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O Brasil precisa de mais engenheiros

À procura de profissionais qualificados, empresas contratam estrangeiros

ALBERTO MAWAKDIYE


Foto: Arquivo PB

Bem mais acostumados a procurar emprego no exterior do que a ver estrangeiros trabalhando no próprio país – a não ser executivos e técnicos de alto escalão ou operários não-qualificados, como os bolivianos na indústria coreano-paulistana de confecções –, os brasileiros podem ir se preparando para tomar um susto: daqui para a frente, eles toparão cada vez mais com engenheiros civis, eletrônicos, metalurgistas ou de mineração que falam outros idiomas que não o português.

A projeção é do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Confea): centenas de engenheiros estrangeiros deverão ser contratados por empresas brasileiras no decorrer de 2008 e 2009, incluindo cerca de 600 chineses a serem trazidos pela Companhia Siderúrgica do Atlântico (CSA), cuja usina está sendo construída em Santa Cruz, bairro do Rio de Janeiro, para produzir coque, um dos insumos do aço.

Obviamente, a presença de engenheiros de outros países trabalhando no Brasil também não é uma novidade – há vários deles em atividade, por exemplo, na indústria automotiva e nuclear, e apenas a multinacional da área de celulose International Paper (IP), que tem unidades espalhadas por todo o país, trouxe, no ano passado, quatro engenheiros civis dos Estados Unidos para ajudar em seu processo de expansão.

O que espanta é a rapidez do crescimento dessa presença. Em 2006, por exemplo, o Confea analisou o pedido de registro de meros 34 engenheiros estrangeiros. Esse número aumentou para 47 em 2007. E deve agora crescer para a casa das centenas, segundo admite o principal órgão da categoria.

Espera-se também uma maior diversificação das nacionalidades desses profissionais. O Confea é procurado, tradicionalmente, por portugueses e espanhóis. Estes agora terão a companhia, além dos chineses, também de colegas da Europa Central, de outros países da América Latina, da Austrália e da África do Sul – estes últimos para trabalhar principalmente na área de mineração.

"A verdade é que há falta de engenheiros no mercado brasileiro, num momento de expansão da economia e quando as empresas estão precisando mais desesperadamente deles", diz Marcos Túlio de Melo, presidente do Confea. "As companhias estão sendo obrigadas a fazer todo tipo de ginástica para preencher as vagas, inclusive trazendo gente de fora."

O mais grave é que estão faltando engenheiros em praticamente todas as áreas, mas com maior intensidade justamente nos setores da economia que mais estão investindo, como construção civil, açúcar e álcool, energia, petróleo, petroquímica, siderurgia e mineração.

A Vale, por exemplo, estima que vai precisar de pelo menos mil engenheiros nos próximos cinco anos para sustentar sua expansão nas operações de mineração e na construção de ferrovias e portos. A companhia pretende investir US$ 60 bilhões nesse período, dos quais 74% serão aplicados em obras no Brasil. "Sem mão-de-obra qualificada, no entanto, corremos o risco de ter de reduzir esses investimentos", já avisou Roger Agnelli, diretor-presidente da empresa.

A meta da Petrobras, de contratar cerca de 6 mil engenheiros nos próximos três anos, também vem esbarrando na falta de profissionais. Igualmente, o setor siderúrgico já vê ameaçado seu projeto de ampliação da capacidade instalada dos atuais 37 milhões de toneladas/ano para 78 milhões de toneladas até 2012, por falta de engenheiros metalurgistas.

"Precisaríamos de pelo menos 600 novos engenheiros por ano para sustentar essa expansão", afirma Horacídio Leal Barbosa Filho, diretor executivo da Associação Brasileira de Metalurgia e Materiais (ABM), a entidade técnico-científica do setor. "Infelizmente, não há esse contingente no mercado. Na verdade, já estão faltando engenheiros até para tocar a produção atual."

Anos 1910

Não é difícil entender por que o Brasil chegou a essa situação – que lembra um pouco a das primeiras décadas do século 20, quando o país, por falta de universidades suficientes, tinha de importar engenheiros ingleses, alemães e franceses para tocar seus projetos de construção civil, operar suas ferrovias e cuidar da produção de suas indústrias têxteis e alimentícias.

A verdade é que o Brasil não está, simplesmente, formando engenheiros na velocidade e quantidade necessárias para acompanhar o ritmo de crescimento da economia, que começou a sair do marasmo na virada dos anos 2000.

Apesar de a oferta de cursos de engenharia ter dobrado do final da década de 1990 para cá, atingindo hoje algo em torno de 300 mil vagas – o problema, portanto, não é, como antes, a escassez de cursos, embora a qualidade de muitos deles possa ser bastante discutida –, o Brasil não chega a formar 30 mil engenheiros por ano no Brasil, ante 300 mil na China, 200 mil na Índia e 80 mil na Coréia do Sul, apenas para citar economias de desenvolvimento equivalente. O país precisaria pelo menos duplicar o número atual.

Há segmentos assustadoramente desfalcados. Na área de engenharia metalurgista – que é fundamental para a siderurgia –, por exemplo, atualmente não são formados mais do que 140 engenheiros por ano. E, destes, só cerca de cem decidem prosseguir na carreira.

"O problema é que, por causa da crise econômica que devorou a indústria e os investimentos em infra-estrutura do país durante mais de 20 anos, a engenharia deixou de ser uma área atrativa para os jovens", explica Rivana Basso Fabbri Marino, vice-reitora de extensão e atividades comunitárias da Fundação Educacional Inaciana (FEI), localizada no ABC paulista e uma das mais tradicionais universidades voltadas para a engenharia do país.

De acordo com ela, poucas vagas foram abertas para engenheiros naquele período – e em áreas como a construção civil, na verdade, muitas acabaram sendo extintas, obrigando milhares de profissionais a mudar de atividade, como o célebre engenheiro que "virou suco" em São Paulo (abrindo uma lanchonete), ou a desdobrar a profissão para a área bancária ou de consultoria. De fato, segundo dados da Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros, o número de profissionais formados entre 1995 e 2005 superou em estarrecedores 66% o número de empregados.

Os poucos profissionais que permaneceram militando na área, além de suportar seguidos achatamentos salariais, tiveram de assistir, impotentes, à consolidação da profissão de engenheiro – que até o final dos anos 1950 era reconhecida como de caráter liberal, com o mesmo status de médico ou advogado – como uma atividade técnica convencional, de relevância social muito menor. Enquanto tudo isso acontecia, uma legião de jovens com vocação técnica escolheriam, desconfiados, cursos aparentemente mais promissores, como aqueles ligados à área de informática.

O resultado é que hoje chega a espantar a pequena participação dos engenheiros entre os formandos brasileiros: apenas 8 para 100, enquanto na Coréia a proporção é de 20 para 100. O Brasil tem somente 1,5 estudante de engenharia por grupo de mil habitantes. A Argentina tem 3, e o Chile, 4,5.

"Vamos demorar ainda um bom tempo para repor essa mão-de-obra perdida para a crise", constata Haruo Ishikawa, vice-presidente de Relações Capital-Trabalho do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo (SindusCon-SP), cujo setor cresceu bem mais do que o país no ano passado – 8%. "Estamos contratando engenheiros e arquitetos como há tempos não fazíamos, mas não em número suficiente."

De acordo com o executivo, dos 169.998 profissionais dessas categorias que estavam encaixados no mercado de construção civil em fins de maio deste ano, nada menos do que 38.841 – espantosos 19,45% – foram contratados a partir de janeiro.

Para algumas áreas, a sangria de empregos fez mais do que afugentar estudantes – acabou mesmo por eliminar ou desfigurar o próprio curso. Devido à crise da demanda, diversas instituições de ensino superior – dentre elas a tradicionalíssima Escola de Engenharia Mauá, na Grande São Paulo – fecharam seu curso de engenharia metalurgista, depois de mantê-lo às moscas durante mais de uma década. Já a Universidade Mackenzie e a FEI transformaram esse curso no de engenharia de materiais – cujo currículo é muito mais aberto e palatável.

Tapa-buracos

Naturalmente, as empresas, escolas e entidades não estão assistindo impassíveis à aparente derrocada do interesse dos estudantes brasileiros pela área de engenharia – até porque, no caso das primeiras, elas sabem que é ilusão achar que poderão compensar o déficit de profissionais apenas com engenheiros do exterior. Estes podem, no máximo, tapar alguns buracos.

O fato é que o Brasil não está sozinho nessa busca desesperada por engenheiros – hoje, esses profissionais não estão sobrando em nenhum lugar do mundo. As décadas de 1980 e 90 foram ruins em termos econômicos para todo o planeta, e mesmo não sofrendo nesse campo tanto como o Brasil, os países de industrialização mais avançada também viram o interesse pela engenharia arrefecer entre seus estudantes, por falta de investimentos na indústria e em infra-estrutura. Portanto, a disputa por quadros de engenharia tende a tornar-se não só globalizada, como cada vez mais onerosa.

Praticamente todas as empresas elevaram bastante os salários – um engenheiro metalurgista trainee ganha hoje entre R$ 2,9 e R$ 3,9 mil, e o piso salarial de um engenheiro eletricista da Petrobras é de R$ 5 mil. Muitas começaram a investir também na formação – seja ela específica ou generalista, pois outro problema da engenharia brasileira estaria na preparação dos estudantes, considerada, muitas vezes, entre inadequada e insuficiente pelo mercado, embora comumente forte em áreas novas, como a informática.

A Petrobras, por exemplo, mantém um curso de engenharia de petróleo na Bahia. Já a Vale, em parceria com universidades públicas e privadas, criou cursos de especialização nas áreas de mineração, ferrovia e portos, que aparentemente estão obtendo excelente receptividade. No primeiro processo seletivo, foram abertas 330 vagas, e o número de inscritos – constituídos por engenheiros de todas as áreas imagináveis – foi superior a 16 mil.

A ABM, do setor siderúrgico, assinou convênios semelhantes com instituições como a Universidade Federal de Ouro Preto, em Minas Gerais, e as Pontifícias Universidades Católicas (PUCs) de Minas e do Rio de Janeiro, além da paulista FEI, para o estabelecimento de cursos de pós-graduação lato sensu para que engenheiros de outras modalidades adaptem-se à área metalurgista.

A entidade também vem executando um amplo trabalho de divulgação em escolas secundárias a respeito da profissão e de suas excelentes perspectivas futuras. E, de olho no ensino médio, o SindusCon/SP vem fazendo gestões com o governo paulista para que seja aumentado o grau de especialização dos cursos de tecnólogo, de modo que este possa executar pelo menos parte das funções do engenheiro civil.

Na área metal-mecânica, a Romi, grande fabricante de máquinas operatrizes de Santa Bárbara d’Oeste (SP), já desenvolve há tempos um curso de trainee para estudantes de engenharia de várias modalidades. São oferecidas 15 vagas de cada vez. A IVM Automotive, multinacional do ramo de autopeças sediada no ABC paulista, está preferindo investir em um tipo de treinamento que fica entre o técnico e o científico.

"Muitos engenheiros saem da faculdade sem interesse em pesquisar e obter informações sobre a área que desejam seguir", afirma Renato Perrota, diretor executivo da IVM. "Vejo um excesso de prioridade sobre o ganho financeiro em detrimento da carreira. Faltam engenheiros preparados para atender à forte demanda das empresas."

As escolas também vêm fazendo a parte delas, para além das parcerias com grandes empresas. A Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), de Canoas (RS), abriu, por exemplo, uma graduação em engenharia de produção – um curso já bastante antigo no Brasil, mas que só hoje está recebendo a valorização que merece –, cuja ênfase está justamente no diferencial dessa modalidade: sua polivalência.

"A engenharia de produção da Ulbra tem caráter generalista, e o profissional que ali se formar poderá atender aos mais diferentes mercados", explica Rubens Gehlen, coordenador do curso. "Ela agrega disciplinas comuns às demais engenharias, como mecânica, civil e química, e também conhecimentos de gestão e qualidade. Nosso engenheiro não saberá operar um torno, como faria um engenheiro mecânico, mas terá total domínio sobre o processo de torneamento e a partir daí poderá otimizar sua operação", diz Gehlen.

Sem dúvida, parece que o pessoal começou a se mexer.

 


Mestres e soldadores também sumiram

A crise econômica das décadas de 1980 e 90 expulsou do mercado não apenas os engenheiros, mas também contingentes inteiros de trabalhadores especializados. Na construção civil, os mestres-de-obras – operários para lá de experientes, e que na verdade coordenam o dia-a-dia do canteiro – estão tão em falta como os engenheiros. Tão raros eles se tornaram que alguns deles estão recebendo salário de até R$ 10 mil.

Um fenômeno semelhante de encolhimento atingiu a categoria dos soldadores. A Associação Brasileira de Soldagem (ABS) estima que apenas de 7% a 8% dos soldadores que estão hoje no mercado preenchem os requisitos mínimos para ser considerados qualificados. Ou seja, possuem o segundo grau completo e sabem operar equipamentos automatizados, o que pressupõe ter algum conhecimento básico de informática e de performance de materiais.

O grosso dos soldadores atuantes é constituído de operários de perfil antigo, e que eram ao mesmo tempo maçariqueiros, caldeireiros ou serralheiros, uma espécie de faz-tudo que hoje tem pouca serventia para o mercado, a não ser na manutenção. Os jovens fugiram da profissão durante o período recessivo, migrando para outras áreas técnicas, como a informática.

A Petrobras, por exemplo, está apavorada com esse cenário, já que terá de empregar uma legião de soldadores qualificados para tocar seus projetos de expansão na área de plataformas e gasodutos. Junto com empresas parceiras, federações industriais e entidades educacionais, a estatal está desenvolvendo programas de formação de soldadores para jovens de baixa renda. Outra companhia, a fabricante de tratores Caterpillar, de Piracicaba (SP), também está investindo na formação desses profissionais, só que dentro de sua própria unidade fabril.

Assim como acontece com os engenheiros, o déficit de soldadores está afetando também os países industrializados e deflagrando uma espécie de "caça ao homem" globalizada. No ano passado, uma delegação do Canadá veio ao Brasil exclusivamente para recrutar soldadores com nível comprovado de excelência (que o Brasil sabidamente tem).

Salário oferecido: R$ 20 mil. Pelo que se sabe, ninguém foi. Apesar de ser o dobro do que recebe um soldador brasileiro no ápice da carreira, não pareceu compensador para os consultados trocar o paparico das empresas e o trópico ensolarado pelo cortante e prolongado inverno canadense.

 


Fenômeno não é somente brasileiro

A falta de interesse dos estudantes pela engenharia está longe de ser um fenômeno exclusivamente terceiro-mundista, ainda que a Argentina e o México estejam vivendo problema bastante parecido com o do Brasil.

No Japão – país que deve seu extraordinário desenvolvimento econômico às ciências exatas e à inovação tecnológica –, o número de universitários formados em engenharia e áreas correlatas caiu 10% desde 1999. A porcentagem de alunos em engenharia diminuiu de 21,1% em 1970 para 17,8% em 2003.

Cada vez mais, os estudantes japoneses têm preferido seguir carreiras como arquitetura, design, artes plásticas, computação e finanças, disciplinas que, em tese, dariam mais dinheiro e mais espaço para a individualidade, além de depender menos das oscilações macroeconômicas.

Nos Estados Unidos, o número de graduados em engenharia também desabou: de 77 mil em 1985 para 60 mil na virada do ano 2000. Na Inglaterra, a queda foi de 7%.

Esses países enfrentam o mesmo obstáculo que o Japão: um certo ar de velha economia que ainda impregna a engenharia, uma possível menor remuneração e a memória de um período estagnado para a profissão que ainda está bastante próximo de todos.

Até a Alemanha, que poderia ser considerada a pátria das engenharias mecânicas e químicas, sofre com a falta de engenheiros. E pode sobrar para o Brasil. Os alemães estão atrás de recém-formados brasileiros para que façam doutorado e mestrado em siderurgia naquele país.

O problema é realmente mundial e já afeta praticamente todas as grandes companhias. A gigante siderúrgica euro-indiana Arcelor Mittal estava no ano passado vasculhando o planeta para admitir 300 trainees nas várias unidades do grupo, inclusive no Brasil.

A falta de engenheiros assume caráter irônico quando se pensa que o desemprego estrutural continua sendo uma praga mundial, inclusive nos estratos universitários, e que foi a "mão invisível do mercado" – ou a falta de planejamento estatal/empresarial/educacional – que levou a essa distorção.

No Brasil, por exemplo, o índice de desemprego mal deslizou para baixo dos 10%. E, entre os jovens – faixa que inclui os universitários –, a taxa ainda tem oscilado em torno de 18%.

Em média, para cada cinco analfabetos desempregados, há sempre um ou dois com nível superior, dependendo do momento econômico vivido pelo país. Hoje, certamente, os engenheiros não estão incluídos entre esses desocupados forçados – mas eles amargaram na fila durante as décadas de 1980 e 90, e é certamente por isso que tão poucos estudantes agora fazem questão de um dia portar prancheta (ou laptop) e capacete.

 

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