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Capítulos brasileiros
por Manuel da Costa Pinto
por Manuel da Costa Pinto

TV Cultura/Divulgação
Atualmente coordenador editorial do Instituto Moreira Salles, apresentador do programa Letra Livre (da TV Cultura) e colunista do caderno Ilustrada, da Folha de S.Paulo, o crítico é autor, entre outros livros, de Literatura Brasileira Hoje (Publifolha, 2004) e de Antologia Comentada da Poesia Brasileira no Século 21 (Publifolha, 2006).
Na conversa que teve com o Conselho Editorial da Revista E, o convidado deste mês fala da busca de uma identidade brasileira como característica dos nossos mais diferentes movimentos literários, explica que nossa poesia "não tem nada a ver" com a portuguesa e fala da última vez em que fomos modernos no campo da arte. A seguir, trechos.
A afirmação de uma literatura brasileira é uma preocupação que, na prosa, por exemplo, está presente em desde um livro como Macunaíma [de Mário de Andrade] até o romance regionalista. Por diferentes que sejam um romance do José Lins do Rego e um de Mário de Andrade, ambos têm essa mesma idéia de investigar um pouco o Brasil profundo - o que, na verdade é uma idéia romântica. O modernismo brasileiro, por seu aspecto nacionalista, é muito ligado ao romantismo: apesar de todas as idéias de transformação, vanguarda, ruptura etc., nosso modernismo é romântico no plano de valores que não são necessariamente estéticos, mas de representação da realidade.
São preocupações compartilhadas com o romantismo. Existe toda uma idéia de investigar a identidade cultural do país, da mesma maneira como há preocupação com a investigação e criação de uma linguagem que seja essencialmente nacional. A Semana [de Arte Moderna] de 22, cuja palavra de ordem é a antropofagia [a poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade], associa idéias futuristas, influenciadas pelas vanguardas européias, a um "mito" que explique nossa singularidade social e cultural, esse hibridismo em relação às raízes autóctones, européias e africanas.
O coloquial e o pomposo
Uma das coisas mais simples, porém mais fundamentais da Semana de 22 é uma rejeição à linguagem da poesia portuguesa, da lírica portuguesa. A gente vê isso hoje na poesia brasileira. Você pega um poeta português - tirando Fernando Pessoa, um caso muito singular, um autor realmente inclassificável (até porque ele é vários autores) - que esteja longe de ser inesquecível e verifica que ele ocupa na poesia portuguesa um lugar semelhante ao que João Cabral de Melo Neto ocupa, ou ocupou um dia, na poesia brasileira.
É o caso de Sophia de Mello Breyner Andresen, que morreu faz uns dois anos [em 2004]. Sua poesia é pomposa, em alguns momentos chega a ser kitsch; a despeito de ser considerada uma grande poeta, sua linguagem em certos momentos é tão saturada, tão verborrágica, que causa mal-estar em quem está acostumado com a poética desinflada do modernismo brasileiro. A poesia brasileira não tem nada a ver com a poesia portuguesa. É outro registro, outra dicção. Isso pode ser visto, por exemplo, no coloquialismo que aparece em boa parte da produção de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Dante Milano, poetas da coisa provinciana e da coisa pequena, miúda, do cotidiano - coloquialismo que, de certa maneira, foi um pouco ideológico, rompendo com a linguagem bacharelesca que a gente herdou de Portugal. E por que fazer isso? Porque é claro que a gente, muito mais do que em Portugal - por razões culturais, históricas, educacionais, seja lá o que for -, tem uma gigantesca defasagem entre linguagem escrita e linguagem falada. Normalmente a [nossa] fala coloquial está muito distante do registro culto: reaproximar a poesia da linguagem oral foi uma das propostas do modernismo na criação de uma tradição literária especificamente brasileira.
Atraso idílico
O [crítico literário] Antonio Candido tem uma expressão muito interessante. Ele diz que os românticos tinham a "consciência amena do atraso". Ou seja, uma visão idílica do atraso. O Rio de Janeiro, a corte brasileira no século 19, ainda é aquela cidade levemente provinciana, cercada pela vista bucólica do campo, da floresta etc. Afinal, nós sabemos que somos uma civilização degradada em relação à européia, porém, com seus encantos. E Candido contrapõe, então, essa consciência amena do atraso à "consciência catastrófica do atraso" que surge nos anos 30, 40, quando a gente já está vivendo um período de maturidade política e de tensões brasileiras e mundiais. Época na qual já passamos por experiências [dos anos] de 1920, 1922, 1930, que foram as grandes revoltas, revoluções ou grandes conflitos internos brasileiros. Ou seja, não há mais possibilidade de falar de maneira edulcorada, idealizada, sobre nossas próprias contradições, da nossa relação entre "casa-grande e a senzala" [referência ao livro homônimo de Gilberto Freyre]. Não dá mais para idealizar a casa-grande e a senzala como o Gilberto Freyre fez até certo ponto, sendo aliás muito criticado por isso.
Os últimos modernos
A partir dos anos 50, surgem os talvez últimos dois grandes movimentos estéticos no Brasil: o concretismo e o neoconcretismo. E um deriva do outro, é mais ou menos a mesma salada. Representam o último momento do projeto moderno - e talvez sejam os movimentos mais autenticamente modernistas da história da arte brasileira. Para o bem a para o mal. Muitas vezes o resultado é pífio. Mas há também, por exemplo, a idéia de estabelecer uma equivalência entre linguagem e design. Quando a gente pega um poema concreto, vê a transformação da palavra em um objeto do mundo industrial, racionalizado. Ou seja, design não como "desenho" (como se traduz erradamente, por causa do falso cognato), mas no sentido correto, como "projeto". O designer é um projetista e o design é, de certa maneira, uma das pontas-de-lança do modernismo que deriva da arquitetura. De Le Corbusier e Niemeyer, a arquitetura representa alguns ideais de racionalidade, de funcionalidade, de projetar o mundo, que é um ideal modernista.
A utopia modernista consiste em se apropriar da realidade e, através da razão e da criação, reinventar e controlar o mundo - uma utopia que teve sua maior realização no urbanismo e na arquitetura. Não por acaso, a poesia concreta surge no mesmo momento em que Brasília é construída. São dois projetos paralelos, mas também coincidentes. É só pensar na racionalidade dos edifícios de Niemeyer e no cerebralismo da poesia concreta. Para ir ao mais simples: Brasília nasce do quê? De um plano-piloto do Lucio Costa. Já o manifesto da poesia concreta, que é de 1958, chama-se Plano-piloto para a Poesia Concreta. Ou seja, há um cruzamento evidente nessa idéia de projeto e racionalidade: esse é o último suspiro da modernidade no Brasil. •