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Performance

REVISTA E - Novembro 2006

 

 



A ARTE DA CORAGEM

 

 

A performer Marina Abramovic fala sobre a manifestação artística que escolheu como expressão, a relação com seus alunos e o trabalho Balkan Erotic Epic, apresentado em São Paulo

 


Marina Abramovic - nascida em 1946, em Belgrado, antiga Iugoslávia, atual Montenegro - é um dos grandes nomes de uma expressão artística que causa tanto curiosidade quanto estranhamento: a performance. Difícil de ser definida - "trata-se de algo muito subjetivo", diz a performer -, a manifestação constitui-se, grosso modo, em uma "apresentação", ao vivo ou misturada a outras linguagens, como o vídeo, na qual o artista cria e vive situações que podem estar relacionadas tanto a seus mais íntimos sentimentos quanto à cultura de um povo - como é o caso de Balkan Erotic Epic, trabalho apresentado no Sesc Pinheiros, no qual, por meio de uma instalação com sete vídeos, a artista explorou as tradições, as crenças e a maneira de encarar a sexualidade de seu povo. A vinda de Marina ao Brasil rendeu ainda workshops e palestras em que seu processo de trabalho e seu diálogo com jovens artistas foram alguns dos temas abordados. A seguir, trechos do depoimento concedido à Revista E.


 

O que é performance?
Difícil definir um conceito para performance. Cada artista tem uma resposta diferente para a pergunta "o que é performance?". Ou seja, trata-se de algo muito subjetivo. Vejo a performance como uma construção inteiramente mental e espiritual, na qual a criação se dá praticamente em frente ao público. E, no meu caso, isso acontece de forma ainda mais especial diante de uma platéia jovem. Acho muito importante o diálogo com artistas e público jovens. Acredito que o trabalho tem de sensibilizar diferentes gerações, isso é fundamental para o desenvolvimento da sociedade. Se tiver apenas uma temática e só for entendido por uma geração, não vai para lugar nenhum. O trabalho deve ter conceitos contemporâneos, e você tem de saber mudar. Por isso, para mim, como professora - convivo com jovens estudantes -, é muito importante esse diálogo, pois assim posso passar minhas experiências ao mesmo tempo em que eles me dão um senso de contemporaneidade. Nós, eu e os jovens, conversamos sobre música, dança, moda e outras informações de que necessito muitíssimo. É dessa troca que o trabalho sobrevive.


 

Passado e futuro
Nos anos 70, a performance era muito conceitual, muito relacionada ao corpo e à moda. Nos anos anos 80, ela passou a acontecer principalmente dentro das galerias de arte e, por isso, estava relacionada às vendas que aconteciam dentro desse espaço - que é feito para isso mesmo, vender o que estava exposto ali. Mas não é essa a sua função, por isso ela teve de sair desses espaços e foi para os clubes noturnos, depois para o teatro, para o museu, voltou para a dança. Por isso, gosto de pensar na performance como uma fênix [ave mitológica que se deixava queimar num braseiro para depois renascer das próprias cinzas]. Ela está sempre queimando, morrendo e renascendo - de uma maneira diferente, com formas diferentes. Nos anos 90, ocorriam muitas performances também, mas não eram pensadas para ser realizadas diante de uma platéia; logo, foram rejeitadas pelos museus.



Penso que no futuro elas soarão naturais. A geração mais jovem é muito mais conectada com a música do que éramos antes. Hoje em dia, a performance está muito mais ligada a um ritmo, a uma melodia, muito mais do que já esteve. São muito interessantes essas mudanças e também a maneira como o público as encara, as sente. Mas a performance nunca morre, só muda a roupagem. Atualmente é comum encontrar artistas que criam a performance na posição de diretor e a dão para outras pessoas representarem. Há também os coreógrafos, alguns deles fazendo um trabalho muito próximo da performance, como a alemã Pina Bausch [coreógrafa conhecida por suas criações denominadas dança-teatro]. Seu trabalho é muito interessante, pois se aproxima das abordagens conceituais de antigamente. Ela põe seus dançarinos em situações impossíveis, como na neve e na lama. A experiência de quem assiste a tamanha dificuldade é real e muito próxima da sensação de quem está passando realmente por aquilo. E existe aquele tipo de performance feita em vídeo, o que é muito intimista, mas no fim das contas é realizada em frente a um objeto. Ou seja, há muitas formas.

 



Limites a ultrapassar
A barreira mais difícil para um performer é a própria insegurança. Você tem de ter certeza. Faço performance há 18 anos e sempre fico muito nervosa, com muito medo e suo muito. Toda vez é a mesma coisa. Mas, no momento em que estou na frente do público, me torno mais importante que essa insegurança. Nessa hora tem de haver uma transição daquele pânico total, para o performer realmente começar a atuação. Para isso, asseguro-me de que as outras partes de meu cérebro estão completamente livres. E isso tem de ser mantido em equilíbrio. Se o artista ficar inseguro, se não souber o que fazer, o equilíbrio é quebrado, e não há como voltar atrás. Por isso, no dia-a-dia, temos de nos manter numa espécie de treino. Temos de condicionar o corpo e a mente. Esse trabalho existe para que se adquira percepção, para ter força, para entender os limites. Você tem de adquirir uma flexibilidade corporal para as performances, por isso os treinos são intensos. O corpo é uma máquina, e o artista precisa de uma condição física extrema - mesmo assim, ainda precisa de coragem. No caso dos meus alunos, levo-os para um lugar distante, no meio da natureza, onde eles ficam sem comer por cinco dias, por exemplo, ou sem falar por dez dias, e fazem exercícios muito pesados. Ou seja, a todo instante eles são levados ao limite, mas ainda assim precisam seguir adiante. O cérebro é outro grande obstáculo, porque, quando está fazendo algo que parece impossível, o indivíduo se pergunta por que está fazendo aquilo. Mas se você tem determinação e vai fazer isso por cinco ou seis dias, tem de respeitar suas decisões. Manter as decisões é importantíssimo porque elas são muito fáceis de ser quebradas. Mas ir até o fim é muito gratificante.


 

 

São Paulo do caos
Eu acho que os arquitetos do resto do mundo deveriam vir a São Paulo pelo menos uma vez na vida, porque esta cidade é arquitetonicamente uma desordem, e eu adoro isso. É muito original, pois parece que, ao mesmo tempo em que há um conceito, ele não existe. É uma arquitetura muito complexa, construída das maneiras mais diversas. Acho-a inspiradora, ao contrário do que se vê em países como a Suíça, onde tudo é tão direitinho que se morre de tanto tédio. Já aqui é fantástico. Francis Bacon [1909-1992, pintor inglês] uma vez falou que somente em meio ao caos conseguimos desenvolver idéias. E São Paulo é definitivamente um caos, com muitas idéias novas.

 



Tradições de um país
A idéia de Balkan Erotic Epic era descobrir, em meu próprio país, suas tradições, suas crenças e sua maneira de encarar a sexualidade. Não fiz pesquisa para isso, as coisas simplesmente vieram. Eu não acredito em trabalho preestabelecido, acredito que as boas idéias venham do nada. A única energia no corpo que todos nós temos é a energia sexual. É a principal delas, porque está relacionada à produção, é a energia que nos mantém vivos. E é importante questionar como ela se transforma em tantas coisas diferentes, como criatividade, agressividade ou frustração. É interessante que essa mesma energia sexual seja empregada na guerra e na perpetuação. Está na cara que precisamos conhecê-la, para nos transformar no que precisamos.



 




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