973. E recebeu, em 1999, o título de professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

 

 

Ver boxes:

 

Crítica com arte
Bibliografia básica

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Crítica com arte

Vida e obra da ensaísta e professora ganham destaque no Sesc Araraquara

 

Até o dia 30 de setembro, a unidade Araraquara realiza o projeto Gilda, a Paixão pela Forma, que teve início em 14 de agosto. Debates, filmes, espetáculo teatral, mostra de artes plásticas e concerto musical fazem parte do evento que presta homenagem à crítica e professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) Gilda de Mello e Souza. Norteadas pela obra ensaística de Gilda, que passou a infância na cidade de Araraquara, as atividades propõem uma reflexão sobre a arte e a estética brasileiras. Serão apresentados oito encontros com alguns dos principais intelectuais do país. Entre eles, o crítico de cinema e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Ismail Xavier e a professora de teoria literária e literatura comparada da FFLCH-USP Walnice Nogueira Galvão. O evento conta ainda com a exibição de algumas obras analisadas por Gilda, como o filme Terra em Transe, do cineasta Glauber Rocha (confira a programação no Em Cartaz desta edição).

 

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Bibliografia básica

Para conhecer o pensamento de Gilda de Mello e Souza

 

O Tupi e o Alaúde: uma Interpretação de Macunaíma (Editora 34, 2003) - lançado originalmente em 1979, pela editora Duas Cidades

Exercícios de Leitura (Duas Cidades, 1980)

O Espírito das Roupas: a Moda do Século XIX (Companhia das Letras, 1987) - há uma edição de 2005, lançada pela mesma editora

A Idéia e o Figurado (Editora 34, 2005)

 

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