
A
ARTE DA CORAGEM
A
performer Marina Abramovic fala sobre a manifestação artística
que escolheu como expressão, a relação com seus alunos
e o trabalho Balkan Erotic Epic, apresentado em São Paulo
Marina
Abramovic - nascida em 1946, em Belgrado, antiga Iugoslávia, atual
Montenegro - é um dos grandes nomes de uma expressão artística
que causa tanto curiosidade quanto estranhamento: a performance. Difícil
de ser definida - "trata-se de algo muito subjetivo", diz a
performer -, a manifestação constitui-se, grosso modo, em
uma "apresentação", ao vivo ou misturada a outras
linguagens, como o vídeo, na qual o artista cria e vive situações
que podem estar relacionadas tanto a seus mais íntimos sentimentos
quanto à cultura de um povo - como é o caso de Balkan Erotic
Epic, trabalho apresentado no Sesc Pinheiros, no qual, por meio de uma
instalação com sete vídeos, a artista explorou as
tradições, as crenças e a maneira de encarar a sexualidade
de seu povo. A vinda de Marina ao Brasil rendeu ainda workshops e palestras
em que seu processo de trabalho e seu diálogo com jovens artistas
foram alguns dos temas abordados. A seguir, trechos do depoimento concedido
à Revista E.
O que é
performance?
Difícil definir um conceito para performance. Cada artista tem
uma resposta diferente para a pergunta "o que é performance?".
Ou seja, trata-se de algo muito subjetivo. Vejo a performance como uma
construção inteiramente mental e espiritual, na qual a criação
se dá praticamente em frente ao público. E, no meu caso,
isso acontece de forma ainda mais especial diante de uma platéia
jovem. Acho muito importante o diálogo com artistas e público
jovens. Acredito que o trabalho tem de sensibilizar diferentes gerações,
isso é fundamental para o desenvolvimento da sociedade. Se tiver
apenas uma temática e só for entendido por uma geração,
não vai para lugar nenhum. O trabalho deve ter conceitos contemporâneos,
e você tem de saber mudar. Por isso, para mim, como professora -
convivo com jovens estudantes -, é muito importante esse diálogo,
pois assim posso passar minhas experiências ao mesmo tempo em que
eles me dão um senso de contemporaneidade. Nós, eu e os
jovens, conversamos sobre música, dança, moda e outras informações
de que necessito muitíssimo. É dessa troca que o trabalho
sobrevive.
Passado e futuro
Nos anos 70, a performance era muito conceitual, muito relacionada ao
corpo e à moda. Nos anos anos 80, ela passou a acontecer principalmente
dentro das galerias de arte e, por isso, estava relacionada às
vendas que aconteciam dentro desse espaço - que é feito
para isso mesmo, vender o que estava exposto ali. Mas não é
essa a sua função, por isso ela teve de sair desses espaços
e foi para os clubes noturnos, depois para o teatro, para o museu, voltou
para a dança. Por isso, gosto de pensar na performance como uma
fênix [ave mitológica que se deixava queimar num braseiro
para depois renascer das próprias cinzas]. Ela está
sempre queimando, morrendo e renascendo - de uma maneira diferente, com
formas diferentes. Nos anos 90, ocorriam muitas performances também,
mas não eram pensadas para ser realizadas diante de uma platéia;
logo, foram rejeitadas pelos museus.
Penso que no futuro elas soarão naturais. A geração
mais jovem é muito mais conectada com a música do que éramos
antes. Hoje em dia, a performance está muito mais ligada a um ritmo,
a uma melodia, muito mais do que já esteve. São muito interessantes
essas mudanças e também a maneira como o público
as encara, as sente. Mas a performance nunca morre, só muda a roupagem.
Atualmente é comum encontrar artistas que criam a performance na
posição de diretor e a dão para outras pessoas representarem.
Há também os coreógrafos, alguns deles fazendo um
trabalho muito próximo da performance, como a alemã Pina
Bausch [coreógrafa conhecida por suas criações
denominadas dança-teatro]. Seu trabalho é muito interessante,
pois se aproxima das abordagens conceituais de antigamente. Ela põe
seus dançarinos em situações impossíveis,
como na neve e na lama. A experiência de quem assiste a tamanha
dificuldade é real e muito próxima da sensação
de quem está passando realmente por aquilo. E existe aquele tipo
de performance feita em vídeo, o que é muito intimista,
mas no fim das contas é realizada em frente a um objeto. Ou seja,
há muitas formas.
Limites
a ultrapassar
A barreira mais difícil para um performer é a própria
insegurança. Você tem de ter certeza. Faço performance
há 18 anos e sempre fico muito nervosa, com muito medo e suo muito.
Toda vez é a mesma coisa. Mas, no momento em que estou na frente
do público, me torno mais importante que essa insegurança.
Nessa hora tem de haver uma transição daquele pânico
total, para o performer realmente começar a atuação.
Para isso, asseguro-me de que as outras partes de meu cérebro estão
completamente livres. E isso tem de ser mantido em equilíbrio.
Se o artista ficar inseguro, se não souber o que fazer, o equilíbrio
é quebrado, e não há como voltar atrás. Por
isso, no dia-a-dia, temos de nos manter numa espécie de treino.
Temos de condicionar o corpo e a mente. Esse trabalho existe para que
se adquira percepção, para ter força, para entender
os limites. Você tem de adquirir uma flexibilidade corporal para
as performances, por isso os treinos são intensos. O corpo é
uma máquina, e o artista precisa de uma condição
física extrema - mesmo assim, ainda precisa de coragem. No caso
dos meus alunos, levo-os para um lugar distante, no meio da natureza,
onde eles ficam sem comer por cinco dias, por exemplo, ou sem falar por
dez dias, e fazem exercícios muito pesados. Ou seja, a todo instante
eles são levados ao limite, mas ainda assim precisam seguir adiante.
O cérebro é outro grande obstáculo, porque, quando
está fazendo algo que parece impossível, o indivíduo
se pergunta por que está fazendo aquilo. Mas se você tem
determinação e vai fazer isso por cinco ou seis dias, tem
de respeitar suas decisões. Manter as decisões é
importantíssimo porque elas são muito fáceis de ser
quebradas. Mas ir até o fim é muito gratificante.
São Paulo
do caos
Eu acho que os arquitetos do resto do mundo deveriam vir a São
Paulo pelo menos uma vez na vida, porque esta cidade é arquitetonicamente
uma desordem, e eu adoro isso. É muito original, pois parece que,
ao mesmo tempo em que há um conceito, ele não existe. É
uma arquitetura muito complexa, construída das maneiras mais diversas.
Acho-a inspiradora, ao contrário do que se vê em países
como a Suíça, onde tudo é tão direitinho que
se morre de tanto tédio. Já aqui é fantástico.
Francis Bacon [1909-1992, pintor inglês] uma vez falou que
somente em meio ao caos conseguimos desenvolver idéias. E São
Paulo é definitivamente um caos, com muitas idéias novas.
Tradições de um país
A idéia de Balkan Erotic Epic era descobrir, em meu próprio
país, suas tradições, suas crenças e sua maneira
de encarar a sexualidade. Não fiz pesquisa para isso, as coisas
simplesmente vieram. Eu não acredito em trabalho preestabelecido,
acredito que as boas idéias venham do nada. A única energia
no corpo que todos nós temos é a energia sexual. É
a principal delas, porque está relacionada à produção,
é a energia que nos mantém vivos. E é importante
questionar como ela se transforma em tantas coisas diferentes, como criatividade,
agressividade ou frustração. É interessante que essa
mesma energia sexual seja empregada na guerra e na perpetuação.
Está na cara que precisamos conhecê-la, para nos transformar
no que precisamos.
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