Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Festival de raízes

Evento em Olímpia, no interior paulista, atrai grupos de todo o país

DELFIM MARTINS


Apresentação da Sociedade Folclórica Boi de
Morros, do Maranhão / Foto: Delfim Martins

A história da cidade de Olímpia, no interior de São Paulo, começou em meados do século 19, quando arrojados desbravadores avançaram pelo interior em busca de novas fronteiras e riquezas. O mineiro Antônio Joaquim Miguel dos Santos foi um desses heróis, que se encantou com aquela região cercada de inúmeras nascentes e a batizou poeticamente de Sertão dos Olhos d’Água. Hoje o município contabiliza 60 riachos, dos quais o principal ainda é chamado córrego dos Olhos d’Água.

O nome atual da cidade surgiu em 1906, quando a localidade se transformou em distrito de Barretos, e se deve a uma homenagem a Maria Olímpia, filha única de Antônio Olímpio Rodrigues Vieira, chefe político daquela cidade. E, já em 1918, Olímpia tornou-se município.

Nessa cidade, distante 417 quilômetros da capital e hoje com 48 mil habitantes, foi criado há 44 anos, por iniciativa de um grupo de professores da rede estadual de ensino liderado por José Sant’Anna, um Departamento de Folclore, que se tornou o embrião do Festival de Folclore, hoje o maior do Brasil.

As apresentações anuais aconteciam inicialmente na Praça da Matriz, até que o local se revelou muito acanhado para o grande número de grupos e de turistas que acorriam anualmente à festa. Passou-se então a utilizar um centro de esportes, que também se mostrou insuficiente, até que se inaugurou, em 1986, o Recinto do Folclore, com uma área de 9 mil metros quadrados. A arena principal desse espaço tem arquibancadas para aproximadamente 10 mil pessoas e há um palco secundário para apresentações simultâneas. Os ingressos são gratuitos e não faltam barracas de doces, comidas típicas e brinquedos e diversões para todas as idades.

O local recebe também participantes de outros eventos, como o Salão de Pinturas e Artes Folclóricas e minifestivais, destinados às crianças em idade escolar.

A grande festa

O Festival do Folclore ocorre todos os anos na primeira semana de agosto. São nove dias de apresentações, com grupos que se revezam à noite nos palcos do Recinto e durante o dia nos bairros da cidade. O Museu de História e Folclore (ver texto abaixo) também faz parte desse circuito cultural, apresentando exposições de arte relacionadas ao evento.

Aos sábados os grupos abandonam as áreas fechadas e tomam conta das ruas, promovendo um desfile multicolorido pela avenida principal, aplaudidos pelos moradores e visitantes.

Os grupos vêm de todo o país. Alguns viajam do distante nordeste, atravessando de ônibus cerca de 3 mil quilômetros, como os Parafusos, da cidade de Lagarto, e os Bacamarteiros, de Carmópolis, ambos do interior de Sergipe, que participam do festival há 35 anos consecutivos. A história dos Parafusos remonta ao tempo da escravidão. Reza a história que os escravos, vestidos com anáguas roubadas das sinhás, pintavam o rosto de branco para assustar as pessoas e fugir. Depois da libertação, usavam vestimentas semelhantes para dançar pela cidade. É um dos mais representativos grupos de folclore do nordeste e foi até imortalizado no curta-metragem "As Aventuras de Seu Euclides: Os Parafusos", dirigido por Marcelo Belarmino. Segundo o estudioso Adalberto Fonseca, o responsável por seu nome foi o padre Salomão Saraiva, que dizia que os negros, ao dançar, pareciam parafusos.

Quanto aos Bacamarteiros, o nome deriva dos bacamartes, armas de fogo antigas que os dançarinos usam de fato, animando a festa com ensurdecedores tiros de festim durante as danças. Diz a tradição que o costume vem de antigas homenagens aos santos juninos, quando os tiros faziam as vezes dos fogos de artifício, que ainda não existiam na região. As roupas utilizadas lembram realmente os folguedos de junho, com os vestidos estampados, chapéus de palha e camisas coloridas.

O grupo Bacamarteiros foi protagonista de uma situação inusitada, narrada por seu coordenador, José Rolemberg dos Santos, conhecido como Deda. Anos atrás, após uma apresentação em Belo Horizonte, pegaram a estrada em direção a Olímpia e no meio do caminho foram parados pela Polícia Rodoviária Federal. Quando os policiais revistaram o ônibus e encontraram os bacamartes, acreditaram tratar-se de um grupo disfarçado do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que planejava invadir alguma propriedade. Diante da insistência de Deda, que mostrou as roupas e outros instrumentos que usavam nas apresentações, os policiais, ainda relutantes, liberaram o grupo, apreendendo no entanto as armas até que alguém provasse sua regularidade.

Os organizadores do festival entraram em desespero, pois os Bacamarteiros se apresentariam naquela noite. Coube ao professor Sant’Anna correr atrás de um pequeno monomotor emprestado e, com dinheiro arrecadado às pressas para o combustível, ir pessoalmente liberar os inofensivos trabucos. Deda, que o acompanhou, confessou mais tarde que sua preocupação maior não foi a possibilidade de perder as velhas armas, mas o medo terrível que sentiu nessa viagem forçada no pequeno avião.

Outro grupo que tem presença constante no festival são os Tropeiros de Borborema, cidade do interior da Paraíba, que têm como ponto forte o xaxado, com movimentos inspirados na dança dos cangaceiros de Lampião. Com 26 anos de atividades, os Tropeiros já se apresentaram em todo o país e representaram o Brasil em festivais internacionais na França, Portugal, Espanha e Coréia do Sul.

De origens tão diversas, as manifestações culturais são variadas. Da congada ao bumba-meu-boi, do catira ao boi-de-reis, do reisado ao moçambique, do samba de roda ao boi faceiro, muita música, teatro, dança, brincadeira e religiosidade ganham expressão no festival de Olímpia. Um retrato multicolorido do país, de suas diferenças regionais e de suas tradições culturais.

Parafolclore

O festival de Olímpia apresenta números grandiosos. Neste ano, apresentaram-se nada menos que 72 grupos, da região e de outros estados. São mais de 2 mil integrantes, em espetáculos assistidos por um público de mais de 160 mil pessoas. Somente para os componentes dos grupos, os organizadores contabilizaram 32 mil refeições, entre café-da-manhã, almoço e jantar.

Os alojamentos são improvisados em 14 das 17 escolas da região e ninguém se queixa de falta de conforto ou de privacidade. Nas salas de aula o que mais se vê são varais estendidos com roupas de uso pessoal misturadas a peças multicoloridas destinadas às apresentações. Nas salas onde ficam as mulheres as carteiras se transformam em penteadeiras, repletas de perfumes, escovas, batons e espelhos, ou são empilhadas para permitir a colocação de cabides com as roupas.

Segundo Rosali Gobato Ducati, presidente da Associação Olimpiense de Defesa do Folclore Brasileiro (AODFB), o festival vem crescendo ano a ano, apesar de uma polêmica que se acentua a cada realização. Trata-se da discussão sobre as atividades de grupos folclóricos e parafolclóricos. Aqueles mantêm intactas as manifestações da cultura popular, os ritos tradicionais, não descaracterizados pela ação do tempo ou dos modernismos tecnológicos. Estes, menos compromissados com a tradição, preferem o espetáculo e utilizam aquela base cultural para tornar o folclore algo vendável para as grandes massas. Sem entrar no debate, Rosali assegura que "todos os que estudam, amam e divulgam o folclore são bem-vindos ao festival".

A satisfação maior da presidente da AODFB, porém, não se refere somente ao sucesso do evento. O mais importante, diz ela, é o legado que está ficando para as próximas gerações desde que foi introduzida na grade escolar do ensino fundamental do município a disciplina folclore. "Por incrível que pareça, Olímpia, que é conhecida como a Capital do Folclore, até alguns anos atrás não ensinava na escolas aquilo que há 44 anos é motivo de orgulho na cidade."

O festival vem recebendo apoio constante do Serviço Social do Comércio (Sesc), que tem larga experiência em cultura popular e assessora os organizadores na escolha dos grupos, e do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), que oferece consultoria para pequenos e microempresários e orienta os grupos, para que possam constituir pessoas jurídicas. O objetivo é alcançar a profissionalização e facilitar as relações comerciais, agilizando contratações futuras para eventos. Neste ano, o festival contou também com o apoio do governo do estado paulista, graças ao empenho do secretário da Cultura, João Sayad.


Memória preservada

O Festival do Folclore não é o único orgulho de Olímpia. A cidade ostenta também um dos mais completos acervos folclóricos do país, com cerca de 3 mil peças, entre trajes, ornamentos, flores, toalhas, lenços e instrumentos musicais feitos com os mais diversos materiais, além de uma biblioteca especializada. Do lado de fora da construção, uma antiga locomotiva relembra aos visitantes a época entre 1940 e 1950, quando, com o nome carinhoso de maria-fumaça, mantinha a cidade ligada com o resto do Brasil e promovia o desenvolvimento de toda a região.

A origem do museu e do festival se confundem. Ambos nasceram da dedicação e dos trabalhos desenvolvidos pelo professor José Sant’Anna, que organizava exposições de folclore, de início no colégio e posteriormente em outros locais da cidade. O acervo ganhou casa própria em 1973, oito anos após o início dos festivais. Hoje o local é visita obrigatória para quem quer conhecer as raízes da cultura popular e grande aliado dos educadores no ensino de história e folclore.

 

Comente

Assine