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Os segredos das proteínas

Cientistas brasileiros desenvolvem projetos avançados no campo da proteômica

EVANILDO DA SILVEIRA


Cacau: pesquisa busca defesa contra a
vassoura-de-bruxa / Foto: Mariana Rodrigues

Há quase nove anos, mais precisamente no dia 6 de janeiro de 2000, um grupo de pesquisadores brasileiros concluiu o seqüenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa, que causa a doença do amarelinho nos laranjais, responsável por um prejuízo anual de milhões de reais à citricultura brasileira. Foi o primeiro fitopatógeno (microorganismo que ataca plantas) no mundo a ter seu DNA decifrado, o que colocou o país entre os grandes da ciência. Antes e depois desse feito, cientistas de todo o planeta fizeram o mesmo com vários outros organismos, inclusive o homem. Agora, chegou a era da proteômica, o estudo das proteínas, um passo adiante da genômica. Hoje, existem no Brasil dezenas de profissionais dedicados à área, e os primeiros resultados desse esforço já começam a surgir.

Entre os mais importantes está a identificação de proteínas relacionadas a doenças como dengue, leishmaniose, hanseníase, câncer, esquizofrenia e leucemia. Na prática, isso contribui para o desenvolvimento de métodos mais eficientes de diagnóstico desses males e poderá levar à criação de medicamentos e vacinas para combatê-los – algo que só é possível devido ao avanço da tecnologia envolvida nas pesquisas. Embora o estudo de proteínas não seja novidade para bioquímicos e outros especialistas, eles nunca tiveram tanta facilidade para decifrá-las. Diferentemente do que ocorria até há pouco tempo, quando era necessário identificar uma por uma, hoje, graças a novos equipamentos, é possível analisar centenas delas ao mesmo tempo.

É o que vêm fazendo com sucesso os cientistas brasileiros, muitos dos quais agregados em redes de estudo estaduais. A mais antiga, a Rede Proteômica do Rio de Janeiro (Proteoma-Rio), criada em 2001 pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), reúne cerca de 30 especialistas de sete instituições – as universidades Federal (UFRJ), do Estado (UERJ), Estadual do Norte Fluminense (UENF) e Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), o Instituto Nacional de Câncer (Inca), a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

A Rede de Proteoma do Estado de Santa Catarina (RPSC), por sua vez, foi criada em 2005, com apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e da Fundação de Apoio à Pesquisa Científica e Tecnológica do Estado de Santa Catarina (Fapesc). É formada pelas universidades Federal de Santa Catarina (UFSC), Regional de Blumenau (FURB), do Sul de Santa Catarina (Unisul) e do Vale do Itajaí (Univali) e pela Embrapa Suínos e Aves.

Doenças na mira

As duas redes desenvolvem vários projetos. Na do Rio de Janeiro, por exemplo, há quatro em andamento, que pretendem desvendar os proteomas do vírus da dengue, do vibrião da cólera, da bactéria Gluconacetobacter diazotrophicus (fixadora de nitrogênio em plantas) e de veneno de cobras. Em Santa Catarina, estão sendo investigadas as proteínas de bactérias que causam doenças em frangos e porcos e outras que estão envolvidas na resposta imunológica do camarão de cultivo ao vírus da síndrome da mancha branca, mal que ataca esse crustáceo.

Em nível nacional há o programa GenoProt, do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), do qual participam, com seus respectivos projetos, além das redes de pesquisa em proteoma do Rio de Janeiro e de Santa Catarina, as do Amazonas (análise proteômica do fruto do guaranazeiro), Bahia (fungo Crinipellis perniciosa e sua interação com o cacau, em que causa a doença conhecida como vassoura-de-bruxa), Ceará (identificação e caracterização de genes envolvidos na resistência do feijão-de-corda a patologias), Goiás (estudo da parede celular de Paracoccidioides brasiliensis), Minas Gerais (proteoma estrutural e funcional do veneno do escorpião-amarelo) e Paraná (análise proteômica do estresse hídrico em cafeeiro).

Antes de entender o que é proteoma e sua importância, razão de ser dessas redes, é preciso saber o que é gene e o que é proteína. O primeiro é uma unidade biológica, responsável por uma determinada informação. Basicamente, tudo em um organismo é resultado da ação de genes em interação com o ambiente. Características como a altura de uma pessoa, por exemplo, são determinadas por muitos deles e sofrem forte influência ambiental (como a quantidade de alimento que a pessoa consome). Mas existem também outras particularidades, como a cor dos olhos ou o tipo sanguíneo de humanos, que são definidos por poucos genes e com quase nenhuma interferência do meio ambiente.

Falando mais tecnicamente, em termos bioquímicos, genes são seqüências específicas de ácido desoxirribonucléico (DNA), que por sua vez é composto pela combinação de quatro moléculas chamadas adenina (A), timina (T), guanina (G) e citosina (C), conhecidas como nucleotídeos. Eles estão localizados nos cromossomos, longos filamentos espiralados existentes no núcleo das células e que são formados por seqüências mais longas de DNA. Este tem a forma de uma dupla hélice, como uma escada retorcida em espiral, que se fecha como um zíper. Cada degrau é constituído por uma combinação específica dos nucleotídeos: A com T e G com C. Uma das funções dos genes é armazenar a informação necessária para a produção de proteínas.

Essas, por sua vez, são macromoléculas que a célula constrói conforme a "receita" contida no respectivo gene. Elas podem ter diferentes tamanhos e formas e um grande número de funções, como, por exemplo, o transporte de gases e a defesa contra microorganismos. Também são responsáveis pela estrutura de vários tecidos ou podem simplesmente ficar armazenadas como uma reserva nutritiva para o organismo. As proteínas também estão envolvidas no desenvolvimento e evolução de doenças e na maneira como as células reagem a mudanças no seu ambiente externo.

Quantidade variável

No caso dos genes, cada ser vivo tem um número determinado deles – cerca de 30 mil no homem –, que produzem uma quantidade maior de proteínas. Assim, enquanto o genoma é o conjunto dos genes de um determinado organismo, que dão a receita de como ele é feito, o proteoma é o conjunto das proteínas produzidas por essa receita, num dado momento – ou evento – metabólico de um organismo. O primeiro é, mal comparando, como a planta de uma carroça ou de uma nave espacial. O segundo são as peças dessa carroça ou dessa espaçonave, cada uma com uma função específica.

Uma analogia deixa a diferença mais clara. Um determinado ovo, o pintinho que dele resulta e o galo no qual este se transforma têm, todos, o mesmo genoma, isto é, os mesmos genes. Mas as proteínas, feitas sob orientação deles, são diferentes em cada uma dessas fases do desenvolvimento da ave. Os que determinam a produção de penas ou da crista do galo são ativados em momentos diferentes e "ordenam" a produção de proteínas diversas. Descobrir quais são as de um organismo e como elas funcionam em cada momento, eis a dificuldade do estudo do proteoma.

Vencido esse obstáculo, um mundo de possibilidades se abre para aplicações em diversas áreas. "A proteômica tem potencial para oferecer subsídios em quaisquer pesquisas que visem a interferir no metabolismo de uma célula, o que encontra aplicações nos mais diversos campos da saúde, produtividade agrícola e até mesmo preservação ambiental", diz Hernán Terenzi, do Centro de Biologia Molecular Estrutural do Departamento de Bioquímica da UFSC. Sua aluna de doutorado Marcela Purificação acrescenta: "O estudo dos diferentes proteomas permitirá identificar proteínas que somente estão presentes em células com problemas, por exemplo, permitindo aperfeiçoar métodos para detectar doenças e prever a evolução delas".

Alguns resultados já obtidos mostram isso na prática. Um dos mais recentes foi apresentado durante a 23ª Reunião Anual da Federação de Sociedades de Biologia Experimental (FeSBE), realizada de 20 a 23 de agosto, em Águas de Lindóia (SP). Pesquisadores do Inca anunciaram a identificação de proteínas que se expressam (são produzidas) de forma diferente das normais em células infectadas por um tipo de leucemia chamada mielóide crônica. A partir dessa descoberta, o grupo pretende agora criar um kit que permita o diagnóstico mais eficaz, preciso e barato da doença, que a cada ano faz 3,6 mil novas vítimas no Brasil. A líder da equipe, a geneticista Eliana Abdelhay, chefe da divisão de laboratórios do Centro de Transplante de Medula Óssea do Inca, acredita que esse material esteja pronto em menos de um ano.

Novas drogas

Para o engenheiro agrônomo Gonçalo Guimarães Pereira, chefe do Departamento de Genética e Evolução do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), não só a leucemia, mas também outros tipos de câncer poderão vir a ter uma detecção precoce e, conseqüentemente, um tratamento mais eficaz a partir dessas pesquisas. Isso porque o proteoma de uma célula cancerígena produz proteínas que geram o problema. "Ao compará-las com o conjunto de suas congêneres de uma célula correspondente saudável, pode-se descobrir as que são responsáveis pelo tumor", explica. Com essa informação é possível desenvolver novas drogas, que inibam a produção delas ou sua ação.

De acordo com Marcela, da UFSC, isso já é realidade para o câncer de ovários, já que as proteínas envolvidas foram identificadas recentemente, o que permite que se descubra a doença mais cedo. "Também foram encontrados, por meio de estudos de proteômica, biomarcadores do mal de Alzheimer e da eficiência de transplantes renais", informa. Biomarcadores são moléculas que podem ser identificadas experimentalmente e indicam que alguma coisa está acontecendo num organismo. Eles podem mostrar antecipadamente, por exemplo, que um problema de saúde está a caminho. No caso do câncer, antes que ele se instale, há uma mudança química na célula que é evidenciada pela presença dos biomarcadores.

Avanços semelhantes foram conseguidos no entendimento da esquizofrenia, distúrbio que afeta 50 milhões de pessoas no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Até hoje, esse problema só podia ser detectado clinicamente, sem exames laboratoriais. Em seu doutorado, o biólogo e bioquímico Daniel Martins de Souza, da Equipe de Proteoma da Unicamp, estudou as proteínas de pacientes desse mal. "Descobri algumas que estão presentes neles, mas não em indivíduos sadios, o que poderá servir para diagnosticar a esquizofrenia", explica.

O mesmo pode ocorrer com a hanseníase, que também é alvo de estudos proteômicos. Pesquisadores da Fiocruz, em parceria com a Universidade do Estado do Colorado, nos Estados Unidos, identificaram as proteínas que são essenciais para a evolução da bactéria Mycobacterium leprae no organismo hospedeiro (que pode ser o homem) e para o desenvolvimento da enfermidade. O trabalho abre novas perspectivas para a investigação de métodos diagnósticos e vacinas para esse mal, que registra o surgimento de 300 mil casos por ano no mundo, segundo dados da OMS. Com os novos conhecimentos, será possível iniciar o tratamento antes que a hanseníase se desenvolva e apareçam os sintomas, evitando seqüelas graves e a transmissão para outras pessoas.

O melhor é que a descoberta da Fiocruz não pára aí. Com pequenas diferenças, seus resultados também valem para a Mycobacterium tuberculosis, a bactéria causadora da tuberculose. As duas micobactérias (ou bacilos) provêm de um mesmo ancestral e apresentam genoma semelhante: dos 1,6 mil genes que compõem a M. leprae, 1,45 mil são encontrados na M. tuberculosis. Por isso, os cientistas acreditam que elas tenham os mesmos alvos terapêuticos e possam ser combatidas com medicamentos semelhantes.

Tratamento mais eficaz

Outro grupo de profissionais da Fiocruz identificou dez proteínas plasmáticas, isto é, da parte líquida do sangue, que são expressas de forma diferente em pacientes com dengue e em pessoas saudáveis. A participação delas nos mecanismos da doença ainda não havia sido descrita na literatura científica e esse trabalho pode contribuir para o aperfeiçoamento das técnicas de diagnóstico e prognóstico, além do desenvolvimento de uma droga específica para combatê-la.

A equipe, liderada por Jonas Perales, tem experiência no uso das tecnologias proteômicas: realizou pesquisas pioneiras que identificaram duas das principais proteínas relacionadas ao processo de neutralização do veneno de cobras. Encontradas no sangue do gambá sul-americano (Didelphis marsupialis), as moléculas abriram caminho para um futuro tratamento antiofídico mais eficaz.

A saúde humana não é o único objeto de investigação da proteômica. Em Santa Catarina estão sendo feitos estudos sobre duas espécies de bactérias que causam pneumonia em animais de grande importância econômica – a Mycoplasma synoviae, responsável pela doença em frangos, e a Mycoplasma hyopneumoniae, que ataca suínos. "Como ainda não existem muitos trabalhos sobre esse assunto, estamos identificando as proteínas presentes nas duas espécies e em suas diferentes cepas", explica Marcela, que desenvolve a pesquisa. O objetivo é descobrir aquelas potencialmente associadas à capacidade da bactéria de infectar os animais, o que no futuro poderá levar à produção de uma vacina.

À primeira vista esses resultados obtidos pelos especialistas brasileiros podem parecer modestos. Mas não é bem assim. A ciência avança aos poucos. Descobertas que hoje são consideradas insignificantes por muita gente podem gerar amplos benefícios no futuro. "No passado, vimos a humanidade fazer grandes progressos nos campos da matemática, que permitiram, depois, fenomenais avanços no estudo da física e, mais tarde, no da química", lembra Terenzi, da UFSC. De acordo com ele, há uns 50 anos, a biologia era tida por muitos como uma ciência alternativa, mais um passatempo do que um campo de estudo sério.

Essa percepção mudou, no entanto, depois da descoberta da estrutura do DNA, em 1953, que deixou claro que as características da vida tinham uma fundamentação química palpável. A partir de então, o estudo das moléculas que compõem os seres vivos passou a ganhar cada vez mais atenção. Atualmente, é nessa área que estão os investimentos científicos mais pesados. Destina-se muito dinheiro no mundo ao desenvolvimento de técnicas que permitam pesquisar os componentes da vida, especialmente as proteínas. "Isso ocorre, também, porque são essas as descobertas que, nos dias de hoje, trazem maior retorno financeiro, com a obtenção de drogas e patentes", diz Terenzi.

Cautela e otimismo

O Brasil, como ocorre em outras áreas da ciência, investe em proteômica menos que os países desenvolvidos. Desde 2003, foram R$ 31,5 milhões do MCT fragmentados em vários projetos do programa GenoProt. Diante desse quadro, pode-se dizer que os cientistas brasileiros se dividem em dois grupos: o dos cautelosos e o dos mais otimistas. "No Brasil, embora esteja havendo um incremento financeiro substancial por parte do governo, os investimentos ainda são insuficientes", diz o bioquímico Salvatore Giovanni De Simone, da Fiocruz. De acordo com ele, as pesquisas não estão tão avançadas em alguns setores quanto no exterior. "Por outro lado, também não estamos na Idade da Pedra; diria que estamos numa fase intermediária, com resultados significativos sendo alcançados em algumas áreas", explica.

O químico Marcos Eberlin, da Unicamp, que participou do projeto que estudou o proteoma do café, é um dos que estão confiantes no desempenho do país nessa área. "Temos tudo para repetir os bons resultados que tivemos com o genoma", afirma. Isso porque, segundo ele, o Brasil tem químicos, biólogos e bioquímicos do mais alto nível, além de laboratórios bem equipados. "Os grupos são formados por cientistas jovens e maduros – o que dá uma boa mescla –, entusiasmados, inovadores, flexíveis e calejados na arte de fazer boa pesquisa mesmo com poucos recursos", completa.

De acordo com Eberlin, graças a isso o país avança bem nessa área, com redes se formando e se consolidando, e trabalhos de primeira linha sendo publicados com excelentes resultados. "A competência e a criatividade que nós, brasileiros, modéstia à parte, temos, aliadas a laboratórios bem equipados e um crescimento forte de novos grupos de estudo, já mostram resultados animadores, que devem ser sentidos com mais e mais intensidade nos próximos anos", diz ele.

Em termos concretos, essa situação se reflete nos indicadores de produção científica. Eberlin informa que, de 2000 a 2008, o crescimento das pesquisas em proteômica foi de 300%. "E estamos crescendo a uma taxa média de cerca de 10% ao ano", acrescenta. Segundo ele, em 2008 serão publicados por brasileiros cerca de 3,1 mil artigos sobre estudos nesse ramo da ciência, o que representa 2% da produção mundial. "A expectativa é chegarmos ao final desta década com cerca de 3% e entre os dez países mais produtivos na área (hoje somos o 13º), o que é um bom desempenho." 

 

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