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Cinema

REVISTA E - MARÇO 2008


• O cineasta Alberto Cavalcanti, contratado para capitanear a empreitada de montar a Companhia


Contemporânea aos estúdios Vera Cruz, a Cinematográfica Maristela é pouco lembrada, mas também se encarregava da produção paulistana da sétima arte



São Paulo, final da década de 40. Há dinheiro no mercado, e muitos imigrantes italianos fazem jus a essa boa fase impulsionando a atividade industrial. O Brasil é, não só para os brasileiros, mas para o mundo, sinônimo de futuro. No panorama do pós-guerra, há disposição e energia sem limites.

Nesse clima de otimismo e euforia se inicia um interesse em cultura sem precedentes na metrópole em crescimento. Surge então, em 1949, o projeto mais ambicioso do cinema brasileiro, a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, do produtor do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) Franco Zampari e do empresário Ciccillo Matarazzo, que tinha a intenção de construir uma nova Hollywood. A empreitada começa com a contratação do cineasta Alberto Cavalcanti. Em seguida, são importados técnicos ingleses e diretores e roteiristas italianos. O resultado foi a produção de 22 longas em quatro anos de existência - entre eles, O Cangaceiro, de Lima Barreto, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, em 1953. Mas, no meio dessa agitação cultural, outros artistas e empreendedores consideravam o ramo do cinema uma indústria promissora.

Por isso deram asas à idéia com um sucesso considerável. A Companhia Cinematográfica Maristela era uma delas, embora a história não a tenha registrado com a devida importância. "A Vera Cruz é referência, mas a Maristela queria fazer uma coisa diferente, porque não tinha nem dinheiro, nem prestígio, nem o glamour da rival", diz o professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) Afrânio Mendes Catani, autor do livro À Sombra da Outra (Brasiliense, 1989), que conta a trajetória da ofuscada companhia cinematográfica, criada em 1950, que, até o ano de sua extinção, em 1958, produziu 14 filmes.


   Cinema na Zona Norte

A figura-chave do projeto era Mário Audrá Júnior, o Marinho, filho de uma rica família paulistana, do ramo da indústria têxtil. "Marinho era um cara jovem, boa-pinta, inteligente. Um cara muito ousado, cheio de energia, que embarcou nessa 'aventura'", lembra o crítico de cinema e historiador Luciano Ramos. "Mas ele não via o projeto dessa forma, via como empreendimento. Perto dos investimentos necessários para expandir a indústria da família, por exemplo, era um valor viável." Marinho se junta a nomes importantes do cenário cultural paulistano, os italianos recém-egressos do TBC Ruggero Jacobbi e Mario Civelli, e constrói um estúdio de grandes dimensões no bairro do Jaçanã (Zona Norte), ao qual deu o nome da fazenda da família - Maristela.

Para iniciar o projeto, ninguém menos do que o próprio Alberto Cavalcanti, da Vera Cruz, é contratado, já que ele acabara de romper relações com Franco Zampari. Para não extrapolar o orçamento da companhia, que não era comparável ao do grande estúdio, os empresários da Maristela inovavam. Enquanto a "prima rica" trazia pessoas da Europa, a Maristela contratava técnicos da Argentina e do México. "A Maristela já começou pequena e modesta", explica Catani. "E, ao contrário da Vera Cruz, que arcava com todas as despesas dos seus filmes, ela chegou a fazer co-produções internacionais para manter o negócio de pé. A Maristela fazia parceria com outros produtores, que entravam com o dinheiro, com a película...

E conseguiu sobreviver dessa maneira. Coisa que, se a Vera Cruz tivesse feito, também teria conseguido", conclui o autor, referindo-se à trajetória meteórica do célebre estúdio. Apesar de ter produzido menos filmes, a Maristela manteve as portas abertas até 1958, quatro anos a mais que a Vera Cruz.


Cena de "Pensão Dona Stela", com Adoniran Barbosa, José Mercaldi (centro) e Jaime Costa (em pé)
  Entre o "salto alto" e a "esculhambação"

Amparada pelo mecanismo de co-produção, a Maristela lançou filmes dirigidos por grandes nomes e com elencos de peso. O primeiro foi Presença de Anita, de Ruggero Jacobbi. "A proposta de mercado da Maristela era ficar entre a esculhambação da Atlântida e a seriedade salto alto e pó-de-arroz da Vera Cruz", afirma Ramos. Mas o objetivo da companhia de lançar um sucesso no mercado não foi alcançado.

Presença de Anita foi um fracasso de bilheteria. Mário Audrá Júnior, em seu livro Cinematográfica Maristela, Memórias de um Produtor (Silver Hawk, 1997), conta que ao ver o filme pela primeira vez sentiu uma grande frustração. "Saí da sala de cinema, quase desesperado, e fui caminhar para me acalmar", narra. "Civelli [Mario Civelli, produtor], que não tirava os olhos de mim, saiu no meu encalço. Caminhando lado a lado, dei-lhe minha opinião sobre o que acabara de ver: uma mediocridade sem limites!". O fraco desempenho dos filmes da Maristela seguiria até sua quarta produção, O Comprador de Fazendas (1951), que trouxe pela primeira vez certo reconhecimento à companhia. "Este filme representou algo muito maior.

Foi uma autêntica escola onde todos os setores funcionaram harmoniosamente", escreve Audrá Júnior em suas memórias. Com roteiro adaptado de um conto de Monteiro Lobato e trazendo o ator Procópio Ferreira no papel principal, O Comprador de Fazendas chegou a ter uma temporada de grande sucesso de público tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, mas os exibidores tiraram o filme de circulação.


  A derrocada

Os problemas relatados por Audrá Júnior eram, na maioria das vezes, relativos à dificuldade de competir com as grandes indústrias internacionais de cinema, que, assim como acontece hoje só que de forma ainda mais acentuada, detinham o mercado distribuidor. Além disso, o governo não permitia que os ingressos de cinema fossem corrigidos. Sem contar as questões com o controle da bilheteria, como no caso de O Comprador de Fazendas. Entre 1954 e 1956 foram feitos sete filmes em esquema de co-produção: Magia Verde, Carnaval em Lá Maior, Mãos Sangrentas, Quem Matou Anabela?, Getúlio, Glória e Drama de um Povo, Pensão de Dona Estela e Cinco Canções. Além de Leonora dos Sete Mares e Os Três Garimpeiros, de produtores independentes que alugaram a infra-estrutura da empresa. Segundo descreve Audrá Júnior, o período que se estabeleceu depois de 1956 foi marcado por um acordo com a Columbia. A esperança era de uma distribuição mais eficaz. O legado da Cinematográfica Maristela inclui a participação em produções que entraram para a história do cinema - entre elas, O Grande Momento (1958) de Roberto Santos. Mário Audrá Júnior, o Marinho, ficou esquecido, mesmo no meio cinematográfico, até a década de 80, quando foi procurado por pesquisadores que se interessaram por sua história, como Afrânio Mendes Catani. Antes de morrer, em 2004, Marinho escreve Memórias de um Produtor. "Mário Audrá Júnior foi um herói do cinema brasileiro", afirma Luciano Ramos. "Era um cara rico, já freqüentava as altas rodas... Não era uma coisa que ele fazia para se promover. Ele colocou dinheiro no cinema simplesmente porque acreditava nele. O plano era bom, o que não era bom era o país."





Memórias de uma companhia de cinema
Os filmes da Maristela não eram só aventura nas telas, mas nos bastidores também

A Companhia Cinematográfica Maristela realizou produções em meio a histórias marcantes, que vão desde brigas de elenco até acidentes graves. Em Presença de Anita, o primeiro filme da companhia, a confusão se instalou entre o produtor-geral, Mario Civelli, e a atriz Tônia Carreiro, escalada para o papel principal.

Até hoje não se sabe o que aconteceu, mas o fato é que Tônia, que tinha acenado com a aceitação, desistiu de participar do filme. "Civelli, tentando contratá-la, irritou-a de tal maneira que não houve meios de convencê-la a reconsiderar sua negativa", escreve o criador do estúdio, Mario Audrá Júnior, no livro Cinematográfica Maristela, Memórias de um Produtor (Silver Hawk, 1997). Em parceria com a TV Record, foi rodado o filme Quem Matou Anabela?, praticamente criado para que a bailarina espanhola Ana Esmeralda, paixão de Audrá Júnior e que tinha acabado de começar a carreira no cinema, permanecesse mais tempo no Brasil. De fato, além das filmagens, ela voltou para lançar o filme no Festival Internacional de Cinema de São Paulo. Os dois se casaram e Ana Esmeralda ainda participou de outra produção da Maristela, Yerma, adaptado da obra de Federico García-Lorca.

Os dois nunca mais se separaram. Já na fase final da companhia, em 1956, durante as filmagens de Arara Vermelha, com Anselmo Duarte e Odete Lara, rodado no litoral de São Paulo, Audrá Júnior sofre um acidente de carro e perde uma perna. "Marinho viu sua mobilidade ficar muito diminuída naquela época, foi muito difícil para ele superar o acidente", conta o crítico de cinema e historiador Luciano Ramos. "Mas, ainda assim, ele continuou fazendo projetos até o final de sua vida. Ele quis continuar filmando."



O cinema do Jaçanã
Filmes da Cinematográfica Maristela são exibidos no Sesc Santana



Como parte da programação do projeto Nos Trilhos do Trem das Onze, evento que propõe, até 5 de fevereiro, uma viagem no tempo até a época em que o famoso trem da Cantareira era um dos símbolos da cidade, o Sesc Santana apresentou, em novembro e dezembro, um ciclo com quatro filmes produzidos pela Companhia Cinematográfica Maristela, criada em 1950 pelo produtor Mário Audrá Júnior no bairro do Jaçanã, Zona Norte de São Paulo. As obras são registros de como era a capital paulista em meados do século 20. Também foi exibido o documentário A Sétima Arte em São Paulo (2004), de Dimas de Oliveira Júnior e Felipe Harazim, que resgata a história do estúdio. A seguir, as sinopses das fitas, fornecidas para o Sesc pela Cinemateca de São Paulo.

Meu Destino É Pecar (1952) - 6 de novembro. O filme (foto), dirigido por Manuel Peluffo, conta a história de uma jovem que se casa por interesse com um homem mais velho e vai viver na fazenda da família dele, onde seu novo cunhado tenta seduzi-la de todas as maneiras. O roteiro foi baseado no romance homônimo de Suzana Flag, pseudônimo de Nelson Rodrigues.

Mulher de Verdade (1954) - 13 de novembro. Com direção e produção de Alberto Cavalcanti, a fita fala de uma enfermeira que se passa por solteira para fugir do regulamento do hospital onde trabalha, que não permite mulheres casadas. Muito ao contrário do que ela alega no trabalho, a protagonista é casada com dois homens: um bombeiro e um ex-malandro. O filme tem no elenco nomes como Inezita Barroso e Adoniran Barbosa.

Quem Matou Anabela? (1955) - 4 de dezembro. O filme de D.A. Hamza mostra o desenrolar de fatos ocorridos após o assassinato de Anabela, uma belíssima bailarina, cujo corpo é encontrado à beira de uma represa em São Paulo. O comissário Ramos, interpretado por Procópio Ferreira, é encarregado do caso e interroga as pessoas que moravam com a vítima em uma pensão. Cada uma delas confessa o crime e apresenta bons motivos para cometê-lo.

Pensão de Dona Stela (1956) - 18 de dezembro. A fita foi dirigida por Alfredo Palácios e traz novamente uma pensão como cenário. O lugar está à beira da falência e hospeda os mais variados tipos: um conjunto musical, um médico desempregado, uma cantora de rádio e um jogador de futebol, entre outros. Juntos, eles organizam um concurso para ajudar a dona do estabelecimento a saldar sua hipoteca.