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Ficção Inédita

Os Rapapés da Despedida
por Fábio Lucas
Rondava o Profeta Elias o fumacê da fama, pois seu olhar estorricava os pássaros na gaiola, fazia murchar as samambaias e estiolar os gerânios. Sua voz rascante prenunciava catástrofes, maus augúrios, dissabores. Ultimamente, contraíra o hábito de mover-se religiosamente até o Correio Municipal, a fim de presenciar a chegada dos sacos de correspondência. Macambúzio, ouvia a voz trovejante de Dona Dulce, que gen-tilmente distribuía as cartas e encomendas.
Os jornais, em assinatura, destinavam-se aos fazendeiros, gente rica, cujos representantes recolhiam as coleções até a vinda dos donos legítimos à cidade, nos sábados e domingos, dias de missa, compras e visitas. O Profeta, cabisbaixo, todavia empinado, no seu jeito de soberba, lançava olhares cobiçosos à musa de Transvalina. Diziam que ele fora casado com a deslumbrante mulata Quitéria, aquela de Andirobas, a dos olhos verdes. Falsa magra, pernas finas, coxas grossas, caixa trepidante pelo caminhar compassado. Num dia inesperado, desaparecera, levando consigo apenas a trouxa de pertences pessoais. Fora monitorada pelo mascate Ibraim Saliba e, insistiam, rumou para São Paulo, juntamente com o filho único, Ramiro Júnior. O Profeta Ramiro aguardava perdidamente uma carta de São Paulo, três linhas que fossem para acalmar o coração. Notícias de Quitéria ou do Júnior? As opiniões se chocavam. Vagas fumaças.
O Júnior, constava, já seria um grande craque do futebol paulistano. Quitéria amasiada... tantas lérias. O Profeta arquitetou na mente o dia e a hora em que se visse a sós com a Dona Dulce. Enquanto isso, ia gastando o trivial: Carta pra mim? O olhar de cão corrido comovia a Dona Dulce e ela desmanchava-se em palavras de gala e consolo. Consolo e também uma chamazinha de esperança, por que não? Seu Ramiro, esqueça o passado. O senhor é moço, vistoso, sacudido, e tem sua renda certa, de aposentado, sempre haverá moça transvalinense a conquistar. Dê uns tratos na figura, freqüente os bailes e as rezas, algum peixe haverá de sobrar no fundo da rede. A vida é jogo, seu Ramiro. Tem suas doçuras. A boca apertava-se nas "doçuras", tomava a forma de um beijo. O Profeta, tão solto e ácido, foi-se amoldando às horas va-gas de Dona Dulce.
Nada de carta de São Paulo, mas sempre a fortuna de esperar com as ouças abertas à voz do poderoso oráculo. Seu Ramiro, a sua não chegou ainda, mas está a caminho. Dona Dul-ce, após o pregão das novidades advindas de todos os quadrantes, sentava-se, deixando ver as pernas sublimes que o avental do serviço entremostrava. Ela se divertia com o Senhor Ramiro, agora a orbitar em torno de seu pequeno planeta. Ela se apiedava da solidão em que o pobre coitado vivia, alvo da bisbilhotice e da malquerença municipal. Temia seu esbravejamento e, mais do que tudo, seu mau-olhado. Podia fulminar um cristão. Mas, que isso? Seu Ramiro viera de gravata e chapéu de domingo. Que tempos são estes, de esquisitices? O Profeta virara hóspede diuturno do Correio. Quando o carteiro, Joaquim Nanico, manco e sofrido, trazia o saco pesado da estação, emocionado suspirava pela carta. Como emocionado escutava a cantilena da Dona Dulce.
Seu Ramiro tão mudado, ela pensava. Escolhia as palavras, rosto lavado, vai ver que até tomara banho. Numa das vezes, trouxera duas rosas bravas, daquelas que nascem nos quintais. Pra Senhora não esquecer da gente. Ela: deixa em cima do armário, Seu Ramiro. Depois vou providenciar uma jarra. Tão bonitas, não carecia!... Dona Dulce cogitava das mudanças do mundo, do poder onipresente das metamorfoses. Multidão de luzes se acendiam no seu espírito. As Graças caíam do céu, o mundo girava a todo vapor, o sol da prosperidade raiava no horizonte da Pátria. Deus ouvia as suas preces e despachava para a Terra uma legião de anjos para protegê-la. O Seu Ramiro... Até que Dona Dulce, um dia, segredou que iria sentir muita falta da pessoa de todos eles, mas fora transferida para a agência de Queluz de Minas, onde ficaria noiva do primo Altair Fontoura, dono de uma loja de tecidos. Em breve, tiraria férias para cuidar de tudo: mudança, enxoval e noivado. Saudade de todos. Noiva? A sociedade quedou-se boquiaberta. Lembram-se da bomba sobre Nagasaki? O efeito devastador foi igual, quando a notícia, na velocidade da luz, se espalhou por Transvalina. Mais outra bomba, a de Hiroshima, caiu sobre as secretas intenções do Profeta Ramiro que, taciturno, se trancafiou em casa por três dias, até que saiu, de luto, na hora regulamentar de inquirir da carta de São Paulo. Chovia.
Poucas pessoas. Com as barras das calças molhadas, mas altivo, ereto e de cabeça erguida, Dom Ramiro sentou-se na primeira poltrona vaga e esperou que Dona Dulce estivesse só, à disposição de suas premonições catastróficas. Ele, que na fuga de Quitéria com o Júnior, fizera duas cruzes no rastro deles e, depois do mangalaô-três-vezes, riscou-lhe, a ela, traiçoeira, a mais cruel das pragas: morrer leprosa, degolada, ou, melhor ainda, com os panos em chamas numa cilada da sorte.
Metódico, não se conteve com os agouros que lhe trouxeram fama: pediu ao compadre Antenor-da-Caixa d'Água, pai-de-santo, que sacudisse um ramo de erva daninha na direção da fugitiva. Assim se confirmaria herói vingador da imperfeição humana, destino imposto pelo Criador.

Ele, agora, no silêncio da manhã escura, antes que Dona Dulce o cobrisse de lisonjas e agrados, adiantou-se sublime, solene, ao balcão e estendeu-lhe a carta ofício que laboriosamente tracejara na reclusão: hoje é dia de a Senhora receber, ao invés de entregar. Leia, por favor: Exma. Sra. Dona Dulce, em mãos: Até concentrar-me em vós, rodeava-me a neutralidade do mundo. Os desejos ardiam na chama da antecipação da morte, esta já de morada na alma. Cumpria-me augurar as leis do Destino, fulminadoras de todas e quaisquer veleidades. A vossa presença em mim fez subtrair-vos da claridade de minha reputação, do meu ente em profusão de autenticidade. A Sorte envolveu-me solene. Eis-me presa de vossos encantos.
Deixo, por esta, de investir em vós, tão suprema na urdidura dos meus devaneios. Retiro-vos do meu belvedere, para onde acorriam os mistérios gozosos. Vejo, neste transe, remover-se o vosso vulto do meu repertório. Vós que nada fizestes para evitar que vos retraísseis ao fatal esquecimento, que vos esfumaceis do meu pasmo deleitoso. Aquele trovão de agoniado prazer, seguinte ao relâmpago que partiu as trevas no meio, tirou-vos do não-ser, revelou-me o vosso aspecto divinizado. Tudo aquilo se precipitou para sempre ao buraco negro do olvido. Vós estáveis na raiz do meu espanto jubiloso. Fizestes-me recuperar a flâmula de justiceiro. Apaguei-vos da cosmografia do pensamento. A tal ponto que nem em efígie desejo levar-vos à pira da desmemória, a fim de que não renasçais das cinzas.
Eu não estarei presente ao meu funeral. Desde agora, silentes os tambores da minha admiração, baixo a cortina, retiro-me do palco. Exilada do sonho, não mereceis o sortilégio da posteridade. Nem no séqüito da paixão povoareis o retábulo das aleluias. Faltar-vos-á o oxigênio da réplica, a maturidade da fala que move os corações e a prodigalidade da imaginação. Sois o ser que se despede, o barulho que se esvai ao correr das águas na curva do rio interminável. Sois falecido sonho. Silêncio, em suma. Nada, portanto. Solene, silente, o Profeta se retirou do recinto, curvando-se em mesuras, como uma espiga de arroz aos ventos do infortúnio. Dona Dulce, atônita, aguardou o seu lento afastar e deslizou suavemente o envelope ao lixo. •