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Entrevista

Iniciativas bem-estruturadas tendo o esporte como foco podem ir além da prática da atividade física ao difundir conceitos de cidadania e inserção social em comunidades
A professora emérita da Universidade de São Paulo (USP) Leyla Perrone-Moisés é uma das mais destacadas críticas literárias do Brasil. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa Brasil-França, do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, a entrevistada deste mês tem foco de estudo na literatura brasileira e portuguesa e é especialista na obra do semiólogo francês Roland Barthes. Autora de vasta obra, publicou também Do Positivismo à Desconstrução (Edusp, 2004) e o recente Vira e Mexe, Nacionalismo (Companhia das Letras, 2007). Por seus trabalhos, recebeu, em 2002, o Prêmio Alejandro José Cabassa, concedido pela União Brasileira de Escritores; o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, na categoria ensaio, em 1993; e as comendas de Officier de l'Ordre des Palmes Académiques, em 1986, e de Chevalier de l'Ordre des Palmes Académiques, em 1970, ambas concedidas pelo Ministério da Educação da França. Na entrevista concedida à Revista E por e-mail, a professora comentou a obra do escritor Mário de Andrade, falou da identidade brasileira e analisou o fenômeno da globalização no campo da literatura.
O título de seu último livro - Vira e Mexe, Nacionalismo - surge de uma anotação de Mário de Andrade. Morto em 1945, seu Macunaíma transformou-se, em alguns casos, na definição do caráter brasileiro. Mário era um nacionalista, um vanguardista ou apenas um sonhador ingênuo?
Mário de Andrade não buscou uma "definição do caráter brasileiro", buscou a apreensão daquilo que ele chamou, genialmente, de "entidade nacional brasileira", com tudo o que a palavra "entidade", diferentemente de "identidade", tem de indefinido e cambiante. A "entidade" que ele intuiu, em Macunaíma, não lhe agradou, no final da história. Mas como uma entidade não é algo predeterminado ou fixo, ainda podemos esperar que ela se transforme. Mário era um nacionalista, mas apenas no bom sentido, de alguém que se preocupa com seu país. Não era um nacionalista ingênuo ou ufanista.
Aliás, de ingênuo ele não tinha nada, era extremamente lúcido. Como cidadão, tinha uma visão bastante crítica de seu país, e, como artista, recusava todo e qualquer nacionalismo, considerando que a arte deve ser universal. Há muitas declarações dele nesse sentido, citadas em meu livro. Macunaíma é o livro mais "nacional" da literatura brasileira, mas não é um livro "nacionalista". Na verdade, é irônico que Macunaíma tenha sido tomado como a definição do caráter brasileiro, porque o "herói da nossa gente" não tinha nenhum caráter, tanto no sentido de características próprias como no de moralidade.
Se Macunaíma representa o Brasil, a previsão de Mário de Andrade sobre o destino do país era bastante sombria. Depois de tantas espertezas, de tantas malandragens, o "herói" termina "capenga" e seus feitos são guardados, irrisoriamente, na fala sem consciência de um papagaio. Essa conclusão melancólica do livro surpreendeu o próprio autor, que confidenciou a Álvaro Lins: "Tudo nos capítulos finais foi escrito numa comoção enorme, numa tristeza, por várias vezes senti os olhos umedecidos, porque eu não queria que fosse assim!".
Costuma-se dizer que Oswald de Andrade foi quem mais plantou as idéias de um Brasil moderno. Porém, a obra mais modernista seria, no entanto, Macunaíma, de Mário. Concorda?
Não me agrada essa eterna comparação dos dois Andrade, quando se trata de decidir quem foi "mais" do que o outro. Os dois foram extraordinários escritores, os dois colaboraram igualmente para a modernidade estética do país, cada um segundo seu talento e seu temperamento. Mário era mais ético, mais reflexivo do que Oswald, que não era um pensador conseqüente, mas um artista de grande inventividade.
A metáfora da antropofagia só é vista com maus olhos por aqueles que não lêem com atenção e sensibilidade o Manifesto [Antropófago] de Oswald, e ignoram o quanto essa metáfora tem dado frutos originais nas artes brasileiras. O curioso é que, como reconheceu o próprio Oswald, quem escreveu a maior obra "antropofágica" foi Mário, com Macunaíma. E Haroldo de Campos considerava Macunaíma como a obra oswaldiana de Mário. Enfim, continuo não sabendo por que temos de continuar comparando os dois para ficar com um ou com o outro, se nossa riqueza consiste justamente em ter tido ambos. E eles não pertencem apenas a São Paulo, como pensam os regionalistas daqui ou de outros estados, pertencem ao Brasil e ao mundo. Estampar a foto de Oswald com um tomate na cara, como fez há tempos uma revista brasileira, é apenas mais uma prova de que os brasileiros menosprezam a própria cultura.
Questões como identidade brasileira, caráter brasileiro e identidade nacional ainda são pertinentes para o Brasil contemporâneo? Quero dizer: tais questões, vindas lá do início do século 20, ou até de um pouco antes, da proclamação da República, ainda estão em aberto?
Questões de identidade nacional estão no primeiro plano entre aquelas que preocupam atualmente a humanidade. Por um efeito perverso, a globalização econômica e informacional, assim como o enfraquecimento dos estados-nações, tem feito eclodir novos nacionalismos em várias partes do mundo. E não apenas "nacionalismos", mas comunitarismos de toda ordem, que só servem para reavivar particularismos religiosos e raciais, que opõem as sociedades umas às outras ou as implodem internamente em guetos conflitantes. No Brasil contemporâneo, a identidade nacional não é mais uma preocupação e um projeto, como foi no romantismo do século 19 ou no modernismo do 20. Ela está latente como patriotada sentimental, infelizmente baseada em frágeis alicerces: futebol, carnaval, praia, caipirinha e belas mulheres.
Exatamente aquela imagem turística que o estrangeiro espera de nós. Meu livro não trata, porém, do nacionalismo em geral, que é um assunto político muito vasto e complexo. Trata dos nacionalismos literários, que são equivocados, porque a literatura ocidental sempre teve uma vocação internacionalista. Os grandes escritores nunca se restringiram aos temas de seus países, muitos deles nem mesmo a sua língua natal. Mesmo quando tem por tema histórias geograficamente localizadas, a grande literatura trata do que é humano em geral, e destina-se a seres humanos, independentemente da pátria do escritor ou do leitor. Por essa vocação transnacional, a literatura é um exemplo da possibilidade de entendimento entre os homens, tão necessário no mundo atual.
Nas artes plásticas, uma certa tendência da crítica menospreza a arte com sotaque regional, privilegiando uma produção com dicção internacional, que não denuncia sua origem de produção. Como vê essa idéia aplicada à literatura? É possível falar em uma literatura regional como expressão de identidade brasileira?
Uma "dicção internacional" é, mais do que nunca, necessária nas artes, sem o que elas ficariam confinadas a práticas e públicos provincianos. Mas para alcançar uma dicção internacional não é necessário "menosprezar o sotaque regional", como você diz. O difícil é fazer com que esse sotaque regional transcenda a mera cor local, e ganhe um caráter universal. Foi o que fez um Guimarães Rosa, com seu sertão indiscutivelmente mineiro e tão grande quanto o mundo. Já o regionalismo cultivado por ufanismo local, ou patrocinado por políticas culturais restritivas, esse só produz obras menores e repetitivas.

A influência de Blaise Cendrars sobre os modernistas não foi nem tão grande quanto pretendem alguns, nem desprezível, como pretendem outros.
Cendrars foi útil pelo fato de chamar a atenção dos modernistas para certos aspectos do Brasil que eles ainda não valorizavam suficientemente.
Mas sua ação no Brasil apenas reforçou um projeto que teria sido cumprido sem sua presença. Seus contatos foram maiores com Oswald do que com Mário, que estava menos preocupado com o reconhecimento europeu.
De modo geral, o que tem sido reconhecido pelos especialistas no assunto é que o encontro de Cendrars com os brasileiros foi um grande mal-entendido: os brasileiros esperavam um vanguardista francês e Cendrars não era nem francês, nem tão vanguardista; por sua vez, o poeta suíço estava mais interessado na flora e na fauna exóticas do país do que em suas produções artísticas.
Esses ingredientes indígenas, usados na literatura brasileira em certo período - José de Alencar, Mário de Andrade e Raul Bopp, entre outros - não surge mais na produção contemporânea. O escritor de agora tirou de seu universo criativo essa ligação com a mitologia de cepa brasileira, nacional?
O índio sempre foi um desconhecido para os brasileiros, e infelizmente continua sendo. Essa "cepa brasileira", como você diz, foi quase totalmente podada, e só reapareceu em dois momentos literários: no romantismo, idealizado à moda européia por [José de] Alencar e Gonçalves Dias, e metaforizado, no modernismo. Mas não é verdade que os temas indígenas não surgem mais na produção contemporânea.
Graças ao maior conhecimento fornecido pelos etnólogos, tivemos, na segunda metade do século 20, obras excelentes como Maíra, de Darcy Ribeiro, e Quarup, de Antônio Callado. Mais recentemente, o índio reapareceu em Meu Querido Canibal, de Antônio Torres, e está muito presente na literatura infantil e juvenil, com excelentes resultados artísticos e didáticos. Graças a esses livros, o índio brasileiro está deixando de ser, para as crianças brasileiras, o norte-americano que ele vê na televisão.
Esse projeto heróico de buscar o Brasil, feito por escritores distintos como Euclides da Cunha, Mário de Andrade e Guimarães Rosa, entre outros, ainda faz sentido hoje em dia?
Não há mais "projetos heróicos", nem no Brasil nem em nenhum país. A literatura atual é um imenso mosaico, feito de modestos pedacinhos de realidade que não formam uma figura inteligível. Em cada um desses pedacinhos, o que fica registrado, com maior ou menor talento pelos escritores mais jovens, é o enclausuramento individual, o desencanto ou o medo diante de uma realidade incompreensível, hostil e ameaçadora. O que é que "faz sentido", hoje em dia?
A chamada globalização foi boa ou ruim para a literatura de países periféricos como o Brasil? Ou isso não interfere na produção?
A globalização foi boa para a edição. Suscitou um interesse maior dos leitores pelo que é produzido fora dos centros hegemônicos, aumentou muito o número de traduções em toda parte do mundo. Mas isso não significa sempre maior conhecimento dos países periféricos. Muitas vezes é apenas um sucedâneo das viagens de turismo, que também aumentaram muito. De qualquer modo, a qualidade da produção não depende de fatores econômicos.
A crítica literária brasileira durante bastante tempo se dividiu entre aqueles que buscavam uma visão mais engajada da realidade brasileira e aqueles que privilegiavam o experimentalismo e as inovações. Tal estágio já foi superado?
Acho que sim. O engajamento no sentido sartriano e o experimentalismo das vanguardas foram característicos do século passado, na produção como na recepção da literatura. E os bons críticos nunca se restringiram a uma ou outra dessas posições. Antonio Candido, por exemplo, nunca foi apenas um sociólogo da literatura, foi também aquele que primeiro soube valorizar as inovações de Oswald, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. A literatura diz o mundo em determinada forma, e o crítico que descuidar daquilo que a obra diz, ou de como a obra o diz, perde metade dela.
Até que ponto a ideologia comprometeu a literatura brasileira? Eu me refiro à politicagem feita em prol de escritores engajados, como Jorge Amado. Ou mesmo projetos literários que se submeteram a esquemas políticos, como as últimas obras de Oswald de Andrade e parte da produção de Patrícia Galvão, a Pagu, entre outros.
Exatamente. Para você conhecer um grande valor da música popular brasileira, tem de saber onde ele vai se apresentar e ir atrás. É a forma que, aliás, vem ao encontro do fato de que o CD já não é mais o caminho mais lucrativo para o próprio artista. Atualmente ele concentra sua atividade no espetáculo. Porque lá cada um paga o ingresso, assiste e vai embora. O A ideologia compromete qualquer literatura, quando se torna dominante e programática. As grandes obras literárias revelam a ideologia de uma sociedade, mas de forma indireta. A ação da literatura sobre a realidade também é indireta, porque as grandes obras não trazem soluções prontas, mas encenam questões importantes e fazem pensar sobre elas.dinheiro entra, o CD não garante nada.
Como avalia a crítica literária hoje praticada na mídia impressa? Ela está mais para algo que reverbera a indústria cultural ou traz um perfil mais independente?
A crítica literária na mídia impressa se ressente do pouco espaço que lhe é concedido e do imediatismo que lhe é imposto. Um livro, na melhor das hipóteses, ganha uma resenha e, dali para diante, não se fala mais dele, é produto vencido. É claro que uma ou outra dessas resenhas, dependendo do crítico, pode ser enriquecedora para a leitura do livro. Mas o que é dito morre ali, não é dada a palavra a quem concorda ou discorda. Não há discussão prosseguida, só interessa aos jornais e revistas se houver uma polêmica, de preferência com ofensas pessoais. Na maior parte dos casos, a difusão de um livro na mídia depende mais da política das editoras e das amizades ou inimizades dos jornalistas. Tenho, porém, a convicção de que um bom livro sempre encontrará seus leitores, por menos que ele apareça na mídia. Mais cedo ou mais tarde será descoberto. O problema é que os autores atuais são também apressados, e desejam o sucesso imediato.
O universo literário brasileiro parece sempre com uma torcida de futebol - Machado de Assis x José de Alencar, Mário de Andrade x Oswald de Andrade, Drummond x João Cabral de Melo Neto. Tal comportamento não denuncia uma certa imaturidade de crítica e público?
Sem dúvida. É o complexo do Fla x Flu, Corinthians x Palmeiras. Também me pergunto por que a valorização de um autor tem de passar pela desvalorização de outro, mas não tenho a resposta. Talvez seja um comportamento ditado pelo desejo de pertencer a um grupo e nele se apoiar. Seus livros sempre trazem textos extremamente claros, objetivos e, em alguns momentos, até poéticos.
Estão distantes daquela imagem de textos críticos intransponíveis, altamente acadêmicos. Qual a importância de praticar uma escrita mais criativa e clara quando se fala de literatura? Fico feliz por você dizer isso. Talvez a clareza que alguns vêem em meus textos decorra do fato de que iniciei minha carreira muito jovem, como crítica literária no antigo Suplemento Literário de O Estado de S.Paulo, e me habituei a escrever pensando num público que precisa ser conquistado e não num público cativo, como são os alunos em sala de aula ou os colegas num simpósio. Só vim a escrever uma tese universitária depois de uma década escrevendo para o Suplemento. E, depois de quatro décadas de leitura e escrita, cada vez mais aprecio a clareza, como uma forma de honestidade intelectual e de cortesia para com o leitor.
Quando se é crítico literário, é um contra-senso falar de obras que são precisas, luminosas, comoventes ou divertidas numa linguagem embaraçada, obscura e sem graça. Esforço-me por ser digna das obras que amo, não apenas pelo que delas digo, mas também por meu jeito de falar delas. Quero comunicar a outros o amor que tenho pela literatura.
Por que o leitor brasileiro às vezes é surpreendente? Por exemplo: os brasileiros são grandes consumidores de autores russos (não apenas os prosadores, mas também seus poetas, como Maiakovsky. Chega ao ponto de escritores como Tolstói e Dostoievsky se tornarem assunto de bar), de poetas considerados difíceis, como Lautréamont e Rimbaud. Tal postura denota um leitor sofisticado em suas escolhas?
Vou lhe contar um fato que parece mentira. Um dia eu estava andando na Brigadeiro Luís Antônio e, como ainda era muito cedo, dois vendedores jovens estavam na porta de uma farmácia. Ao passar, ouvi um dizendo ao outro: "Você já leu Rimbaud?" Pensei que era uma alucinação auditiva. Voltei, entrei na farmácia e fiquei ouvindo a conversa. O vendedor continuou: "É um poeta francês muito legal, escreveu um poema sobre um barco bêbado!" Não me contive e perguntei a ele como havia chegado a Rimbaud. Ele me disse que tinha comprado o livro num sebo de banca e deduzi que se tratava da tradução de Augusto de Campos.
O vendedor tinha apenas o curso secundário, mas era curioso e gostava de ler. Fatos como esse me dão grande esperança no futuro da literatura. Não é preciso ser sofisticado para gostar de um autor, basta ser inteligente e ter acesso a ele. Há, atualmente, vários circuitos de amantes da literatura, que independem da grande mídia e da universidade. Esses se exprimem tanto em conversas de bar quanto em revistas impressas ou eletrônicas, e suas referências são muitas vezes surpreendentes. O que vai mal é o ensino da literatura e a crítica oficial. No que depende dos leitores, a literatura vai bem, obrigada. Os bons leitores não são muitos, mas existem. Esse meu último livro provocou uma discussão com dezenas de intervenções, num blog literário em que pessoas discutiam apaixonadamente Machado de Assis, Borges e outros escritores. •