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Preservação que dá resultado

Desenvolvimento sustentável em Mamirauá é referência mundial

JULIANA BORGES e SERENA CALEJON


Comunidade ribeirinha do Jarauá
Foto: Juliana Borges

O amazonense Marcos Cardoso Castro, de 34 anos, costuma dividir a vida entre antes e depois de sua passagem pelo exército. Nos nove anos em que esteve embrenhado na selva amazônica comendo charque e farinha para servir à pátria, muita coisa mudou em sua terra natal, a comunidade de São Raimundo do Jarauá, localizada no município de Uarini (AM). Durante esse período longe de casa, seu povoado, junto com as vilas vizinhas localizadas numa área de 1,24 milhão de hectares de floresta de várzea, passou a fazer parte da primeira reserva de desenvolvimento sustentável (RDS) brasileira, Mamirauá, criada em 1996. Desde então, tanto a qualidade de vida dos moradores quanto a preservação do meio ambiente tiveram uma melhora significativa na região. O melhor exemplo é o pirarucu – principal fonte de renda da maior parte das famílias ribeirinhas do rio Jarauá –, cujos estoques de peixe adulto aumentaram mais de 20 vezes, passando de 360 em 1999 para 8,6 mil em 2006. Por conta disso, a renda bruta média de um pescador do Jarauá em um trimestre, por exemplo, passou de R$ 256 em 1999 para R$ 2.156 em 2006. Os moradores foram observando essas e outras transformações de forma gradativa. Castro, porém, por ter ficado quase uma década distante, tomou conhecimento da nova realidade de repente, e se impressionou com o que viu. "Quando saí, quase não havia peixe no rio. A gente ia longe para não pescar quase nada. Ao retornar, em 2003, vi aquela fartura enorme", conta ele, que, atualmente, vive da pesca e é vice-presidente da Associação dos Produtores do Setor Jarauá (APSJ), entidade que coordena, entre outros projetos, o manejo do pirarucu na vila.

Os avanços ocorridos na região são resultado direto da aplicação de uma política ambiental que busca conciliar a preservação da flora e da fauna com o desenvolvimento humano das comunidades locais. Mamirauá foi a primeira área de proteção ambiental do Brasil a adotar um modelo de preservação que, em vez de expulsar os moradores tradicionais, oferece meios para que se transformem em aliados e participem ativamente dessa tarefa. "A lógica é que a floresta em pé tem mais valor que derrubada. Mas esse conceito só vale se efetivamente esses valores forem agregados ao bolso das pessoas", diz Nádia Cristina d’Ávila Ferreira, secretária do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do estado do Amazonas.

Graças aos resultados alcançados até agora, Mamirauá hoje é considerada uma das maiores referências na Amazônia. A gestão da reserva é baseada em alguns princípios: exploração sustentável dos recursos naturais, participação ativa das comunidades locais em todas as etapas da gestão, forte atuação em pesquisa científica e o estabelecimento de parcerias estratégicas com organizações governamentais e não-governamentais para o desenvolvimento de propostas de uso sustentado dos recursos naturais.

Localizada 600 quilômetros a oeste de Manaus, na confluência dos rios Solimões e Japurá, Mamirauá, junto com os vizinhos Parque Nacional do Jaú e RDS Amanã, faz parte do chamado corredor verde, uma área de 57 mil quilômetros quadrados que forma o maior conjunto de floresta tropical protegida do planeta. Em Mamirauá, grande parte do território fica submerso entre os meses de dezembro e julho. Na seca, o nível das águas chega a baixar até 12 metros. Hoje, a floresta e os rios abrigam uma fartura impressionante de peixes, botos, macacos, aves, jacarés e insetos – mas nem sempre foi assim. A reserva, que pertence ao estado do Amazonas, desde 1999 é administrada pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), organização social vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Os principais objetivos do IDSM são a promoção de pesquisa científica e o desenvolvimento das atividades de manejo dos recursos naturais pelas comunidades tradicionais. O instituto coordena hoje quase 50 linhas de pesquisa e, ao longo dos anos, pesquisadores ligados ao IDSM já publicaram 47 livros e quase 500 teses, dissertações e monografias – todas sobre a Amazônia. "Esse é um dos pontos mais importantes da parceria com o instituto", diz Nádia. "O conhecimento científico aprofundado é essencial não só para a conservação do meio ambiente, como também para melhorar a geração de renda das pessoas."

O instituto administra também a RDS Amanã, criada em 1998, com 2,35 milhões de hectares. Para isso, a organização recebe anualmente cerca de R$ 6,1 milhões do Ministério da Ciência e Tecnologia. E, por ser uma organização social, o IDSM tem autonomia para angariar recursos externos. Hoje, grande parte das atividades de pesquisa científica e 100% dos projetos de manejo em Mamirauá ocorrem em uma região de 260 mil hectares (ou 23% do território total da reserva), que, no plano de manejo da RDS (elaborado entre 1992 e 1996, antes da criação do instituto), foi batizada de área focal. A idéia foi concentrar os recursos num trecho pequeno e, progressivamente, estender os programas de maior sucesso para o restante da região. "Como não tínhamos pessoal nem verba suficientes, achamos melhor desenvolver um trabalho bem-feito numa área menor. É preciso ir mostrando a produção para captar recursos", diz Ana Rita Alves, diretora-geral do IDSM.

Mais dinheiro no bolso

A pesca do pirarucu, o maior peixe com escamas de água doce do mundo, é um dos melhores exemplos do manejo de recursos naturais. As 19 comunidades que participam do programa têm o direito de explorar uma determinada região da reserva (previamente estabelecida no Plano de Manejo), e dentro dessa área é permitido capturar no máximo 30% da população adulta do peixe. A partir de setembro, quando o nível da água está baixando, os pirarucus ficam aprisionados em lagos que se formam no meio da floresta. Nessa época, as comunidades realizam a contagem dos peixes, que é necessária para estabelecer a cota disponível para o ano seguinte. Outubro é o mês da pesca. Logo pela manhã, os grupos saem a bordo de suas rabetas (canoas com motor de baixa potência) carregadas de isopor com gelo. O processo é demorado porque o animal adulto chega a ter 200 quilos. No fim do dia os pescadores se reúnem na plataforma flutuante da associação, onde o peixe é pesado, medido, eviscerado e ganha um lacre fornecido pelo Ibama, a garantia de que o pescado é legal. A venda da mercadoria é feita nas cidades de Alvarães e Tefé. No restante do ano, quando o pirarucu não pode ser capturado, os moradores apanham espécies como o tambaqui, tucunaré e surubim, e também dedicam-se a outras atividades, como a agricultura e a fabricação de farinha.

No rio Jarauá, o manejo do pirarucu é feito desde 1999, e a atividade é uma das mais bem estruturadas de toda a reserva. A Associação dos Produtores do Setor Jarauá tem 92 membros e uma diretoria eleita pelos próprios integrantes. Maria de Lourdes Araújo, de 58 anos, ex-professora, ex-parteira e viúva de um antigo líder da comunidade, é a atual presidente da APSJ. As decisões são tomadas em conjunto, e os membros que não participarem das reuniões correm o risco de ser desligados da entidade. "Se um pescador perde três reuniões seguidas, ele é chamado para se explicar", conta Lourdes. A associação é responsável pela venda do pescado, e o lucro é distribuído entre os associados de acordo com a condição de cada um. "Os homens solteiros ficaram com 17 peixes cada, os casados com 20 e os diretores da APSJ, com 27", explica Marcos Castro, referindo-se a uma das últimas partilhas.

Segundo Isabel Soares Sousa, diretora de Manejo e Recursos Naturais do IDSM, a organização comunitária é um dos pontos mais importantes para o sucesso dos programas de manejo e, conseqüentemente, da preservação ambiental. "Os programas só serão auto-sustentados se as comunidades estiverem organizadas para cuidar de todo o processo", diz ela. Em Mamirauá, cada comunidade escolhe seu líder. A reserva é dividida em setores, e cada um deles agrega, em média, oito comunidades. O modelo de gestão participativa conta com uma agenda em que estão previstas reuniões periódicas, nas quais são debatidos os problemas relativos à gestão ambiental e definidos os encaminhamentos e responsabilidades. A equipe de pesquisadores do IDSM faz a intermediação entre membros das comunidades e órgãos licenciadores.

O começo

A principal figura na história da RDS Mamirauá é o primatólogo paraense José Márcio Ayres, falecido em 2003. Reconhecido internacionalmente por seu trabalho em biologia da conservação, foi Ayres quem, em 1984, redigiu a proposta ao governo do Amazonas que resultou, quase uma década depois, na criação da Estação Ecológica Mamirauá. Como na época a figura da RDS – incluída hoje no Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc) – ainda não existia, Mamirauá permaneceu cinco anos como estação ecológica, unidade de proteção integral que permite apenas a realização de pesquisas científicas e não comporta a presença de comunidades tradicionais. A introdução, em 1996, da inovadora categoria de desenvolvimento sustentável (ver texto abaixo) também foi fruto direto do trabalho de Ayres e do grupo de cientistas por ele liderado. "É uma satisfação ver um trabalho que começou como um projeto individual se transformar numa grande organização capaz de caminhar sozinha", avalia Ana Rita. Márcio Ayres também foi o idealizador de uma das iniciativas mais bem-sucedidas da reserva: o manejo do ecoturismo.

Dentro da reserva funciona, desde 1999, a Pousada Uacari. Batizada em homenagem a uma espécie endêmica de macacos da região (e que foi objeto da pesquisa de Márcio Ayres), ela foi construída sobre uma estrutura flutuante, para melhor se adaptar às variações do nível da água. Na cheia, a construção fica na altura da copa das árvores, e os visitantes podem entrar na mata de canoa pelos igapós que se formam. Na vazante, a paisagem fica totalmente diferente: com menos volume de água, os peixes e jacarés ficam ainda mais fáceis de ser avistados.

A pousada foi projetada para exercer o mínimo impacto no entorno: a água utilizada é coletada de chuva, a energia elétrica que abastece as tomadas é solar e os dejetos são filtrados antes que a água seja devolvida ao rio. As dez suítes abrigam um máximo de 20 visitantes por vez, que desembolsam uma média de R$ 300 pela diária. A maioria dos turistas são estrangeiros (quase 80%) em busca de trilhas de observação, passeios de canoa, pescaria esportiva e pratos típicos da culinária local (como a caldeirada de piranhas capturadas na pescaria esportiva).

Segundo a coordenadora do IDSM responsável pelo manejo do ecoturismo, a socióloga Nelissa Peralta, o programa é essencial para o modelo da reserva: a atividade tem uma correlação direta com a preservação do meio ambiente, já que cria uma alternativa de renda que não depende da exploração dos recursos naturais. Isso é importante porque, dentro da reserva, existem áreas de preservação permanente, em que as atividades de pesca e manejo florestal são proibidas – e o entorno da pousada é uma delas. "Um dos maiores benefícios do ecoturismo é mudar a percepção dos moradores em relação ao meio ambiente. Eles recebem hoje os benefícios financeiros da preservação", explica Nelissa.

A Pousada Uacari existe sob uma razão social diferente do IDSM. Fora os coordenadores de ecoturismo, que são bolsistas do instituto, os outros funcionários são pagos pela própria pousada, que há três anos já não precisa receber investimentos do instituto. A maior parte da equipe é composta por pessoas das sete comunidades que participam do manejo. Isso inclui Laércio Oliveira Martins, de 28 anos, subgerente da pousada. Ele começou a trabalhar como guia na Uacari em 1999. "Foi o meu primeiro emprego", conta Martins. "No começo eu ainda era estudante, então era bom porque não tinha de trabalhar todos os dias." Até hoje, a parte menos estratégica da mão-de-obra, como arrumadeiras e cozinheiros, é composta por funcionários rotativos, que trabalham em turnos de 8 dias e recebem R$ 23 pela diária. A idéia é que a pousada não se torne a única fonte de renda das pessoas.

A capacitação dos funcionários é uma das principais preocupações da gestão da pousada. Em 2006, foram realizados 14 treinamentos, de oficinas de ecoturismo a cursos básicos de contabilidade. O benefício indireto para as comunidades também é bastante palpável: só em 2006, a quantia gerada com a venda de produtos agrícolas foi de R$ 10 mil.

O lucro anual da pousada tem dois destinos. Metade vai para as comunidades, que são obrigadas a empregar essa quantia em algum projeto coletivo. A outra metade é usada para custear a fiscalização ambiental. Por ser uma área de preservação permanente, o setor onde está localizada a pousada é um dos mais visados pelos pescadores ilegais. No ano de 2006 foram feitas 47 apreensões.

O trabalho do ecoturismo tem dado tão certo que Uacari foi uma das três pousadas brasileiras citadas no guia americano sobre turismo sustentável Fodor’s Green Travel. "Ainda falta melhorar a gestão comunitária da pousada, mas agora já estamos tranqüilos o suficiente para começar a pensar em levar o manejo para Amanã", diz Nelissa. Para o estado do Amazonas a pousada também é um exemplo: "Queremos replicar esse modelo em outras RDS", diz Nádia.

Benefícios extras

Além de fomentar a fiscalização, que antes ficava só a cargo do Ibama, o ecoturismo em Mamirauá tem reflexos diretos em outro programa: o manejo do artesanato. Assim como o ecoturismo, que não era uma atividade tradicional da região, o manejo do artesanato foi praticamente implantado pelo instituto. Apesar de a fabricação de utensílios domésticos feitos de fibras trançadas ou de barro ser uma tradição indígena herdada pelos povos ribeirinhos, essa prática estava sendo abandonada pelas mulheres do médio Solimões. "Fizemos um levantamento histórico para ver que comunidades tinham matéria-prima para que tipo de trabalho", diz Ana Rita. "Além disso, investimos na capacitação das artesãs, para que seus produtos sejam melhores e mais bem-acabados." O resultado é notado pelas próprias mulheres: "Antes devolviam muita peça. Agora que a gente pegou a prática, não volta mais nada", declara Cherlene Souza Viana, que mora na pequena comunidade de Nova Colômbia. A capacitação das artesãs é feita em parceria com o Sebrae-AM.

Em Nova Colômbia, Cherlene e outras quatro mulheres integram o Clube de Artesãs local. Elas trabalham com molongó, madeira branca e leve que dá origem a utensílios de cozinha como travessas, bandejas e talheres. Ao longo de um ano, cada comunidade fatura uma média de R$ 1,8 mil com a venda do artesanato. Além da capacitação, o instituto também viabiliza a venda da produção, por meio de duas lojas próprias: uma em Tefé, a outra no aeroporto de Manaus.

O quarto programa a integrar a lista dos manejos em Mamirauá é a atividade madeireira. A extração da madeira também já era atividade tradicional da região, mas feita de forma predatória. "Sempre acompanhei meu pai vendendo madeira, só que era ilegal", lembra Isaac Carvalho Silva, presidente comunitário de Assunção, que realiza o manejo desde 2001. Hoje, as comunidades que participam do manejo florestal têm regras a seguir. De cada hectare é permitido retirar apenas três árvores. Cada povoado dispõe de uma média de 2 mil hectares para exploração. A área total é dividida em 25 espaços, que são trabalhados um a cada ano, para que o ciclo dure 25 anos – tempo suficiente para a floresta se renovar.

Apesar de ser uma das atividades mais disseminadas na reserva – está presente em 25 das 31 comunidades envolvidas –, o manejo florestal ainda precisa equacionar vários problemas. Atualmente, não há mão-de-obra suficiente para retirar a cota permitida: segundo o IDSM, dos 80 hectares que cada grupo tem o direito de explorar, apenas 17, em média, são aproveitados. "A pesca é a atividade mais forte na região, que acaba atraindo o pessoal do manejo florestal", diz a engenheira florestal Rosana Rocha, coordenadora do programa.

Outro problema do manejo florestal, que também é enfrentado pela pesca, é a concorrência com o produto ilegal. "Vendemos praticamente pelo mesmo preço. É muito pouco perto do trabalho que dá e do custo do frete da gasolina, que a gente tem de pagar também", reclama Silva. As comunidades vendem de 15 a 20 metros cúbicos por ano, com preços que vão de R$ 40 a R$ 72 o metro cúbico, de acordo com a madeira.

Uma alternativa para conseguir melhores preços pela madeira manejada seria a certificação florestal, mas essa opção está longe da realidade dos moradores das comunidades. Segundo a Bureau Veritas, uma das cinco certificadoras credenciadas pelo Conselho Brasileiro de Manejo Florestal (que emite o selo internacional FSC), o custo de cinco anos de certificação é de pelo menos R$ 30 mil. "O modelo é pensado para empresários, não para negócios de base comunitária", diz Rosana.

Qualidade de vida

Silva é pai de sete filhos. Três moram com ele e a esposa numa casa de madeira – os outros vivem com parentes no município de Alvarães, lugar mais próximo onde é possível estudar a partir do ensino médio. As crianças, entre dois e seis anos de idade, têm cáries visíveis. Como mobília, a casa tem uma mesa na sala, onde reina a televisão, e só. Não há água encanada e, portanto, também não há esgoto ou fossa. E, apesar de ser presidente comunitário, Silva não vive melhor que as outras 150 pessoas que moram em Assunção. A realidade dele é praticamente a mesma dos outros ribeirinhos, dentro e fora da reserva.

A diferença para as 11 mil pessoas que moram na reserva ou são usuárias dela é que o IDSM tem um programa de qualidade de vida, que objetiva promover ações de saúde comunitária, educação ambiental, comunicação comunitária e tecnologias apropriadas. Um dos resultados mais emblemáticos do programa foi a diminuição da mortalidade infantil de 87 por mil, em 1994, para 19 por mil em 2004. A desnutrição passou de 25,9% em 1994 para 4% em 2001. Contudo, o desenvolvimento das populações locais não é um dos principais objetivos do IDSM. "Fazemos isso como uma ajuda, porque nos sentiríamos muito incomodados em trabalhar na área, com apoio das populações, sem retribuir", diz Ana Rita Alves. "Mas saúde e educação são responsabilidade dos municípios."

O IDSM ainda tem desafios a superar nas reservas Mamirauá e Amanã. É preciso levar o manejo para as comunidades que não são atendidas e diminuir a dependência daquelas que já estão envolvidas em algum programa. Essas questões estão no radar do instituto: "É um trabalho contínuo", diz Ana Rita. A própria pousada, que é o projeto mais autônomo, demorou quase uma década para se tornar independente do instituto.

Mesmo assim, a RDS Mamirauá já é uma referência internacional. Países como Tanzânia, Argentina e Guiana Francesa vieram ao Brasil entender como funciona seu modelo de preservação ambiental. "A procura é tanta que justificou a criação de um curso sobre Mamirauá", diz Ana Rita. Assim como ambientalistas e pesquisadores têm tirado lições da RDS, também as comunidades tradicionais da região estão aprendendo com a experiência. No Jarauá, por exemplo, os pescadores entenderam realmente o valor da preservação: eles preferem não pescar a cota máxima, para que a recuperação dos estoques seja mais rápida. "Aqui é uma reserva. Quanto mais a gente cuidar, melhor para nós." Quem diz isso não é um ambientalista, e sim o pescador Marcos Cardoso Castro.


Um conceito em transformação

Até o final da década de 1970, falar em preservação ambiental no Brasil necessariamente excluía qualquer discussão sobre a possibilidade de presença humana no local a ser protegido. Foi nesse contexto que nasceram os primeiros parques nacionais, como Itatiaia, Serra dos Órgãos e Iguaçu. A partir dos anos 1980, muitos ambientalistas, entre eles o primatólogo Márcio Ayres, criador da RDS Mamirauá, começaram a defender a idéia de que seria possível conciliar a preservação da flora e da fauna com o desenvolvimento humano das comunidades locais a partir da exploração sustentável dos recursos naturais. "Naquela época, a ala mais conservacionista ficou chocada com a proposta e, por muitos anos, o assunto rendeu debates acirrados", lembra o professor Antonio Carlos Diegues, pesquisador sênior do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras (Nupaub), da Universidade de São Paulo.

Desde 2000, quando foi criado o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc), por meio da lei 9.985, a legislação brasileira contempla a coexistência entre preservação ambiental e populações locais. Atualmente, as unidades de conservação são divididas em duas categorias: "proteção integral" e "uso sustentável". Segundo o próprio Snuc, o objetivo principal das unidades de proteção integral é "preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto de seus recursos naturais", enquanto para as unidades de uso sustentável o princípio é "compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos recursos naturais". Desse segundo grupo fazem parte as RDS e as reservas extrativistas (Resex), entre outras. A Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá foi criada em 1996, antes mesmo de esse tipo de unidade de conservação ser incorporado ao Snuc.

Desde que a RDS passou a ser uma opção, o modelo tem sido a preferência nas novas unidades de conservação, especialmente no estado do Amazonas, onde mais da metade dos 16,5 milhões de hectares de área protegida são RDS. "Temos claramente priorizado a presença humana", diz Nádia Cristina d’Ávila Ferreira, secretária do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do estado do Amazonas.

 

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