
VIAGEM
por
Mário Araújo
Ilustrações:Marcos
Garuti
1.
A saída de casa se deu com grande atraso. Assim, pela pressa que
temos, nossos corpos deveriam estar em intenso movimento, agindo, fazendo
coisas simultaneamente. No entanto, estamos sentados, imóveis,
dentro de um carro também imóvel, enquanto tudo mais se
agita freneticamente lá fora, na rua, e mesmo aqui dentro, na superfície
plana dos espelhos retrovisores.
É através deles que a vemos se afastar.
Meu braço está apoiado na janela, na lataria quente, pendendo
para fora do carro. Faz um calor intenso. Pelo retrovisor ao meu lado
avisto a calçada e ela se afastando até parar à frente
de um portão que interrompe um muro alto, mas que, por ser alto
também, mantém proibida a paisagem à vista de quem
passa.
Ela toca a campainha e, sempre pelo espelho, percebo que começa
a esperar. Tenho dois relógios à minha frente, em posições
que me permitem vigiá-los facilmente.
Que horas são no teu?, pergunto, mesmo assim, à minha mulher.
Assisto no espelho à sua espera, a cabeça baixa ciscando
o chão durante o nada a fazer. Compartilho de uma humilhação
que nem mesmo sei se é sentida por ela e torço para que
acabe logo.
Ninguém atendeu, e ela vem, numa descida até o carro. Tento
calibrar meus olhos para apreender a cor exata do seu rosto, que me parece
tão vermelho, e só pode mesmo estar vermelho, de raiva e
vergonha. Como fazer para refrescá-lo? Meto a cabeça pela
janela e vou logo perguntando, para que ela, em vez de nos contar, num
movimento que poderia ser doloroso, tenha somente de responder: Não
tinha ninguém?
Ah, pode ter sido o endereço errado! E ela diz que vai telefonar
e se afasta do carro novamente, desta vez na direção oposta,
e caminha até um orelhão. Agora, a espera da linha. Mas
o telefonema não dura mais que alguns segundos e ela atravessa
a rua bem à nossa frente. Ao atingir a calçada do outro
lado, caminha apressada até se encontrar diante de outro portão,
exatamente defronte à casa de muro e portão inalcançáveis.
Por todo o trajeto, a vemos exibir um andar altivo, quase marcial, defesa
de quem sabe estar sendo observada.
A essa altura, os espelhos do automóvel já não me
servem mais e sou obrigado a me virar no banco para acompanhá-la,
enquanto minha mulher se concentra no retrovisor ao seu lado.
Se meus olhos não se deixam enganar pelas inúmeras árvores
na calçada, ela de fato conversa com alguém. Só não
sabemos se conseguirá o dinheiro emprestado. A iminência
de uma humilhação ainda mais forte, definitiva, pesa sobre
minha garganta.
Perdidos mais alguns minutos, ela inicia o caminho de volta. Cada passo
é uma preparação para cruzar a rua alvoroçada.
Está ansiosa, apressada, e eu já a espero com a mão
sobre o trinco da porta. Ela experimenta o asfalto com a ponta do tênis,
mas desiste diante do fluxo ininterrupto do tráfego. A pressa,
porém, por si só não é suficiente para indicar
o seu estado de ânimo, se de entusiasmo ou frustração.
E é nessa hora que coisas ruins brotam na cabeça. Um passo
enlouquecido? Desespero na mira dos automóveis que voam como projéteis?
Bo-ba-gem: com três passos rápidos ela conclui a travessia,
começo, meio e fim. Saio imediatamente do carro e examino seu rosto,
como se fosse uma emergência médica. Mas não tardo
a perceber um esboço de sorriso que logo se completa e, assim,
entramos no veículo, felizes, e mergulhamos no tráfego escuro
e oleoso. Alguns minutos ainda nos restam.
Chegamos enfim ao local marcado: a praça, as escadarias. Estaciono
improvisadamente, ela salta, mal dá tempo de um beijo. Ela se aparta
de nós mais uma vez, a blusa quadriculada e a mochila nas costas,
calças jeans, um cinto largo com fivela de metal. Ela veste sempre
essas roupas, e isso parece um hábito entre os colegas: o traje
único, repetido dia após dia, como uma marca registrada.
Há um bando de gente nas escadarias, na maioria jovens, uns sentados,
outros de pé. Resta saber se são eles. E se foram embora
mais cedo? E se não viemos ao lugar certo? Aos poucos ela vai se
distanciando e logo está tão miúda que não
se destaca mais entre os passantes. A blusa quadriculada se perde na correria
da tarde. Somos obrigados a procurá-la diversas vezes, a resgatá-la
do extravio entre transeuntes, pombos, árvores, ou simplesmente
atrás da poeira e da poluição que, misturadas ao
crepúsculo, a cobrem com uma espécie de véu. Sua
figura pisca, aparece-desaparece até que, por fim, a vemos parada,
e então se inclinando para beijar o rosto de um rapaz. E depois
de uma menina. Eles irão, eles irão mesmo para a Cidade
Maravilhosa.

2.
Naquela tarde foram avisados de uma leve melhora no estado de saúde
do avô. Uma melhora bem miúda, pequenina mesmo, daquelas
que, dadas as circunstâncias, só poderia mesmo merecer a
atenção dos muito próximos. Um olho fechado que se
abrira, um neto que sua consciência nebulosa permitira reconhecer.
E eles então se reuniram à mesa para jantar coelho recheado
com farofa. Farofa de legumes, o que significava devolver ao bucho do
animal, em outro formato, o alimento que esse ingerira em vida.
Uma brisa circulava entre os comensais, massageando-os, trazendo um alívio
cuja duração era de importância menor. Junto com o
coelho recheado, arroz e salada de tomates e alface.
Antes que se encontrassem todos ao abrigo de um assunto comum, muitas
palavras foram derramadas, nacos de frases, conversas entrecortadas pelo
tilintar dos talheres.
Diz que
Desde que eu conheço ele que ele
Outro dia sua mãe
Que nem naquele filme
Guardanapo
Deixa que eu
Cheia de obturações
Numa revista acho que foi
Sabe quem eu encontrei no
Eu não tinha nascido, você
Eu não saberia o que perguntar, muito menos
Um pressentimento
Vários sonhos, cada um mais doido
Até que surgiu, enfim, o tal abrigo:
Eu prefiro ser cremada, disse a mãe causando certa perplexidade,
de pronto camuflada.
Entre risos, todos se puseram a arremessar perguntas, dúvidas.
E aí, como é que vai ser?, indagou um.
Ah, sei lá, disse ela, com um gesto de quem enxota uma mosca pousada
no braço.
Não vai ser nada, tentou explicar outro. E mesmo que não
restassem só cinzas, mas sim o corpo, não seria nada também.
Ou, melhor, por algum tempo, sim, um corpo é de fato alguma coisa,
mas logo, logo...
Vermezinhos nojentos, roendo...
Pelo menos aí existe um processo, um desaparecimento gradual, e
o choque é menor.
Mas se esse processo é tão repulsivo assim, melhor ser nada
logo de uma vez, não acham? Instantaneamente...
O debate foi apontado novamente para a mãe.
E o que você diria ao seu vizinho no cemitério, o sujeito
do túmulo ao lado?
Ahn... sei lá..., disse como quem espanta um bicho do cabelo.
Risos, mais risos. A mãe soava engraçada enquanto pensativa,
ainda mais sobre uma questão como aquela. Sua fragilidade sobressaía
diante da situação insólita, o diálogo com
um estranho, sozinha ao anoitecer, o campo-santo já deserto de
visitas, deixado ao usufruto exclusivo dos seus moradores. A propósito
de que escolheria falar? Da família, da criação dos
filhos, tão trabalhosa?
As vibrações suscitadas pela conversa, aliadas à
deglutição dos derradeiros bocados do jantar, levaram-nos
ao seguinte: afastaram os pratos e, sem arredar os cotovelos da mesa,
puseram-se a olhar fotos antigas.
Uma delas havia sido tirada no dia em que o presidente Kennedy foi assassinado,
observou o filho do meio ao deparar com a data escrita no verso. A imagem
mostrava o avô, a avó, a mãe, uns primos e até
mesmo alguns amigos, esses últimos meros coadjuvantes relegados
à memória congelada da fotografia. Agrupavam-se em torno
de um velho automóvel, um DKW.
Em dúzias de outras fotos, uma legião de personagens, alguns
desaparecidos deste mundo ou simplesmente do mundo das lembranças,
outros ainda ali, presentes na própria mesa, mas transformados
por rugas, pelo avanço das fronteiras do corpo, para cima, para
os lados, por torrentes de hormônios ou pela falta deles. As crianças
sempre alegres, mesmo quando chorosas. Talvez porque um jovem infeliz
tenha mais vitalidade do que um velho feliz, como dizia o pai, ou pelo
menos mais paixão para abraçar seu sofrimento.
O avô surgia de quando em quando entre as imagens que se sucediam,
como em cenas de uma narrativa fragmentada. Ora aparecia como adolescente,
ora como senhor de bigodes grisalhos, para em seguida retornar como bebê,
e depois adulto, ostentando o anel de noivado, e então novamente
avançado em anos, com a cabeça calva realçada pelo
colorido pálido das fotografias dos anos 80. Era como se sua estampa
elegante, embora ocasionalmente encoberta por um ou outro personagem secundário,
estivesse sempre presente, transcendendo o tempo embaralhado.
As atenções estavam de tal modo voltadas para o avô
que suas ausências da mesa eram percebidas como mero efeito dos
olhos piscando, olhos que àquela altura já se irritavam
com a poeira emanada do papel há muito guardado.
Foi então que um espirro desastrado do caçula sobre o monte
de imagens fez com que uma delas se libertasse do seu peso e, após
um breve passeio alado, fosse pousar docemente no chão, para além
do tapete estampado, onde revelou a todos algo que teria permanecido oculto
sobre a mesa. Ali, na superfície do papel fotográfico, estava
a mãe,
acompanhada do namorado, mais tarde marido, e de mais dois casais, reunidos
ao redor de garrafas de cerveja e Coca-cola. Abraçada ao seu par,
ela exibia um sorriso puro, com o frescor do orvalho ao amanhecer, e úmido,
com gengivas aparecendo (são a revelação antecipada
do espaço interior), mas que deixava escapar a ponta de uma imensa
fragilidade.
Jamais ela tivera a oportunidade de ser apresentada a si mesma. Havia
lhe faltado aquele momento de solidão em que, na ausência
de uma vizinhança, trava-se o conhecimento de si. Por isso, ao
imaginar-se na solidão verdadeiramente profunda do cemitério,
pressentia a grande dificuldade de encontrar palavras, idéias,
de pensar em algo que fosse razoável dizer ao cavalheiro - ou à
senhora - do túmulo ao lado. O que dizer? Não fosse a sua
condição, um rubor lhe coloriria as faces. E um arrepio
brotaria na barriga, tão comovida estaria com a sensação
da liberdade à sua frente.
Mário Araújo
é autor, entre outros livros, de a Hora Extrema (Editora 7 Letras,
2005)
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