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Macroeconomia do desenvolvimento

Taxa de câmbio é preço macroeconômico

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA


Bresser-Pereira / Foto: Nicola Labate

Luiz Carlos Bresser-Pereira, formado em direito pela Universidade de São Paulo (USP), é mestre em administração de empresas pela Michigan State University, doutor e livre-docente em economia pela USP, e economista e cientista social da Fundação Getúlio Vargas, onde é professor emérito. É editor da "Revista de Economia Política" e professor associado da École des Hautes Études en Sciences Sociales. Foi professor visitante da Universidade de Oxford, lecionou regularmente, em nível de pós-graduação, na Universidade de Paris I (1978) e no Departamento de Ciência Política da USP (2001-2002).
Foi secretário do governo Franco Montoro em São Paulo (1985-86), ministro da Fazenda (1987), da Administração e Reforma do Estado (1995-98) e da Ciência e Tecnologia (1999).
Presidiu o Banco do Estado de São Paulo (Banespa), foi diretor administrativo de todas as empresas do Grupo Pão de Açúcar e é membro do Conselho da Cinemateca Brasileira e do Conselho do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Colunista da "Folha de S. Paulo", é autor, entre outros livros, de "Macroeconomia da Estagnação" (2007), "As Revoluções Utópicas dos Anos 60" (3ª edição, 2006), "Democracy and Public Management Reform" (2004), "Desenvolvimento e Crise no Brasil" (1968), "Reforma do Estado para a Cidadania" (1998), "A Crise do Estado" (1992), "Lucro, Acumulação e Crise" (1986), "Inflação e Recessão", com Yoshiaki Nakano (1984), "A Sociedade Estatal e a Tecnoburocracia" (1980), "O Colapso de uma Aliança de Classes" (1978) e "Desenvolvimento e Crise no Brasil" (1968 e 2003).
Esta palestra de Bresser-Pereira, com o tema "A apreciação do câmbio nos países em desenvolvimento", foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, Sesc e Senac no dia 12 de junho de 2008.

Vou falar de um trabalho que venho realizando nos últimos sete anos, uma teoria que considero muito relevante para o Brasil. Em economia, normalmente pensamos em três áreas básicas: microeconomia, macroeconomia e desenvolvimento econômico. Meu assunto é a macroeconomia do desenvolvimento econômico.

Geralmente as pessoas pensam em desenvolvimento econômico em função da produção. Ele depende do trabalho, do capital, da educação evidentemente e das inversões, especialmente em infra-estrutura. Não há muita dúvida a respeito disso, apesar de haver sempre muita gente discutindo o assunto. É preciso, entretanto, lembrar que o desenvolvimento econômico tem o lado da oferta, que é esse, e o da demanda. O investimento tem uma coisa muito curiosa, pois opera tanto do lado da oferta, aumentando a capacidade de produção do país, quanto da demanda. Para que haja desenvolvimento econômico, para que possamos empregar todos os recursos de mão-de-obra, de tecnologia, de fábricas e de terras, é fundamental que haja demanda, ou seja, que os empresários tenham possibilidade de alcançar lucro e que os lucros esperados sejam maiores do que os juros. Também não há muita dúvida sobre isso.

Quem levantou a questão pela primeira vez de forma sistemática foi Keynes. Foi ele na verdade quem criou a macroeconomia, porque a teoria ortodoxa anterior dizia que a oferta criava sua própria procura, a produção levava à demanda. Keynes mostrou que isso era falso e que era necessário intervir. Mas a intervenção de Keynes supunha um modelo de economia fechada, sem comércio exterior. Nesse ambiente econômico, para que houvesse demanda sustentada, era necessário que o governo mantivesse uma taxa de juros relativamente baixa em relação às expectativas de lucro e o crescimento dos salários mais ou menos na mesma proporção da produtividade. O governo agiria com essas duas ações e iniciativas corretivas da política econômica, seja para diminuir impostos, seja para aumentar despesas em momentos de recessão, quando houvesse.

Entretanto, uma coisa curiosamente ficou de fora dessa história. Como Keynes muito espertamente fez um modelo fechado, esqueceram-se de algo extremamente importante chamado taxa de câmbio. E não se lembraram de dizer que essa taxa está do lado da demanda. Em que sentido? Se tivermos uma taxa de câmbio competitiva, isso significa que empresários que controlam uma tecnologia no estado da arte serão capazes de fazer investimentos e de competir internacionalmente, sem nenhuma proteção. No caso do Brasil ou dos países em desenvolvimento de modo geral, que têm mão-de-obra em vários graus mais barata do que os países ricos, há grandes oportunidades de investimento industrial e prevê-se crescimento acelerado. Isso supondo-se um país de renda média que já fez a sua revolução capitalista, já tem uma grande classe de empresários, uma classe média forte, instituições razoavelmente estruturadas e organizadas, um sistema de justiça, proteção dos contratos etc. Dentro dessa sociedade, se houver uma taxa de câmbio competitiva, as oportunidades de investimento são altas, porque se está criando a demanda externa, de todos os países do mundo. Se do lado da oferta o país for competente, poderá exportar extraordinariamente, investir e crescer. Foi o que aconteceu no Brasil nos anos 1970. Nos anos 1960 o país já tinha praticamente terminado sua revolução industrial e, dada uma taxa de câmbio claramente competitiva que prevaleceu na década seguinte, cresceu extraordinariamente, com um aumento brutal das exportações de manufaturados. Em meu livro Desenvolvimento e Crise no Brasil, publicado em 1968, afirmei que a participação das exportações industriais no total das vendas externas naquela época era de 6%, e que precisava aumentar fortemente. Mas nunca imaginei que 12 anos depois, em 1980, esse percentual seria mais ou menos de 60%.

O que estou dizendo é que a taxa de câmbio é um preço macroeconômico. Por definição, esses preços estão do lado da demanda. Só para lembrar, os cinco preços macroeconômicos são: o lucro, que é o preço do capital mais inovação; o câmbio; os juros; os salários; e finalmente a inflação. O preço da moeda externa, que é a taxa de câmbio, é desses cinco o preço mais estratégico. Mário Henrique Simonsen costumava dizer que a inflação aleija mas o câmbio mata. Mata se estiver sobreapreciado. É por isso que Keynes, quando participou de Bretton Woods, insistiu muito que a taxa de câmbio fosse fixa. As nações, ao competirem, com muita freqüência usam a taxa de câmbio como estratégia e podem artificialmente depreciar seu câmbio. Isso é uma coisa que deixa os países, especialmente os ricos, apavorados. No século 19 e começo do 20 já houve esse tipo de experiência entre eles, então procuram o mais possível fazer acordos para que a taxa de câmbio se conserve mais ou menos estável, embora nunca o consigam.

A taxa de câmbio é fundamental para os investimentos, mas não mexe apenas com eles. Quando se fala em taxa de câmbio, pensamos que se trata de um preço que determina importações e exportações, o que é verdade. Essa é a primeira coisa que ela faz direto. Mas ao definir exportações, ela define investimentos também. E ao definir investimentos, define também poupança. Se somos keynesianos, acreditamos que o empresário tem crédito, investe e ao investir a renda aumenta e a poupança cresce com o investimento, não o inverso. Então a taxa de câmbio mexe com importação e exportação, investimento, poupança e inflação. Quando ela baixa, a inflação cai. Quando ela sobe, a inflação sobe necessariamente, porque os custos dos tradeables mudam.

Finalmente, a inflação mexe com salários. Toda vez que a taxa de câmbio se aprecia, como ocorreu nos últimos anos no Brasil, os salários médios reais aumentam, e aí cresce o consumo e a poupança diminui outra vez. A poupança, portanto, depende da taxa de câmbio. Então o diabo dessa taxa de câmbio é realmente um preço muito estratégico e perigoso, que os países devem observar cuidadosamente. É claro que o ideal seria se os mercados fossem perfeitos e ninguém precisasse administrar sua taxa de câmbio, que se equilibraria sistemática e permanentemente. Isso não acontece, entretanto. O mercado é uma maravilhosa instituição de coordenação de uma economia, mas por melhor que seja tem seus problemas. No caso da taxa de câmbio, além das questões relacionadas ao comércio exterior e à conta corrente, ela ainda é determinada por fluxos de capital que nada têm a ver diretamente com a conta corrente, de forma que sofre flutuações com muita facilidade.

Doença holandesa

Por enquanto não disse nada de novo, mas agora vou apresentar a tese que desenvolvi nos últimos anos, que já está proposta, embora não totalmente argumentada, no livro Macroeconomia da Estagnação e num paper mais recente sobre a doença holandesa, que saiu na "Revista de Economia Política". A tese é que nos países em desenvolvimento existe uma tendência estrutural à sobreapreciação da taxa de câmbio. Essa tendência é aumentada por políticas diversas e, se o país não a neutralizar, não se desenvolverá. Essa é a tese. Como demonstrá-la? Não vou usar números mas fazer uma discussão teórica, baseada na experiência que temos. Quais são os fatores que determinam a tendência à sobreapreciação? Em primeiro lugar temos de pensar em duas coisas estruturais, ou seja, que não dependem de políticas, que fazem parte da organização da economia de um país e do mundo. Uma é a doença holandesa e a outra a existência de uma taxa de lucro mais elevada e, por isso mesmo, uma taxa de juros também mais elevada nos países em desenvolvimento, devido à relativa escassez de capitais. Há um debate se no Brasil de hoje temos ou não a doença holandesa. Esqueçam esse problema por um minuto, porque esse mal pode ser gravíssimo, como é o caso da Arábia Saudita ou da Venezuela, ou mais modesto, como é o brasileiro. Vai ficar grave quando o petróleo começar realmente a jorrar e exportarmos óleo para valer. Mas não vamos discutir isso, pelo menos agora. O importante a perceber é que, quando há recursos naturais abundantes e mão-de-obra muito barata, aparece a doença holandesa.

A doença holandesa ocorre quando existem duas taxas de câmbio de equilíbrio, em vez de uma só. A taxa de câmbio de equilíbrio, que normalmente os economistas aceitam como verdadeira, é a que equilibra intertemporalmente a conta corrente do país. Se com uma taxa de R$ 2 por US$ 1 nossa conta corrente fica em torno de zero, podendo variar um pouco para cima e para baixo, mas numa volatilidade modesta, isso é a taxa de câmbio de equilíbrio. Entretanto, um país com a doença holandesa tem uma segunda taxa de câmbio de equilíbrio, que chamo de taxa de câmbio de equilíbrio industrial. É a taxa que viabiliza indústrias, permitindo-lhes utilizar tecnologia no estado da arte, sem nenhuma proteção nem subsídio, sem nada. E há duas taxas porque a doença holandesa é uma falha de mercado que tem como característica estabelecer a taxa de câmbio ao nível do custo marginal de alguns bens – o caso mais grave é o petróleo –, o que é incompatível com a taxa que seria necessária para as demais atividades econômicas, mesmo que utilizem tecnologia no estado da arte.

No Brasil, por exemplo, imagino que a diferença entre essas duas taxas deve variar em torno de 20% a 30%. Num país como a Venezuela ou Arábia Saudita deve estar entre 90% e 95%. Isso é a doença holandesa, a existência de duas taxas de câmbio. Nos Estados Unidos, na França ou no Japão isso não existe. Uma empresa que consegue produzir com tecnologia no estado da arte, a melhor possível, tão boa quanto qualquer outra, é competitiva internacionalmente. Na Venezuela, esqueçam isso. Se uma multinacional ou empresa brasileira da melhor tecnologia se instalar nesse país, em três tempos fecha, a não ser que haja um esquema especial de proteção, subsídios etc. Isso porque a taxa de câmbio torna muito mais barato importar aquele produto do resto do mundo do que fabricar localmente. É uma falha muito grave, mas que mantém equilibrada a conta corrente.

Aí vem o segundo fator. É o fato, bastante conhecido, de que num país em desenvolvimento, por definição, há relativa escassez de capitais. Havendo essa escassez, é razoável que esses capitais tenham uma taxa de remuneração um pouco mais alta do que a de lucro. E é razoável que também a taxa de juros seja um pouco maior. Esse fato atrai capitais para o país, provocando uma sobreapreciação da taxa de câmbio, embora a sobreapreciação causada por essa razão não seja grave, porque, afinal, o diferencial de lucros não é tão grande e o diferencial de juros, portanto, não precisaria ser tão grande. Entretanto, seguindo os conselhos de nossos amigos do norte e os ensinamentos das teorias econômicas, esse problema é gravemente aumentado por políticas econômicas. A primeira e mais conspícua delas é a proposta que nos fazem de crescimento com poupança externa. O raciocínio é muito simples e não é apenas ortodoxia. É um raciocínio geral que prega o seguinte: países ricos em capitais, que são os desenvolvidos, devem transferir seus capitais para países pobres. Se isso for verdadeiro, vamos incorrer em déficit em conta corrente nesse processo e, é bom lembrar, déficit em conta corrente é poupança externa. Então a situação de estar em déficit em conta corrente seria normal, até desejável, desde que não colaborasse para a crise.

É uma afirmação algo grave, sei disso, que vai contra não apenas a teoria neoclássica ou ortodoxa, mas também contra a keynesiana, contra a velha teoria do desenvolvimento de economistas pioneiros como Celso Furtado, Prebisch etc. Digo isso porque essa tese comete o erro, que é comum em outros casos também, de transferir o problema do crédito do empresário para a macroeconomia, para a economia como um todo, esquecendo a conseqüência que existe nesse processo de endividamento teoricamente destinado a financiar investimento sem observar a taxa de câmbio.

Como se define um empresário? É um homem que não possui muito dinheiro, mas tem energia, idéias, força pessoal, capacidade de assumir riscos etc. Ele vai a um banco e a outros capitalistas, apresenta um projeto e pede financiamento. Faz um investimento que é um sucesso, dá lucro, paga seus credores e pronto. Esse é o processo clássico. Ora, se isso é verdade para uma empresa, por que não seria também para um país? Afirmo, entretanto, que não é. O país deve crescer com poupança interna e só raramente recorrer à externa, ou seja, ao déficit em conta corrente. Qual é a diferença? É a taxa de câmbio. Quando se entra em déficit em conta corrente e se começa a receber capitais, isso significa que a taxa de câmbio com tal déficit em conta corrente ou com essa poupança externa é mais apreciada do que seria se houvesse equilíbrio em conta corrente.

Preparem-se para o tamanho do déficit em conta corrente que o Brasil vai ter, será muito grande. Já estão falando de R$ 60 bilhões em 2009. Esse valor é consistente com o fato de o país estar recebendo poupança externa no valor de 4% do PIB.

Mas e daí? Quando acontece essa sobreapreciação, temos outra vez de pensar em termos de oferta e demanda. Do lado da oferta primeiro, que é o mais fácil, o que acontece? Quando a taxa de câmbio desce e chega a R$ 1,60 por dólar, os salários aumentam substancialmente, cresce a capacidade de comprar bens, viagens internacionais etc. Quando sobe o salário, amplia-se o consumo. E diminui a poupança interna, de forma a compensar o aumento da poupança externa. É uma substituição de poupança interna pela externa, causada pela taxa de câmbio.

Do lado da demanda, o que acontece? A taxa de câmbio outra vez valorizou-se, mas o que aconteceu agora foi que, tendo ela se apreciado, as oportunidades de investimento voltadas para a exportação diminuíram. Os empresários reduzem seus investimentos e cai a poupança interna. Essa é a perspectiva keynesiana, uma coisa fecha com a outra e, dependendo da taxa de substituição da poupança interna pela externa, pode até ficar no zero. Zero significa que se pode ter 100% de substituição da poupança interna pela externa. Foi exatamente isso o que aconteceu nos anos 1990 no Brasil. Em 1994 a poupança externa do Brasil era praticamente zero, antes do Plano Real. Aí veio o real, seu enorme sucesso, uma política muito forte de crescimento com poupança externa adotada pelo governo e apoiada pelos economistas e fortemente pelo Tesouro americano. A poupança externa foi de zero até 4,5% do PIB em 1999.

Dentro da lógica da estratégia de crescimento com poupança externa, o que deveria ter acontecido é que nosso investimento, que estava em torno de 17%, subisse para 21,5%. Porém, como houve uma taxa de substituição muito grande, de um pouco mais que 100%, o resultado foi que em 1999 a taxa de investimento continuou em 17%. Ou seja, todos aqueles financiamentos tinham ido para o consumo.

Vejam então que o mecanismo para o país é completamente diferente do relacionado ao empresário. Pode-se dizer que o empresário também enfrenta o risco de câmbio, mas não se trata disso. Estou discutindo outra coisa, é o efeito da sobreapreciação da taxa de câmbio causada pela entrada de capitais na economia, nos salários, nas oportunidades de investimento, essa substituição de poupança interna pela externa. Mas essa taxa de substituição não precisa ser de 100%. Ela pode ser menor, muitas vezes chega a 50% e em certas ocasiões pode ser bem menor que isso. Isso ocorre em momentos em que o país já está crescendo fortemente, como foi, por exemplo, o caso do milagre brasileiro ou da China nos últimos 25 anos. Se o país está crescendo a taxas de 10% ou 11% e recebe mais capital estrangeiro, aumenta mais sua taxa de crescimento e de investimento. Porque tudo depende da propensão marginal a consumir. Nas horas em que o crescimento está muito forte, a propensão a consumir diminui; a classe média especialmente, e uma parte da classe alta, vê seus rendimentos aumentarem em termos reais e separa uma parte importante disso e investe também, de tal forma que a taxa de substituição é pequena. Mas são casos excepcionais. Normalmente, como fizemos insistentemente nos anos 1990, queremos crescer com poupança externa mas só aumentamos o consumo.

Assim, a estratégia de crescimento com poupança externa aumenta a tendência a que haja um déficit em conta corrente, que já existia devido à atração de capitais por taxas de lucro maiores e taxas de juros também um pouco maiores. Há uma segunda teoria. É algo que os economistas ortodoxos chamaram, nos anos 1970, de capital deepening, porque naquela época o Brasil crescia, assim como os países asiáticos, o México etc. a taxas extraordinárias e com freqüência usava taxas de juros muito baixas. Havia casos em que elas estavam muito próximas de zero e em outros eram negativas. A teoria do capital deepening é uma grande argumentação para aumentar a taxa de juros, com a idéia de que quando ela é mais alta coloca mais lógica na economia e que a taxa negativa criaria estímulos distorcidos do investimento, e também porque dessa forma se estimularia a poupança. Economistas ortodoxos acreditam que com o aumento da taxa de juros cresce a poupança. Já foi verificado infinitas vezes que isso é falso, mas continuam pensando assim. Além disso, a taxa de juros elevada atrairia capitais externos, o que é verdade, como estamos vendo agora no Brasil. Só que já vimos também que esses capitais normalmente não nos interessam. Nosso problema não é a falta de capitais, é a falta de demanda para investimentos.

Populismo cambial

São dois fatores do lado externo, mas há o lado interno, que é fundamental também. É uma coisa que venho chamando já há muitos anos de populismo cambial. Não fui eu quem inventou, quem primeiro escreveu sobre isso foi Adolfo Canitrot, grande economista argentino, que foi vice-ministro da Economia na Argentina no tempo de Raúl Alfonsín. Populismo cambial é a política de apreciar a taxa de câmbio para aumentar salários, diminuir a inflação, provocar a reeleição do governante etc., desde que o aumento dos salários e do consumo não aconteça de forma dramática a ponto de quebrar o país. O presidente Alan García, do Peru, adotou essa política nos anos 1980 e foi um desastre monumental. Não conseguiu se reeleger. Muito freqüentemente, porém, essa política não é feita com tanta profundidade que leve à crise ou, então, quando a crise se instala a reeleição já ocorreu, e ela tem de ser enfrentada por quem a criou. A atração que os governantes sentem pelo crescimento com poupança externa inicialmente parece a coisa mais honesta do mundo. Estão apenas desejando financiar o investimento. Mas esses fatores aumentam aquela tendência estrutural a uma taxa de câmbio apreciada.

Isso tudo deixa claro também que o grande problema dos países em desenvolvimento não é o capital externo, mas é ser capaz de promover a capacidade interna de investir e se desenvolver. Por que o Brasil se desenvolveu tão extraordinariamente entre 1930 e 1980? Porque neutralizou essa tendência de sobreapreciação da taxa de câmbio o tempo todo. Ainda que não tivessem consciência do problema, ainda que isso ainda não estivesse claro para os governantes, de um jeito ou de outro houve uma intuição, porque uma tarifa de importação neutraliza a sobreapreciação do ponto de vista da importação e um subsídio à exportação a neutraliza do ponto de vista da exportação. Quando se debate a taxa de câmbio, além de discutir qual é a taxa de câmbio real e a efetiva – que leva em consideração várias moedas e não só uma –, deve-se considerar também o que chamo de taxa de câmbio real efetiva, em que se colocam também as tarifas médias e os subsídios médios à exportação. Criar tarifas e subsídios é a mesma coisa que mexer na taxa de câmbio. Muitos mecanismos foram usados, mas o mais arrumadinho, ou pelo menos o que conhecemos melhor, porque foi o último que funcionou bem no Brasil, foi o de Delfim Netto. Em 1968, Delfim montou esse esquema, que foi mantido mesmo após sua saída. Depois voltou e o esquema continuou até 1985. O mecanismo era muito simples: colocava uma tarifa média de 50% em todos os produtos. Havia uma variação entre eles, mas 50% era o índice médio de tarifas e de subsídio em todos os bens industriais. Só não atingia as commodities exportadas, café fundamentalmente. Com isso, se a taxa de câmbio nominal real no Brasil fosse R$ 2, com essa tarifa de 50% na verdade eram R$ 3 para os importadores e R$ 3 para os exportadores, exceto os de café. A diferença era o famoso confisco cambial, mas isso é outra história.

Desde o primeiro governo Getúlio Vargas só houve um momento em que isso foi interrompido, que é o período entre 1945 e 1947, quando Eurico Gaspar Dutra permitiu uma enorme sobreapreciação do cruzeiro. As divisas foram embora, o país voltou a ficar endividado em três tempos e então interromperam o processo. Depois disso houve crises políticas graves, mudanças nas políticas econômicas, inflação alta em alguns períodos, especialmente entre 1980 e 1994, mas a taxa de câmbio foi rigorosamente administrada. Não está sendo mais, desde 1992, e vem se apreciando sistematicamente. Foi essa apreciação que causou a crise de 1998, bem como a de 2002, e agora estamos caminhando gradualmente para produzir uma nova crise, a não ser que a taxa de câmbio pare de se apreciar.

Acredito que os agentes econômicos infelizmente não têm a racionalidade que gostaríamos que tivessem. Especialmente os investidores estrangeiros, que estão felicíssimos com o Brasil. Pensam que somos um Bric e que, portanto, crescemos a taxas de 8, 9, 10, 11, 12% ao ano. O Brasil cresce a 5% e mesmo esse índice não é garantido com essa taxa de câmbio. Mas eles têm na cabeça que o país é uma maravilha, então continuam colocando dinheiro aqui, seja porque proporcionamos a eles altas taxas de lucro, seja porque garantimos taxas de juros tão monumentais que no curtíssimo prazo vale a pena pôr recursos aqui. Então nossa taxa de câmbio vai se apreciando, é bem possível que se aprecie um pouco mais ainda e, de qualquer forma, quando parar de se apreciar ficará em nível absolutamente incompatível com o desenvolvimento econômico, muito abaixo da taxa de câmbio de equilíbrio industrial, abaixo mesmo da taxa de câmbio de equilíbrio corrente.

Debate

CLÁUDIO CONTADOR – Por que existe tanta resistência ainda, no Brasil, no tocante à liberação do câmbio? Na maioria dos países é permitido abrir uma conta corrente em moeda estrangeira, isso já é prática corrente na Europa e em alguns países da América Latina. No Brasil continua sendo um tabu e o governo alega que com isso perderia controle, quando, na verdade, ocorre exatamente o contrário, pois haveria mais controle sobre o movimento de capitais e isso ajudaria inclusive o Banco Central, porque os bancos teriam de fazer reservas em dólar, euro etc. O que você pensa a respeito?

BRESSER-PEREIRA – Se a taxa de câmbio é de tal forma estratégica, como procurei mostrar, e se existe a tendência à sobreapreciação, que é preciso neutralizar, há uma coisa que eu não disse e é muito importante. Toda vez que se deprecia o câmbio de alguma forma, alguém dos Estados Unidos ou da Europa, mas especialmente um americano, diz imediatamente esta frase: "Você está vivendo às custas de seu vizinho". Um país com uma taxa de câmbio artificialmente depreciada estaria fazendo isso. Por isso insisto que deve haver uma taxa de câmbio de equilíbrio, competitiva, que gire em torno da taxa de câmbio de equilíbrio industrial. Então a abertura da conta capital é muito ruim para um país como o Brasil, onde a estratégia de crescimento com poupança externa veio junto com essa abertura. É preciso ter o controle da taxa de câmbio. Estados Unidos e China a administram completamente.
Mas há uma coisa curiosa que descobri recentemente. Os Estados Unidos, tendo moeda reserva, teoricamente não podem mexer na taxa de câmbio, pois isso significaria perda de confiança. Não obstante, descobri que existe um departamento no Tesouro americano cuja função fundamental é administrar a taxa de câmbio. E está agindo firmemente neste ano para depreciar o dólar, porque perceberam que o déficit em conta corrente estava ficando insustentável. Então muito quietamente fizeram isso. O Brasil está crescendo a taxas muito inferiores àquelas que poderia atingir – esses 5% que todo mundo comemora, quando o país poderia chegar a 10%, com suas riquezas naturais e o preço das commodities – porque a taxa de juros é escandalosamente alta e a de câmbio é exageradamente apreciada. Somos uma grande nação, com um mercado gigantesco. Pode-se até, não sei, permitir abertura de contas em dólar no Brasil. Não pensei seriamente nos prós e contras, mas não é esse o ponto. O fundamental é que não podemos deixar de controlar nossa taxa de câmbio. Devemos mantê-la sempre em torno da taxa de equilíbrio industrial, que não é fácil saber qual é. É um processo de tentativa e erro. Certamente não é R$ 1,60 por dólar, isso posso garantir.

JULIAN CHACEL – Confesso que vou precisar de certo tempo para sedimentar as idéias aqui apresentadas por Bresser-Pereira, porque seu pensamento está longe de ser convencional. Permito-me lembrar, entretanto, a origem da expressão "mal holandês". Nos anos 1960 foram descobertos enormes depósitos de gás na Holanda e a conseqüência foi a apreciação do florim. Dada essa valorização, a indústria do país ficou prejudicada, muito especialmente a Philips. Entendo que essa apreciação da taxa de câmbio não surge como um fenômeno de natureza monetária, que decorra de um jogo de oferta e demanda, mas, sim, da descoberta, que pode ser até repentina, de um enorme volume de recursos naturais. A origem da apreciação viria do lado real da economia.

BRESSER-PEREIRA – Sem dúvida. Por isso a chamei de estrutural.

CHACEL – Estamos de acordo, é um fenômeno de origem estrutural. Quando nos propõe duas taxas de câmbio, a de equilíbrio corrente e a de equilíbrio industrial, penso que seria desejável evitar que houvesse um diferencial entre elas. Talvez seja o ponto central de sua tese. E nesse caso sou obrigado a concordar que deveria haver alguma forma de intervenção do governo no câmbio. Digo mais: dentro do quadro em que se situa hoje o Brasil, em não se fazendo nada, caminhamos para o desastre.

BRESSER-PEREIRA – Só posso dizer que estou de pleno acordo. Eu quis dizer que a doença holandesa cria essa diferença entre as duas taxas, mas estamos abaixo dela ainda, então já começamos a entrar em déficit em conta corrente. A taxa sobreapreciada dificulta toda a atividade industrial do país e limita a exportação.

ISAAC JARDANOVSKI – Essa intervenção do governo, com a qual Chacel concorda, como se faria?

JOSÉ ROBERTO FARIA LIMA – Em complemento à pergunta, gostaria de dizer que basicamente depois da década de 1980 surgiu o fenômeno da explosão da informação, a infra-estrutura de comunicações. Hoje acredito que a soberania nacional está acuada e quem gerencia toda a estrutura financeira são as multinacionais. Aí está o exemplo da China. Então não adianta desejar que o governo atue, porque ele está totalmente impedido de agir. É uma estrutura maior, mundial, que gerencia o processo.

ISAAC – Mas, se o governo pudesse atuar, como faria isso?

BRESSER-PEREIRA – Lembro-me de que nos anos 1960 apareceu nos jornais esta expressão de Mao Tsé-tung: os Estados Unidos são um tigre de papel. Que frase estranha, não? Mao podia ser altamente autoritário, isso e aquilo, mas burro não era. Há uns cinco ou seis anos, verificando o que estava acontecendo na China, de repente percebi o que significava aquela expressão. A China pode fazer o que quiser internamente que os Estados Unidos não podem impedir, apesar de todo o seu poder. Nesse aspecto, seriam um tigre de papel. E foi o que os chineses fizeram: agiram internamente. O que quero dizer é que temos uma autonomia maior do que habitualmente se pensa. Concordo que temos uma dependência muito grande, mas é uma dependência que permitimos. Se realmente quiséssemos reduzi-la enquanto nação, poderíamos. Isso é fundamental.
O mundo da globalização é essencialmente competição. O capitalismo é um sistema econômico em que a competição organiza a economia, mas infelizmente é cego para a justiça. Por isso é preciso intervir para que haja liberdade e justiça, entre outras coisas. Nessa competição, quem tem uma estratégia nacional de desenvolvimento, como os chineses têm e o Brasil tinha na década de 1970 e na de 1950 também, consegue crescer.
Quanto a sua pergunta, qual seria a estratégia de intervenção? Do ponto de vista da taxa de câmbio, é preciso conduzi-la para um nível mais correto, portanto, administrá-la melhor. Entendo que estamos numa armadilha. Se a nossa taxa de câmbio, que deveria ser de R$ 2,50, R$ 2,60 ou R$ 2,70 por dólar, está em R$ 1,60, subir não é fácil. Não é fácil porque a intervenção vai reduzir salários e aumentar a inflação durante algum tempo.

CHACEL – Haverá um imposto inflacionário enorme.

BRESSER-PEREIRA – Enorme, não, mas um imposto inflacionário. Quando o dólar estava em R$ 3,95, Abílio Diniz foi falar com o ministro da Fazenda, Antônio Palocci, que lhe disse que o dólar não cairia abaixo de R$ 3. Ficamos tranqüilos, só que não aconteceu bem assim. Então como é que se faz? Tem de haver uma estratégia combinada, não só do Banco Central, não só do Ministério da Fazenda, mas do governo como um todo. A sociedade precisa dar apoio, e isso implica fazer uma política de ajuste fiscal no momento estratégico, num período de um ano.
Tem de haver um ajuste fiscal muito violento, quase irracional, do tipo do que Fernando Collor fez. Ele foi o único governante brasileiro que fez um ajuste para valer mesmo. Precisamos obter pelo menos déficit operacional zero nesse período, se possível superávit fiscal. Nesse momento se reduz a taxa de juros firmemente. E criam-se controles de entrada de capital, dificultando-a substancialmente durante certo tempo. Sair é permitido, entrar é que não pode.
Essas três políticas – de juros, de câmbio e fiscal – têm de ser somadas a uma última coisa, que é a parte menos agradável, da qual as pessoas não querem nem ouvir falar e que os economistas se recusam a mencionar. É fazer uma retenção no petróleo, no minério de ferro e nos produtos agrícolas brasileiros. Isso é fundamental. Era o que nós tínhamos, a Argentina tem agora, é o que todos os países exportadores de petróleo têm. A retenção tem como efeito deslocar a curva da oferta, de forma que a taxa de câmbio não baixe mais. Quando os exportadores brasileiros desses produtos souberem que se a taxa de câmbio cair abaixo de certo limite estarão em prejuízo, não haverá mais pressão para que ela baixe. Eles param de oferecer produtos a taxas menores e o câmbio fica lá em cima. O problema todo é que ninguém tem coragem de falar sobre isso, pois os exportadores acreditam que são eles que pagam, quando não são.
Vamos dizer que o dólar está em R$ 1,65 e vai para R$ 2,50, um aumento de 85 centavos de real. Suponhamos que se pudesse criar um imposto exatamente igual a esses 85 centavos. Quem paga, os exportadores? Não, porque isso é feito em cima da taxa de câmbio não de R$ 1,65, mas de R$ 2,50. Nem seria preciso pôr os 85 centavos, poderiam ser 80 ou 75. Com a taxa a R$ 2,50, o exportador ganhou e não perdeu. Com a taxa a R$ 1,65, ele está pagando o imposto de 85 centavos. Como ele não recebe, ao não receber está pagando. Então quem paga de fato? Se o governo brasileiro conseguisse elevar a taxa de câmbio e depois colocar entre aqueles produtos uma retenção equilibrada que aumentasse a curva de oferta aproximadamente para esse valor de R$ 2,50, quem pagaria a conta seriam os consumidores brasileiros. Por quê? Na hora em que a taxa de câmbio sobe, o custo das coisas aumenta e os salários diminuem um pouco. Isso é inevitável. Mas os salários no Brasil são artificiais, são altos demais em termos reais, dada a produtividade da economia do país. Então não há nenhum mal em voltar para o nível correto. Isso é difícil as pessoas compreenderem.
Na Argentina não estão entendendo ou entendem pela metade. Se os argentinos cortassem todas aquelas retenções que fizeram, o peso, que está em três e pouco por dólar, baixaria para dois em três tempos. Em compensação, não se devem gastar esses recursos, o ideal é colocá-los num fundo, o famoso fundo soberano. E criar um fundo inclusive de estabilização dos preços dos produtos primários. Uma commodity como a soja está apresentando uma bela renda ricardiana, mas daqui a pouco pode ser afetada por uma queda no preço internacional. Em casos assim o governo usa esse fundo, socorre o setor e mantém sua rentabilidade. Isso seria infinitamente mais lógico. Holanda e Noruega têm um imposto monumental em cima do gás e do petróleo e as retenções chegam a 90%, 95%. Os Emirados Árabes chegaram a 98% e os exportadores de lá estão vendendo naturalmente, isso faz parte do negócio deles. O país garante sua taxa de câmbio e tem um crescimento enorme.

JOSEF BARAT – Por trás da discussão sobre o câmbio há a questão da ênfase que o Brasil dá à condição de exportador de produtos primários. É como se de repente esquecêssemos o período de 1930 a 1980, em que as forças políticas, as instituições do país se voltaram para a industrialização. E o governo se orgulha muito de ser um grande exportador de commodities. É claro que existe uma estrutura industrial consolidada, mas ela não tem condições de estar na linha de frente das grandes inovações. Então penso que isso é um dilema aparentemente sem solução a curto prazo. É evidente que o que você está propondo é um retorno à ênfase na industrialização, que é o que tornará o Brasil um país com controle de seu próprio destino. Aquela mobilização que houve no passado, a coincidência de interesses pela industrialização, hoje não existe, tanto que estamos em crise de crescimento há 20 ou 25 anos. Você acha possível reverter esse processo?

BRESSER-PEREIRA – Sim. Essa pergunta é ótima. O Brasil se desenvolveu entre 1930 e 1980 de forma muito acelerada e esse crescimento esteve sob a égide de uma aliança de classes, pensada por Getúlio Vargas e mantida através dos anos, com altos e baixos durante todo esse período. Getúlio também tentou integrar os trabalhadores nesse pacto e havia setores da oligarquia que participavam. Somente ficaram de fora os exportadores de café e o comércio de importação de bens. Essa aliança entrou em xeque nos anos 1960, depois os militares a restabeleceram. Ela não sobreviveu à crise dos anos 1980, de forma que a partir do começo de 1991, para ser mais preciso, o que passou a ser dominante no país foi uma coalizão de rentistas, que vivem de juros, e agentes do setor financeiro e dos interesses estrangeiros. Os empresários se aliaram aos militares até o final dos anos 1970, quando romperam essa aliança e iniciou-se a transição democrática. Esse período foi de absoluta hegemonia americana neoliberal, pois em 1989 caiu o Muro de Berlim, e todo o Terceiro Mundo entrou em desequilíbrio por causa da crise da dívida externa. Dessa forma as condições em que governou Fernando Henrique Cardoso eram tais que nossos empresários não tinham poder nenhum, a burocracia também tinha se deteriorado, apesar dos privilégios que recebeu da Constituição de 1988.
No início dos anos 2000 isso mudou substancialmente. Começou um debate econômico mais competente, percebeu-se que é possível alcançar desenvolvimento e precisamos ter estabilidade macroeconômica, mas não só controle da inflação, como também dos juros e do câmbio. Ao mesmo tempo em que a hegemonia americana foi por terra, porque todas as propostas neoliberais fracassaram, quem se desenvolveu foram os países asiáticos. A coisa curiosa é que este governo parece o japonês do período antes do milagre: todo mundo é desenvolvimentista, menos o Banco Central. Só que lá no Japão deu resultado, o que não acontece aqui. No Japão, Banco Central e Ministério da Fazenda eram ortodoxos, enquanto o restante do governo era desenvolvimentista, uma combinação que funcionou muito bem, mas aqui não dá certo. Os países ricos sempre cuidaram de sua taxa de juros. A lei que criou o Banco Central americano diz que ele deve controlar a inflação, o emprego e manter taxas de juros moderadas. Aqui não é assim.

JOSUÉ MUSSALÉM – Hoje a inflação está voltando a crescer, mas tudo indica que o real apreciado em relação ao dólar de certa forma contribui para impedir esse movimento. Gostaria de ouvir sua opinião sobre isso. Outro ponto é a criação do fundo soberano, proposta pelo ministro Guido Mantega. A terceira questão é a tendência ao consumo, que ao que tudo indica tem muito a ver com a expansão rápida do crédito. Isso não teria um limitador no tempo? E finalmente a taxa de investimento, que no Brasil é reduzida. Aparentemente isso decorre da ausência do setor público no investimento em infra-estrutura.

BRESSER-PEREIRA – Em relação à última questão, falou-se muito no início dos anos 1990 que estava havendo um desmonte do Estado brasileiro. Não houve, exceto na área de infra-estrutura. O Estado brasileiro perdeu capacidade para fazer investimentos em infra-estrutura e toda a máquina estatal envelheceu. Esse é um problema sério.
Quanto à taxa de câmbio e à inflação, fundamentalmente esta caiu nos últimos anos devido à apreciação do câmbio. Se voltarmos a depreciá-lo, vai haver inflação. No momento ela está mais alta porque está mais elevada em todo o mundo. E também porque há uma inflação de demanda, por aquele motivo que você mesmo disse, a ampliação do crédito no consumo, mais aumento do salário mínimo. Para os industriais está bom porque perdem o mercado externo mas ganham o interno. Em relação à inflação penso que o Brasil só tem um problema verdadeiro, sério e grave, de caráter institucional. São os restos da indexação nos preços dos serviços públicos, que correspondem a uns 30%. Isso continua e é um escândalo.

CHACEL – Com indexação pelo IGP-M [Índice Geral de Preços – Mercado].

BRESSER-PEREIRA – Isso é o absurdo maior. Deveríamos estar batalhando por uma lei muito simples, que dissesse: o governo brasileiro está proibido de indexar qualquer preço e assinar qualquer contrato, concessão ou o que for que inclua indexação de valores. Isso não quer dizer que, se houver inflação, não se vão corrigir os preços dos serviços. Vão, sim, mas como se faz no resto do mundo, negociando, verificando o aumento de preço específico daquele setor e não o IGP-M. Quando há indexação, a inflação sobe e não baixa. Esse foi o drama que experimentamos duramente nos anos 1980, e parece que não aprendemos.

LENINA POMERANZ – Nesse seu esquema, como fica a especulação financeira que hoje marca, de certa forma, a economia mundial? Na história das taxas de equilíbrio, onde é que fica o capital volátil que entra e sai, que vem para cá no curto prazo para ganhar dinheiro na base dos juros e não na da produção?

BRESSER-PEREIRA – Sabemos que o capital financeiro ficou muito mais importante nos últimos 50 anos. Geralmente não uso a expressão "capital financeiro" porque foi um conceito desenvolvido por Rudolf Hilferding, um economista alemão do começo do século, amigo de Max Weber, ao observar o que estava acontecendo na Alemanha quando houve a fusão entre capital bancário e capital industrial. Pensou-se que isso aconteceria no mundo inteiro e não aconteceu, mesmo na Alemanha parou de ocorrer. Mas houve outra coisa muito mais importante na área financeira, que deu um imenso poder a quem mexe com finanças. Foi o fim do padrão-ouro e o fim da conversibilidade em 1971. O dinheiro passou a ser puramente fiduciário, uma coisa que se pode criar quase infinitamente. Vai-se emitindo, criando créditos em cima de créditos. Jovens muito inteligentes passaram a ganhar volumes absurdos de dinheiro nessas operações. Isso evidentemente é um fator de desestabilização das economias.
É esse tipo de capital que hoje controla o Brasil. Por que a taxa de juros fica nesse nível? Se por um milagre eu fosse diretor do Banco Central hoje e tivesse de votar o aumento dos juros no próximo mês, eu o faria. Porque não vejo outro jeito de segurar uma inflação que está aumentando. Quando a economia não estava aquecida, o BC baixou as taxas, podiam ter baixado muito mais, ao nível dos países desenvolvidos. Não o fizeram, porque num certo ponto o sistema de poder existente no Brasil começa a gritar, através da imprensa, que vai haver inflação, e o BC pára muito antes do necessário. Essa taxa de juros a meu ver tem um elemento fortemente político.

LENINA – Político ou especulativo?

BRESSER-PEREIRA – Especulativo, mas político. A sociedade brasileira continua refém da alta inflação. Quando o Banco Central diz que é o guardião da economia contra a inflação e que a taxa de juros precisa ficar em 8% ou 9% reais, a população acredita.

CHACEL – Mas nossa representação política não é formada majoritariamente por rentistas?

BRESSER-PEREIRA – Talvez, nunca vi sob esse ângulo.

CHACEL – Veja os financiamentos de campanha.

BRESSER-PEREIRA – É verdade. Esses financiamentos são bem típicos disso.

LENINA – O Brasil de certa forma é dominado por esse tipo de coisa, a financeirização do capital, que não é aquela do Hilferding, é do excesso de liquidez. Condiciona a atividade interna. Minha pergunta ia nessa direção.

BRESSER-PEREIRA – Por que não voltamos a crescer a taxas muito mais elevadas, como a Índia pelo menos, para não falar na China? O Brasil tem todas as condições para isso. Quando a Rússia começou a crescer? Quando voltou a ser nação. Você deve estar lembrada dos elogios que Boris Yeltsin recebia.

LENINA – O Yeltsin só criou o caos, esqueça-o, comece com Vladimir Putin.

BRESSER-PEREIRA – Mas é exatamente isso. Enquanto Putin é detestado pela imprensa mundial, pela ordem estabelecida, Yeltsin é um herói. O que é importante é o que essa ordem aprecia. Ela elogia aqueles que seguem a regra do jogo, a regra do capital financeiro, das taxas de juros muito altas, câmbio muito apreciado, nenhum controle sobre a economia, nenhuma estratégia de desenvolvimento.

FARIA LIMA – Ou os governantes são corruptos, ou não têm essa visão, ou realmente existe um poder maior utilizando a estrutura multinacional que se implantou no planeta, que impõe condições sobre uma soberania relativa das nações.

BRESSER-PEREIRA – Penso que é tudo isso, ainda que tenha havido uma melhora substancial na sociedade brasileira nos últimos dez anos. Recentemente morreu o senador Jefferson Péres. Um grande homem, mas me lembro de tê-lo ouvido dizer há menos de um ano que a política macroeconômica estava muito boa. Não se percebe que é a política econômica que está por trás das taxas baixas de crescimento. A sociedade ainda não se deu conta do que está acontecendo. Mas está mudando.

LUIZ GORNSTEIN – Gostaria de saber sua opinião sobre o papel do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social]. No governo Fernando Henrique muito do que se chamava de investimento era troca de titularidade e hoje continua assim. Por exemplo, o BNDES está emprestando dinheiro para troca de acionistas entre Brasil Telecom e Telemar. O senhor não acha que, com taxas subsidiadas, isso é perverso para a economia?

BRESSER-PEREIRA – Vou responder isso e mais uma coisa. Quanto à troca de titularidade, tenho muitas reservas; não vejo muita lógica nessa operação. Mas quero dizer outra coisa sobre o BNDES. A taxa é subsidiada e isso é uma das coisas mais perversas que há na economia brasileira. No entanto, se fosse presidente desse banco, eu defenderia ferozmente a manutenção dessa taxa. Enquanto economista, sou 100% a favor da TJLP [Taxa de Juros de Longo Prazo], embora ela seja um absurdo, pois é um subsídio. Desde quando precisamos de subsídio para uma economia industrialmente madura? Isso é profundamente perverso porque temos uma taxa de juros Selic [Sistema Especial de Liquidação e Custódia], que é tabelada pelo Banco Central. O Brasil é o único país do mundo com juros tabelados pelo BC. Então temos uma taxa escandalosamente alta, que inviabiliza o investimento industrial. O que fazer então? Subsidiar o investimento através da TJLP. Desse jeito a população paga duas vezes, primeiro pela taxa muito alta do BC e depois pelo subsídio dado aos industriais, que afinal não é subsídio nenhum porque é a taxa de que precisam. É uma coisa completamente doentia.

MÁRIO AMATO – Quem tem petróleo, tem tudo. Em sua opinião de economista, como controlar o poder do petróleo, dos combustíveis?

BRESSER-PEREIRA – A única coisa que se pode fazer nessa matéria é desenvolver alternativas ao petróleo. Na verdade, são duas coisas: economizar energia e descobrir formas alternativas, porque o custo do óleo vai ficar muito alto, e ele vai acabar. Acredito que a tecnologia vai resolver isso. O fato concreto é que no curto prazo, enquanto isso não acontece, uma renda imensa está sendo transferida para países petroleiros, e o Brasil já é um deles. Então o que precisamos fazer? Urgentemente criar um fundo soberano para o petróleo. Estamos discutindo a retenção que o país já faz, mas desconfio que seja ridícula e poderia ser muito mais alta. E o que o governo vai fazer com esse dinheiro, vai gastá-lo rapidinho? Por isso precisará de um fundo soberano, que deve existir quando há superávit em conta corrente e fiscal. Por enquanto, como não temos nem um, nem outro, sou contra o fundo soberano, mas penso que estamos em vias de necessitar dele por causa do petróleo e talvez por outros produtos que exportamos. 

 

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