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Em Pauta

REVISTA E - MARÇO 2008



Gosto ou não gosto


Alvo de polêmica para artistas e intelectuais, a crítica de arte há muito acirra as discussões entre os que fazem e os que analisam obras, espetáculos e filmes. Não raro se ouve que todo crítico é um artista frustrado. Por outro lado, há os que acreditam que o gênero é um "instrumento útil à evolução da cultura artística", conforme afirma o crítico teatral e pesquisador Sebastião Milaré, ao responder à pergunta: qual a eficácia dessas análises em tempos de indústria cultural? - que orienta a seção Em Pauta desta edição. O professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) Waldenyr Caldas também contribui para este debate com um artigo exclusivo. "Pressupõe-se e espera-se que esse profissional [o crítico] seja um especialista sobre o tema que irá analisar. Teríamos assim, certamente, opiniões abalizadas à disposição do público interessado em literatura, cinema, artes plásticas", diz.






Interpretando a crítica cultural
por Waldenyr Caldas


A palavra crítica, no decorrer do tempo, ganhou diversas conotações. Aqui, porém, quero tratá-la exatamente como o Dicionário Houaiss a conceitua: "atividade de examinar e avaliar minuciosamente tanto uma produção artística ou científica quanto um costume, um comportamento; análise, apreciação, exame, julgamento, juízo". No tocante à crítica cultural, por exemplo, pressupõe-se e espera-se que esse profissional seja um especialista sobre o tema que irá analisar. Teríamos assim, certamente, opiniões abalizadas à disposição do público interessado em literatura, cinema, artes plásticas, enfim, nas manifestações artísticas em geral. Esse mesmo raciocínio é válido para o conhecimento científico.

Um trabalho de sociologia, por exemplo, seria bom que fosse analisado por sociólogos e assim por diante. Mas, na prática, nem sempre isso acontece. O que vemos muitas vezes é o desencontro de informações e análises pueris feitas por "especialistas de improviso", mas muito bem-intencionados. Ora, isso não basta. É necessário que a crítica cultural exerça de fato, e não apenas na aparência, sua real função.

É preciso ainda que o público consumidor receba o melhor feedback possível daquilo que deseja ler, ver, enfim, adquirir como produto cultural. Mas isso nem sempre ocorre. É inegável a importância da crítica cultural em nosso país, muito embora em certos momentos ela seja realmente sofrível.

O crítico cultural, por dever de ofício, precisa falar alguma coisa sobre aquele determinado produto cultural (uma obra de arte pintada a óleo, por exemplo) e quase sempre o faz com um discurso subjetivo. Até porque seu instrumento de trabalho, entre outras coisas, centraliza-se essencialmente, mas não só, na análise estética. Pode-se dizer que ele é o modelo ideal da subjetividade. É sempre muito difícil, e em alguns casos até mesmo impossível, se distinguir com clareza ou de alguma outra forma as categorias estéticas inerentes ao belo e ao feio. Esse fato, porém, não é novo.

Desde os tempos de Benedetto Croce [1866-1952, filósofo idealista italiano], passando por Bäumler [Alfred Bäumler, 1887-1968, filósofo e pedagogo alemão] , até nossa contemporaneidade com Luc Ferry [1951, filósofo francês defensor do humanismo secular, que valoriza o uso da razão crítica em lugar da fé], a história dos conceitos estéticos do gosto permanece ainda em processo de formação, à procura de um estatuto mais objetivo sobre o belo, o feio e o próprio gosto.


Talvez o mais importante apanágio do profissional que trabalha com a crítica cultural seja mesmo o discurso centrado na subjetividade. Não há nada de errado nisso, é claro, mas nós não podemos também concordar com suas análises, a não ser que elas sejam realmente convincentes. Mas nós quem? Apenas uma pequena parcela da população que leu a crítica pode discordar. Uma grande parte aceita o subjetivismo do discurso culto do crítico, que termina sendo um formador de opinião quando escreve ou se pronuncia por meio dos veículos de comunicação de massa. Em nosso país, e acredito que não seja exceção, o crítico cultural de formação mediana, quando não tem o que dizer ao leitor, usa de dois expedientes tão semelhantes quanto inócuos. Em alguns casos, dependendo do leitor, poderia até ter efeitos nocivos. São recursos que não servem para nada. O primeiro é o que os lingüistas chamam de função fática da linguagem, e consiste no seguinte: falar ou escrever repetidas vezes a mesma coisa, mudando apenas o vocabulário.

Em outros termos, gravitar em torno do mesmo assunto, usando apenas a sinonímia como recurso retórico. O segundo é a logomaquia, isto é, o uso de expressões ou palavras inúteis e desprovidas de qualquer sentido acerca do tema. Em síntese, o palavreado vão e empolado, tal como faz boa parte dos políticos, especialmente em época de eleição, quando usam e abusam da retórica vazia. O leitor, o espectador e o ouvinte precisam estar sempre atentos à linguagem rebuscada, ao discurso bombástico e pomposo. Quase sempre eles são usados como técnica para impressionar quem está ouvindo ou lendo. Na verdade, há por trás desse artifício uma pseudo-erudição que objetiva esconder deficiências de conhecimento sobre o assunto. É preciso ter muito cuidado.

O texto ou discurso eloqüente e vazio pode envolver o leitor ou o espectador justamente pela emoção. Do mesmo modo que é possível se transmitir o conhecimento científico de forma consistente e objetiva, sem a necessidade do uso de um vocabulário rebuscado, é igualmente possível fazê-lo com a arte, a literatura, o cinema, enfim, as manifestações artísticas de forma simples, competente e objetiva. Assim, o discurso da crítica cultural, normalmente muito hermético, poderia sair de sua "redoma". Ele certamente alcançaria uma parte da população tão ávida por novidades quanto aquele segmento das classes sociais mais abastadas, conhecido como um público mais cult e, pelo menos teoricamente, mais exigente. Aliás, essa retórica do vazio tão presente na crítica cultural mediana em nosso país tem aumentado sua influência entre o público consumidor. No cinema, por exemplo, embora não se possa falar de regra geral, a opinião dos críticos tem levado mais ou menos espectadores às salas de espetáculo, de acordo com o que eles escrevem sobre determinado filme.

Com o teatro não tem sido diferente. Isso pode parecer um contra-senso (mas não é), uma vez que, como já disse, em suas análises é freqüente os críticos fazerem uso da função fática da linguagem ou da logomaquia. Acontece que sempre no final de suas considerações, ainda que subjetivamente, o crítico opina contra ou a favor do espetáculo. E isso, em última instância, é o que vai pesar na decisão do espectador. É claro que todos esses comentários não fornecem os elementos suficientes para que se possa, de fato, considerar a crítica de uma obra. O trabalho realmente consistente do crítico, seja de um livro, seja de um espetáculo ou de qualquer outra manifestação artística, deve procurar aproximar o leitor, o espectador e a obra. E essa aproximação não significa, necessariamente, entrar em juízo de valor no tocante à qualidade da obra. Essa é uma questão, por exemplo, muito mais de foro íntimo do leitor. Ele precisa dessa autonomia e o crítico cultural competente sabe muito bem como lidar com essa situação. É sua função servir de guia e, ao mesmo tempo, de mediador do contato entre a obra e a quem por ela se interessar. De outra parte, apenas para finalizar, a crítica cultural em nosso país também tem seus preferidos. É preciso entender, porém, que não há nada de errado nisso. É mesmo uma questão de reconhecer a competência do escritor, do ator, do cineasta, gostar do seu trabalho e assim por diante.

O crítico, afinal, por sua vez, termina dando uma visibilidade significativa àquele profissional que, no decorrer do tempo, consubstancia ainda mais sua imagem de excelência no que faz. A tendência em situações como essa é a consolidação do prestígio. Até porque outra parte da crítica pode também repetir os elogios ao trabalho desse artista, especialmente se o crítico que a fez inicialmente tem prestígio em seu meio. Desse estágio em diante, o artista passa publicamente a adquirir respeito e importância suficientes para que lhe atribuam um status de quase unanimidade. Nesse momento, ocorre uma interessante simbiose que, como diz a própria palavra, vem beneficiar a ambos. E não se trata de compadrio, absolutamente. Trata-se de uma situação perfeitamente lícita, reflexo da admiração pela qualidade do trabalho do artista e vice-versa. É natural, ou quando menos compreensível, até por uma questão de coerência, que ambos troquem elogios publicamente, sempre que as oportunidades aparecerem.

Conhecemos diversos casos, com algumas nuanças, claro, que podem ratificar esse exemplo. Na música popular brasileira, o cantor/compositor Cartola tornou-se uma espécie de "monstro sagrado" e, como tal, praticamente intocável. No entanto, ele mesmo dizia que não gostava de certas canções que havia feito. Isso não tira o mérito e a qualidade da sua obra, é claro, mas é uma forma de desmistificar-se publicamente. Esse procedimento, por outro lado, adianta muito pouco. Ele já tem a consagração da crítica e do público. Apenas para continuar no âmbito da música popular brasileira, quero lembrar de Chico Buarque. Discreto, respeitoso e muito educado com a grande imprensa, ele sempre disse que não gosta de holofotes e se comporta coerentemente nesse sentido. No entanto, pelo seu reconhecido e consolidado talento entre o público e a crítica, ele já não depende muito mais desta, nem da chamada indústria cultural. Ele, como outros nomes da cultura brasileira, parecem ter invertido essa situação. Talvez até os críticos já reconheçam isso.


Waldenyr Caldas é professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP)




Novos caminhos da velha e boa crítica
por Sebastião Milaré



A crítica, como instrumento útil à evolução da cultura artística, tem no mundo de hoje a mesma importância que teve na Grécia Antiga, onde Platão e seu discípulo Aristóteles estabeleceram os primeiros sistemas de análise crítica conhecidos no mundo ocidental. Não se pode imaginar o desenvolvimento das artes sem a instituição complementar a elas, que é a crítica. A história demonstra que a constante atualização da cultura, determinando o avanço das linguagens artísticas, teve sempre o respaldo de intelectuais capacitados à análise teórica e à discussão do fenômeno estético. A mesma história insiste em demonstrar que a ausência do pensamento crítico empobrece o ambiente cultural e deixa tanto o artista quanto o apreciador das artes sem referências conceituais que os auxiliem na compreensão da obra e na relação dela com outros pronunciamentos estéticos, ou de seu papel na tradição daquela linguagem.

A função do crítico não corresponde ao entendimento popular, que aflora em expressões como "fulano só sabe criticar", querendo dizer que o sujeito vive falando mal das coisas e/ou das pessoas. A boa crítica não consiste em falar mal ou bem da obra e de seu criador ou seus criadores: tem função analítica e depende da cultura de quem a exerce (o crítico), de sua capacidade de relacionar a manifestação estética analisada com outras, contextualizando-a e proferindo um julgamento sobre a obra à luz do conhecimento. A figura do crítico, entre nós, vem tradicionalmente ligada a um periódico, e sua função confunde-se com a do jornalista, cabendo-lhe informar ao leitor a qualidade do produto estético, seja ele um livro, um espetáculo de teatro, uma exposição de artes plásticas etc. Isso não deixa de ser verdade, mas não é inteiramente verdadeiro. O jornalista ao redigir a notícia deve ser objetivo, ater-se ao fato e não interpretá-lo, esforçando-se por alcançar absoluta imparcialidade. Já o crítico é também objetivo, mas interpreta o fato (o fenômeno estético) e é apenas relativamente imparcial, pois a apreciação da obra requer a subjetividade e representa um ponto de vista - o ponto de vista do crítico.

Tais diferenças separam a função do crítico e a do jornalista, embora nada impeça que uma pessoa exerça competentemente ambas as funções. A vinculação da figura do crítico ao periódico nos dá hoje, no Brasil (mas não apenas no Brasil), a idéia melancólica de falência da crítica, como se a reflexão séria e erudita tivesse perdido terreno para a postura simplesmente opinativa, expressa de maneira apressada e sem aprofundamento. Quem viveu os anos 50 e 60 do século passado, ou o jovem pesquisador que visite os periódicos daqueles tempos, não escapa à nostalgia de uma época em que a crítica ocupava generosos espaços nos jornais e nas revistas, quando o crítico tinha a liberdade de expor suas idéias e, com o próprio estilo, levar o leitor interessado no assunto a também se aprofundar em determinado modo de ver a arte e de conceber o mundo. Terá acabado essa saga de críticos? Com certeza, não acabou. Felizmente as artes brasileiras amadureceram de modo integral, ao longo do século 20.

Em nossos meios culturais a teoria, a prática e o pensamento crítico convivem de maneira mais ou menos pacífica, não dispensando salutares atritos, que ensejam a reflexão contínua, sem a qual dificilmente as artes avançam. O que estamos vivendo há algumas décadas, parece-me, é uma "crise de meios". Sob os rígidos critérios de redação em vigor na imprensa atual, que visam à economia de espaço e impõem a locução direta, em que idéias abstratas e subjetivismos de linguagem não têm lugar, a tradicional figura do crítico de periódico sofreu fatais abalos. São raros os profissionais que conseguem aliar às normas de redação as próprias prerrogativas de linguagem, driblando a objetividade nua e crua dos lugares-comuns com uma objetividade pessoal e poética. A maior parte dos atuais "críticos de periódicos", em nome de suposta objetividade, não escapa às armadilhas das normas, sacrificando subjetivismos e idéias abstratas que desde sempre aproximam o discurso crítico do espírito da obra analisada.

Daí o fortalecimento de uma crítica simplesmente opinativa, que não vai muito além do "gostei" ou "não gostei". "A função do crítico é 'pensar' o espetáculo e não induzir o público a consumir aquela obra. Essa função cabe aos divulgadores e aos publicitários, não ao crítico. A destinação da crítica, desde os primórdios, está além do mercado" Nota-se, por outro lado, que a reflexão crítica vai se deslocando para diferentes meios de veiculação e distribuição. Os meios mais antigos, que todavia permanecem como ambiente para a crítica reflexiva, são publicações pontuais, vinculadas a eventos específicos, como catálogos de exposições e programas de espetáculos. Numa outra vertente, boa parte do pensamento crítico atual floresce em publicações acadêmicas, pois, a exemplo da pesquisa, também a reflexão intelectual vai encontrar na universidade campo fértil para se expandir.

Isso, no entanto, traz o inconveniente da distância em que muitas vezes se posiciona o acadêmico do criador, incorrendo na "pura teoria", como se a teoria pudesse prescindir da prática. De todo o modo, apesar de algumas óbvias (em muitas ocasiões nem tão óbvias) distorções, a literatura acadêmica vem apresentando exemplos notáveis de reflexão crítica, que interessam especialmente aos estudiosos das artes e aos criadores, estabelecendo novas fronteiras para o pensamento crítico. Em alguns países da América Latina surgem publicações bancadas pelos próprios críticos, especialmente na área das artes cênicas. Nessa mesma linha de procedimento, novas possibilidades para o restabelecimento da crítica reflexiva surgem graças aos meios eletrônicos, na rede internacional de computadores, a internet. Esse é um território ainda pouco explorado, por ser recente, mas através dele críticos de diferentes áreas culturais começam a se manifestar.

Na verdade, a internet aponta-nos uma eventual redemocratização do pensamento crítico, tornando sua veiculação possível ao intelectual que a ele se dedica e, na outra ponta, tornando-o acessível a qualquer usuário da rede. Isso nos leva a outra questão controversa: em que medida a crítica exerce influência no público consumidor de arte? No caso do teatro, a forma direta de questionar é quanto a se o parecer favorável do crítico faz aumentar o número de espectadores na platéia, e vice-versa. Sabe-se que isso nunca ocorreu entre nós. São famosas as afirmações de Dercy Gonçalves de que "a crítica especializada me detesta, mas o público me adora". Realmente os críticos dos anos 50 e 60, empenhados em contribuir para a elevação do nível artístico do moderno teatro brasileiro, não perdoavam as chanchadas de Dercy e a arrasavam constantemente em suas resenhas; no entanto, jamais faltou público à ilustre cômica.

Esse exemplo se multiplicava em salas cheias, para espetáculos mal recebidos pela crítica e, muitas vezes, salas quase vazias em espetáculos elogiados pela "especializada". Contudo, e a bem da verdade, estamos diante de uma falsa questão. A função do crítico é "pensar" o espetáculo e não induzir o público a consumir aquela obra. Essa função cabe aos divulgadores e aos publicitários, não ao crítico. A destinação da crítica, desde os primórdios, está além do mercado. É a expressão de um pensamento analisando outro pensamento, que é a obra de arte. Sem alcançar um patamar poético, a crítica perde sua força e validade. Além disso, pela sua natureza, é sempre didática, nunca publicitária.

Aqui reside a importância da crítica, do ponto de vista de sua relação com o público: um instrumento que ajuda o cidadão a pensar a obra de arte, a compreender o discurso estético. Quando a boa crítica se difundia fartamente pelos meios de comunicação de massa, embora não interferisse de modo tão sensível na bilheteria, os teatros tinham a platéia melhor orientada, espectadores que entendiam o espetáculo como manifestação artística, do espírito, e não simplesmente orientados pelo próprio humor, gosto e sensibilidade não cultivada. Orientar a sensibilidade do público e apurar o gosto estético é a verdadeira função da velha e boa crítica.


Sebastião Milaré é crítico, pesquisador de teatro e autor de, entre outros livros, Antunes Filho e a Dimensão Utópica (Ed. Perspectiva, 1994)