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E o sertão virou um imenso jardim

Com apoio tecnológico, cresce produção de flores no nordeste brasileiro

CELIA DEMARCHI


Andréa Scherer: projetos comunitários
Foto: Divulgação

O sertão não virou mar, como teria profetizado o místico Antônio Conselheiro no século 19. E, se não se transformar em deserto nos próximos anos, em conseqüência das mudanças climáticas, como também já se previu, certamente se parecerá a cada dia mais com um imenso jardim, com centro no Ceará. O estado é o maior exportador brasileiro de flores tropicais e rosas – quem diria? –, espécie típica de climas temperados, e o segundo de flores frescas cortadas. De acordo com a Secretaria de Desenvolvimento Agrário do Ceará, os embarques de produtos da floricultura local renderam US$ 5 milhões no ano passado.

Na produção de flores e plantas ornamentais, o Brasil ainda está longe de ter um papel relevante no mercado global, que movimenta em torno de US$ 9 bilhões anualmente. Com crescimento de mais de 9% em relação a 2006, o faturamento dos exportadores nacionais alcançou US$ 35,3 milhões em 2007. O valor é metade do que esperava atingir no ano a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil), cujas expectativas foram atropeladas pela valorização cambial. Em reais, a receita caiu 2,2% no período, segundo dados do Instituto Brasileiro de Floricultura (Ibraflor).

Ainda assim, o valor das exportações é significativo, se for comparado aos US$ 315 mil contabilizados em 2000, quando o país começava a colher as primeiras flores cultivadas com incentivos oficiais e a estruturar o Projeto FloraBrasilis, desenvolvido pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e pela Apex-Brasil. Uma das metas do programa é fomentar a economia do nordeste, especialmente porque a floricultura é uma atividade de uso intensivo de mão-de-obra – ocupa em média 3,8 trabalhadores/hectare (pode chegar a 5 na região), enquanto a agricultura extensiva demanda 1 empregado/100 hectares.

Apenas no Ceará, o cultivo ocupa atualmente 400 hectares, divididos entre mais de 240 empresas, a maior parte pequenas, espalhadas por 33 municípios – na região metropolitana de Fortaleza, no Cariri, nas serras da Ibiapaba e do Maciço de Baturité, no sertão central e no Baixo Acaraú. Dos campos à distribuição, emprega cerca de 5 mil trabalhadores.

Pelo menos três fatores contribuíram para o florescimento da atividade no nordeste, em especial no Ceará. Primeiro, a taxa favorável do câmbio no início da década. Segundo, a relativa proximidade da região com o maior consumidor mundial, a Europa, o que a torna mais competitiva do que o sul e o sudeste no item transporte aéreo (único viável para carregar os produtos, delicados e de curta vida útil). E, por último, as boas condições climáticas das serras nordestinas, sobretudo as cearenses, muito propícias ao cultivo de flores de clima temperado, inclusive rosas, que lideram de longe a demanda mundial – sol intenso durante todo o ano, altitudes acima de 600 metros e clima estável e ameno, com temperaturas médias de 18oC.

O refluxo dos embarques desde o ano passado deve-se a outros fatores, além do câmbio. Um deles foi a redução do espaço de carga nos aviões, em virtude do aumento do número de passageiros. A concorrência externa também contribuiu para o recuo – a China, maior produtor do mundo, mas com apenas 2% do mercado internacional, ampliou sua participação nas vendas, especialmente para o Japão e a Europa. Outra dificuldade, esta estrutural e específica do produtor de rosas, refere-se ao pagamento de royalties sobre o cultivo, pois todas as variedades da flor, originária de regiões de clima mais frio, são patenteadas.

Consolidação

Vista em retrospectiva, porém, a floricultura brasileira demonstra vitalidade, em particular no Ceará. Em 2002, o estado comercializou US$ 400 mil no exterior. Neste ano, as exportações devem alcançar US$ 6 milhões, segundo Rubens Aguiar, consultor do Instituto Agropolos, ligado ao governo cearense. Dos cerca de 100 milhões de botões de rosa colhidos a cada ano no Ceará, em torno de 80% vão para o exterior, principalmente a Holanda. A espécie representa 31% das exportações cearenses. Em períodos de maior demanda, como o Valentine’s Day (14 de fevereiro, o Dia dos Namorados nos EUA e em vários países da Europa), essa fatia chega a 90%, de acordo com Aguiar. Em tais épocas, o preço da haste sobe a 0,70 euro, mas pode despencar até 0,07 euro durante o verão europeu, por exemplo, quando a procura cai.

Segundo Kees Schoenmaker, presidente do Ibraflor, é o mercado interno que dá fôlego aos produtores que exportam: imenso e em crescimento, funciona como uma espécie de garantia, como demonstra a experiência da Reijers. Maior produtora e distribuidora de rosas do Ceará (e do Brasil), a companhia chegou a paralisar as exportações entre maio e julho deste ano, redirecionando as flores para o mercado doméstico. Em agosto, aproveitou a leve recuperação do dólar e retomou as vendas externas, até porque havia contribuído para provocar uma superoferta no país, prejudicando os preços.

Até 2005, o consumo brasileiro per capita de flores e plantas ornamentais girava em torno de US$ 6 anuais. Hoje, seria de US$ 9 (ante US$ 170 na Suíça, US$ 36 nos EUA e US$ 25 na Argentina). As vendas domésticas podem chegar a US$ 1,7 bilhão neste ano, segundo Schoenmaker. "A concorrência interna também é grande, mas estamos conseguindo preços melhores no Brasil do que lá fora", diz Mário Gomes, gerente de vendas da também cearense CeaRosa, que tem clientes até no Rio Grande do Sul, para onde as flores seguem de avião: "Temos acordos com as companhias aéreas, que nos favorecem".

Fundada em 1999 por um empreendedor gaúcho, a CeaRosa foi concebida para explorar o mercado externo, de acordo com Gomes, mas por enquanto só exporta ocasionalmente, para Portugal. A previsão é entrar firme na Europa em cerca de três anos, quando deverá ter 10 hectares cultivados. Atualmente tem 7, em uma propriedade de 76 hectares, no município de São Benedito, na serra da Ibiapaba, no norte cearense, a 800 metros de altitude. A região também abriga os 22 hectares cultivados com sete espécies da Reijers – criada em São Paulo há 30 anos pela família de origem holandesa Reijers, a empresa começou a plantar rosas no Ceará em 2002.

Segunda maior produtora da espécie do Ceará, a CeaRosa colhe 16 mil hastes por dia e fatura mensalmente, em média, R$ 200 mil. A produtividade da empresa é alta, de 120 rosas/m²/ano, mas nas serras cearenses se pode colher até 200 rosas/m²/ano, segundo o consultor Aguiar. Na Colômbia, maior exportador mundial dessa flor, com receita de US$ 1 bilhão anuais (o Equador, que exporta US$ 300 milhões, ocupa o segundo lugar nesse ranking), a produtividade média é de 80 rosas/m²/ano. Porém, são rosas gigantes, cultivadas em altitudes de 1,5 mil metros a 2,6 mil metros e temperaturas mais baixas. "Há vários nichos de mercado, e o Brasil ocupa o de botões de tamanho mediano", diz Aguiar.

Tropicais

Nem só de rosas, porém, vivem os exportadores cearenses. As espécies tropicais também vêm ganhando mercado no mundo. A Flora Tropical, empresa da família cearense Nuto, exporta para Portugal de 20% a 25% de sua produção. No ano passado, colheu 70 mil flores tropicais (alpínias, helicônias, bastões-do-imperador) e 200 mil plantas de folhagem, como palmeiras, em seus 25 hectares cultivados na cidade de Redenção, a 60 quilômetros de Fortaleza, e nas serras do Maciço de Baturité, 150 quilômetros ao sul da capital e 600 metros acima do nível do mar.

Conforme a flor (a companhia cultiva em torno de dez espécies e 30 variedades), cada unidade é comercializada por US$ 0,80 a US$ 1,50. Parte segue em forma de buquê – uma das barreiras às flores tropicais, até mesmo no mercado interno, é a dificuldade de produzir arranjos, pois essas plantas, muito diferentes das tradicionais, ainda são pouco conhecidas. Tanto é assim que o país costuma levar artistas florais às feiras internacionais, de que os produtores participam com apoio da Apex-Brasil, para demonstrar o potencial das variedades exóticas.

Outro nicho de mercado das espécies tropicais é o de decoração de ambientes. Segundo Silvania Nuto, da Flora Tropical, que distribui em Fortaleza o que não é exportado, as vendas desses produtos têm aumentado na cidade, especialmente para embelezar os cada vez mais freqüentes eventos e congressos que sedia: "Para nós, é mais fácil vender para a Europa do que para o sul do Brasil", diz ela. Até mesmo por esse fato, a empresa se antecipou e já trabalha com produção orgânica certificada – segundo a produtora, a União Européia não mais aceitará plantas com resíduos de agrotóxicos a partir de 2010.

O fato é que o consumo nordestino de flores está crescendo juntamente com a produção. Em 2000, quase 80% do que se vendia no Ceará provinha do sul e do sudeste, da Colômbia e do Equador. Atualmente, apenas em torno de 15% vêm de fora. Na Bahia, a tendência é a mesma, embora a produção ainda seja incipiente: em 1996, somente 3% das vendas locais correspondiam a plantas cultivadas no estado. Hoje essa fatia é de 20%.

Segundo Andréa Mendes Sampaio Scherer, coordenadora de Modernização da Agricultura e Cooperativismo do Programa Flores da Bahia, o estado começou a organizar o cultivo em 1996. Hoje, a atividade ocupa aproximadamente 300 hectares em 50 municípios. Embora a região de Ilhéus concentre mais produtores de flores e plantas tropicais, o foco dos baianos é também o cultivo de temperadas, especialmente rosas. A flor representa de 60% a 70% da produção, toda consumida localmente.

Em 2003, o programa, que visava principalmente reduzir a dependência baiana dos produtos estrangeiros e de outras regiões do país, criou projetos comunitários de cultivo de rosas em oito cidades das regiões serranas da chapada Diamantina e do sudoeste do estado, com o objetivo de atrair para a atividade os jovens com poucas perspectivas no mercado de trabalho. Esses projetos receberam investimentos de R$ 6,5 milhões em tecnologia (câmaras frias, estufas, sistemas de irrigação), dos quais 30% bancados pelos municípios e 70% pelo governo estadual. Hoje, estão empregados cerca de 220 trabalhadores apenas no campo, e cada produtor fatura, de acordo com a época e a demanda, de R$ 400 a R$ 1 mil por mês.

Nas terras baianas também se cultivam gérberas, crisântemos e lírios, de clima temperado, além de flores tropicais como helicônias e musas (suas parentes), alpínias, antúrios e orquídeas. "Essas espécies ganham mercado lentamente, porque as floriculturas não estão habituadas a trabalhar com esse tipo de planta e há também certa resistência do consumidor", diz Andréa Scherer.

Já Pernambuco foi pioneiro na produção de flores tropicais para fins comerciais, em meados dos anos 1990, segundo o engenheiro químico Arnaldo Pessoa, presidente da Associação dos Produtores de Flores Tropicais do estado, que atualmente contabiliza 200 hectares cultivados por aproximadamente 120 produtores, os quais empregam, cada um, em média, três trabalhadores. Esses empreendedores, segundo Pessoa, em geral ex-profissionais liberais, engenheiros, advogados e administradores, exportam pouco (normalmente para a Itália) e a maior parte das plantas é comercializada na própria região: "Essas flores não têm tanta aceitação quanto as temperadas, como as rosas". Mas há exceções, como o antúrio, a décima planta com maior demanda do mundo, de acordo com Pessoa.

Tecnologia

Clima ameno e estável à parte, os governos nordestinos precisaram investir muito em tecnologia para desenvolver a floricultura. Enquanto os crisântemos até podem ser cultivados a céu aberto na região, as rosas só alcançam padrão de exportação quando produzidas em estufa. Elas também requerem sistemas de irrigação (isso não somente no nordeste), que permitem melhor controle da umidade e da aplicação de nutrientes. "Há um aparato tecnológico envolvido", explica Aguiar, do Agropolos.

Os plásticos usados nas estufas, por exemplo, vêm de Israel. Esse país consegue ser um dos mais importantes produtores mundiais de flores e abriga um centro de excelência em pesquisa, a Universidade Hebraica de Jerusalém, que se dedica inclusive à melhoria genética das plantas, em busca até mesmo de novas essências para fabricação de perfumes. "Os plásticos têm de ser diferentes dos usados nas estufas de São Paulo, onde se verificam outros níveis de potencial de fusão com a luz", explica o consultor. "As variedades de duas cores precisam de plásticos específicos."

Segundo Aguiar, hoje grandes empresas, até mesmo antigas concorrentes estrangeiras, se unem em joint ventures para desenvolver ainda mais os recursos tecnológicos. Na verdade, as empresas privadas sempre estiveram à frente nesse tipo de investimento. Em meados da década de 1990, quando a administração federal despertou para o potencial nordestino na produção e exportação de flores, o governo cearense fez um levantamento do setor e das dificuldades do produtor. Além disso, foi conferir a experiência dos países mais bem-sucedidos, como Colômbia, Equador, Holanda, Costa Rica, Quênia e Zimbábue – os dois últimos, segundo Aguiar, detêm tecnologia de conservação e logística das mais avançadas do planeta. O governo ainda instalou uma câmara fria para conservação das flores no Aeroporto Internacional de Fortaleza e negociou, com as companhias aéreas, mais espaço para carga nos aviões.

Na época, a Embrapa Agroindústria Tropical, sediada no Ceará, já acumulava alguma experiência com floricultura, pioneiramente, segundo Levi de Moura Barros, pesquisador de genética e melhoria de plantas da empresa. A estatal se empenhou em aprimorar a tecnologia pós-colheita, que envolve conhecimentos sobre as técnicas mais adequadas de conservação após o corte, de modo a prolongar o mais possível a vida útil dos produtos. E agora pesquisa formas de melhorar a qualidade das embalagens, especialmente das plantas tropicais, cujos tamanhos e formatos desafiam os parâmetros vigentes: "Cada espécie tem peso diferente e ocupa um espaço específico nas embalagens", explica Barros.


O exemplo da Holambra se espalha pelo país

A floricultura se profissionalizou e dinamizou recentemente no Brasil. São Paulo liderou esse movimento, por meio de floricultores holandeses que deram início ao cultivo em Holambra, cidade próxima de Campinas, há mais de 40 anos. O estado ainda concentra a maior parte da produção e o maior mercado, mas a atividade, em franca expansão, demonstra evidente tendência à descentralização e já contabiliza números bastante significativos: agrega mais de 4 mil produtores, que cultivam cerca de 6 mil hectares atualmente em 304 municípios concentrados em 12 pólos principais, segundo dados do Instituto Brasileiro de Floricultura (Ibraflor). Esses núcleos consolidam-se cada vez mais no Rio Grande do Sul, no Paraná, em Santa Catarina, em Minas Gerais, no Rio de Janeiro, em Goiás, no Distrito Federal e na maioria dos estados do norte e do nordeste.

De acordo com o Ibraflor, estima-se que a atividade responda por mais de 120 mil empregos, dos quais 58 mil (48,3%) na produção, 4 mil (3,3%) na distribuição, 51 mil (42,5%) no comércio varejista e 7 mil (5,9%) em outras funções, principalmente de apoio. A produção propicia rendimentos de R$ 50 mil a R$ 100 mil por hectare e cerca de 14,2 empregos por propriedade – que em média tem 3,5 hectares. A maior parte das ocupações (94,4%) é permanente e 81,3% dos trabalhadores são contratados. O emprego familiar responde por 18,7% do total de pessoas que se dedicam ao cultivo.

Da área cultivada, 50,4% correspondem à produção de mudas, 13,2% são destinados a flores em vasos, 28,8% a flores de corte, 3,1% a folhagens em vasos, 2,6% a folhagens de corte e 1,9% a outros produtos, como flores secas e sementes.

Das exportações brasileiras, 10,5%, apenas, referem-se a flores frescas, 41,9% a mudas, 39,8% a bulbos e 7,8% a outros produtos. Cerca de 20% do faturamento é obtido nos EUA e 60% na Holanda, centro distribuidor da Europa. Há também vendas diretas para a Itália (7% das exportações), Portugal e Alemanha, por exemplo, cuja demanda pelos produtos verde-amarelos vem aumentando. "Isso significa que estamos pulando a Holanda", diz o consultor do Agropolos, informando ainda que os produtos do Ceará começam a conquistar novos mercados, como Dinamarca e França. 

 

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