
GABRIEL
COHN
Em conversa com a Revista E, o sociólogo fala da universidade no
Brasil e do papel da mídia no processo eleitoral do país
Ao analisar a atual
situação das universidades públicas brasileiras,
sobretudo as de São Paulo, o sociólogo Gabriel Cohn, atual
diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
da Universidade de São Paulo (USP), afirma que o momento é
delicado. Segundo ele, se de um lado se tem cobrado delas o desempenho
de seu papel original de atender a toda a população - embora
acabem beneficiando aqueles com melhores condições -, de
outro, elas passam a enfrentar uma crescente "concorrência"
dos estabelecimentos privados de ensino superior. Para Cohn, essas instituições
de ensino irão se multiplicar nos próximos anos justamente
por perceber que os maiores usuários vêm das classes mais
altas. Na entrevista exclusiva que concedeu à Revista E, o autor
de Crítica e Resignação (Editora Martins Fontes,
2003), entre outros livros, afirmou ter reservas quanto às cotas
raciais, mas defende programas que busquem maior inclusão de alunos
vindos da escola pública, iniciativas como as que existem na Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp) e na própria USP. A seguir trechos
da conversa na qual o entrevistado falou ainda do papel da mídia
no processo eleitoral brasileiro e da educação nos tempos
da ditadura.
Como o senhor vê o papel formador das universidades, sobretudo
as públicas, e a qualidade de seus corpos docentes?
A primeira coisa que me ocorre é que, de fato, vivemos um momento
delicado da universidade pública. Em certa medida, porque a vejo
sendo espoliada por dois lados. Por baixo ela está sendo devorada
pelas demandas crescentes, que têm a ver com essa circunstância
de que ela atende, de maneira muito insatisfatória, aos setores
de mais baixa renda da sociedade - os quais supostamente deveriam ser
os beneficiados pelo ensino gratuito. No entanto, ela acaba beneficiando
aqueles com melhores condições, já que todos os mecanismos
de seleção da universidade tendem a reproduzir a distribuição
de renda. E, no caso, não se trata apenas das vantagens econômicas,
mas estas trazem consigo as vantagens de formação em escolas
específicas, em rede privada etc. O outro lado é que a universidade
está ameaçada pelo lado de cima também, porque a
contrapartida dessa circunstância, de absorver o pessoal com mais
recursos, tanto econômicos quanto culturais, é que ela recruta
uma elite de estudantes, forma profissionais, pesquisadores e docentes
altamente qualificados, mas não está assegurado que ela
mantenha isso. Porque o setor privado do ensino já descobriu que
existe, sim, um mercado para escolas de elite. Creio que elas [as escolas
particulares] irão se multiplicar nos próximos anos. O resultado
disso é que a universidade pública pode perder em qualidade,
nem mesmo ter condições para atender a essas pressões
que vêm da base. Creio que essa é uma situação
penosa, porque a questão primordial não é simplesmente
se você está recrutando os que têm menos recursos,
o problema é como você pode associar a sua expansão,
em relação à sociedade, com a manutenção
e o aperfeiçoamento da excelência da pesquisa na docência.
No
que diz respeito às universidades paulistas, que são muito
específicas no contexto brasileiro, o senhor acha que estamos vivendo
o estertor de um modelo?
Em São Paulo, o grande desafio é a manutenção
e o aprofundamento da condição de ponta que as universidades
paulistas, junto com algumas de outros estados, têm. Talvez seja
aqui que essa coisa de que eu falava antes, de cortar por baixo e por
cima, seja mais nítida e mais crítica. Um pouco naqueles
termos que eu tentava sugerir antes, de que para atender melhor às
demandas de baixo, vai ser necessário ficar muito atento para não
perder nada e para ganhar na excelência da alta qualidade do ensino
e da pesquisa. É muito difícil. A USP está, em várias
áreas, tendo problemas porque, por exemplo, forma excelentes pesquisadores,
mas que não ficam na instituição. Antigamente eles
ficavam, mas agora estão sendo capturados por outras escolas. Isso
é outro lado que talvez valha a pena mencionar, que também
é um risco que a universidade pública corre: por um lado
é provedora de quadros de primeira linha para instituições
privadas, por outro é provedora de mão-de-obra barata para
essas outras instituições - que existem por aí aos
montes e que não têm nada a ver com qualidade e com trabalho
acadêmico. É outro lado da questão. A quem você
está atendendo? Se não houver bons mecanismos de incorporar
as demandas de baixo nem bons mecanismos para garantir a excelência
em cima, corre-se o risco de ter seus estudantes formados drenados por
mecanismos perversos de recrutamento. Pensando no caso da USP, ou você
forma gente boa que vai embora - conseqüentemente, ela vai se empobrecendo
por cima, perdendo a qualidade de excelência - ou você é
simplesmente um provedor de mão-de-obra barata. É fácil
localizar onde está o hiato entre as duas coisas: os problemas
do ensino médio público. Nós pagamos um preço
altíssimo pela exigência prematura, e em muitos aspectos
artificial, da universalização do ensino superior. A idéia
de que você tem de ter diploma de ensino superior para uma série
de atividades onera muito e coloca um peso sem tamanho sobre o ensino
superior, desviando a atenção daquilo que interessa, que
é o bom ensino médio. Quer dizer, é a liquidação
da boa escola pública pré-universitária, é
realmente uma tragédia nacional.
O senhor está
se referindo, por exemplo, à implementação dos cursos
técnicos?
Os cursos técnicos são iniciativas simpáticas. Aliás,
tem de haver a recuperação do ensino efetivamente profissional.
Acredito bastante nisso. Perdemos ótimos colégios públicos,
que davam uma formação ampla, mas não de nível
universitário, que incorporavam boa parte da população
às ciências e à humanidade. Como já houve neste
país, mas que está perdido em um passado cada vez mais remoto.
Por que todo mundo tem de ter diploma universitário? Isso não
é necessário, é uma concepção equivocada,
e eu diria artificial, porque ela é reforçada e induzida
por empreendimentos privados que querem ter clientela cativa, e que gostam
de ter regulamentação de profissão - o que cria uma
demanda que precisa de diploma. Isso está drenando recursos para
atividades que não têm nenhum retorno social. O essencial
ali está perdido, e você tem um verdadeiro vácuo no
ensino. Seria terrível se tivéssemos, aqui no Brasil, uma
versão perversa de uma coisa ruim que os americanos criaram, que
é um ensino na graduação sem grandes exigências,
com todo o peso jogado para a pós-graduação, que
é onde você vai formar os grandes profissionais, os pesquisadores
etc. Isso é um traço ruim do sistema norte-americano que
pode ser incorporado aqui em condições muito pioradas.
Nesse sentido,
o que o senhor acha dessas ações afirmativas que têm
sido feitas, principalmente fora de São Paulo?
Desde logo quero antecipar que tenho muita reserva em relação
às cotas. Sou simpático ao argumento de alguns colegas que
dizem que com cotas raciais haveria um aumento do problema a ser resolvido.
Com isso, criam-se cortes na sociedade que não eram tão
nítidos e abre-se espaço para todo tipo de desdobramentos
que são mais questionáveis do que os eventuais benefícios
em curto prazo. Eu tenho um severo desconforto em relação
às cotas. No entanto, vejo com bastante simpatia as tentativas,
ainda que de forma tímida, como a da própria USP e da Unicamp,
que abrem mais espaço no vestibular, por exemplo, para quem vem
da escola pública. Porque é uma maneira de canalizar, para
a universidade, segmentos da população que são marcados
por uma trajetória escolar condicionada em termos socioeconômicos,
mas que certamente têm muitas pessoas com talento. No entanto, não
chegariam à universidade pública se não houvesse
esse incentivo. Trata-se de uma medida que tem seu foco particular e continua
sendo universalizante, no sentido de que incorpora quem tem condições.
Não há um corte étnico ou racial. E o aprofundamento
de medidas desse tipo pode também contribuir para mobilizar mais
a universidade - que em alguns momentos responde de modo insuficiente
a uma exigência fundamental da universidade pública, que
é a formação de pessoal para o ensino médio.
Essa é uma vocação da USP, principalmente dessa escola
onde estamos agora, a Faculdade de Filosofia da USP [Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, FFLCH], que sempre teve esse caráter
de formar um quadro de professores para o ensino médio. A idéia
levada até o extremo, que em alguns momentos foi nítida:
formar formadores de cidadãos. Essa é a idéia mais
funda que nos alimentou nos melhores momentos.
Há quem
diga que a ditadura desmobilizou essa poderosa escola pública brasileira.
Mas, vamos falar especificamente de São Paulo, a ditadura perseguiu
professores que eram formadores.
Isso tudo é verdade. Algumas coisas totalmente inovadoras foram
destroçadas naqueles tempos de ditadura. Porém, não
dá para botar tudo na conta da ditadura, esse processo já
vinha em andamento. O auge da grande escola pública foi nos anos
50, depois entrou em declínio. Não vou negar a contribuição
da ditadura, que como todo regime com um matiz autoritário desconfia
de inovações, do jogo amplo e livre das idéias. Mas
também, por exemplo, a destinação de recursos para
a área universitária e uma atenção menor na
formação pré-universitária, talvez tenham
contribuído um pouco para gerar esse hiato entre a universidade
e o ensino médio. É claro que também nenhuma ditadura
gosta da formação de formadores de cidadãos, mas
não é isso que está em jogo, cidadania não
é preocupação de nenhuma ditadura. Eficácia,
sim, eficácia da rede ensino, inserção mais forte
no setor produtivo, aumento da competitividade, enfim, tudo isso é
compatível com qualquer ditadura. A ditadura é perfeitamente
compatível com o aumento da eficiência de diversas políticas.
Até aí não há problema algum. É claro
que não existe aquele alento fundamental, que está na base
de nossa escola aqui, de formar formadores de cidadãos. Nesse ponto
há uma discrepância. Há uma concepção
do ensino médio, por exemplo, como um simples canal de recrutamento
de sujeitos mais dotados que serão capturados e jogados em posições
importantes. É uma visão do ensino que acaba sendo elitista,
apesar de eu não gostar desse termo. Então, é filtrar
e selecionar alguém para ser um bom engenheiro, por exemplo. Mas
a questão não é universalizar certos traços
de conduta de relação com a sociedade, de ver o que é
bom para sociedade. Formar cidadãos não é o problema,
o que acentua as peculiaridades do componente autoritário nessa
sociedade.
O senhor acredita
que hoje as discussões no ambiente acadêmico, principalmente
por parte dos alunos, são menos, digamos, importantes do que eram
na época em que a universidade era um núcleo de resistência
ao regime militar, por exemplo?
Confesso que não vejo esse tipo de grande objetivo com nitidez
no cenário atual. Na realidade, a dificuldade é projetar
qualquer tipo de proposta para um período mais longo, então
isso dificulta muito. É verdade que as mobilizações
se fazem em cima de questões muito pontuais e muito pequenas, e
aí há um problema complicado envolvido. Não há
mais cenários bem definidos que permitam olhar para o futuro e
dizer: "Eu vou trabalhar para isso". Ou seja, de fato, não
há um cenário definido que oriente as aspirações.
O que me preocupa é que existe uma combinação que
pode ser muito perniciosa, entre a concentração de ações
pequenas, de curto prazo e pontuais, e a projeção muito
difusa, pouco trabalhada, de aspirações que não ganham
corpo e que são jogadas para um futuro muito remoto. Porque o sonho
dos anos 60 não era tão remoto assim, era uma visão
alternativa de sociedade, que se anunciava como possível na época.
Hoje, não se tem uma alternativa bem definida de sociedade. Ao
mesmo tempo, não se quer abrir mão de aspirações
mais fortes. Então, corre-se o risco muito presente em uma parcela
dos estudantes, justamente os que não querem ficar na pequena rotina,
de haver um descolamento entre o pequeno espaço para a ação
efetiva e algum tipo de referência que fica vaga. Isso gera, mais
uma vez, um hiato, um vazio perigoso. Fico muito preocupado com isso,
porque esse vazio pode ser preenchido de muitas maneiras. Nos anos 60,
principalmente, não havia esse buraco entre seu trabalho cotidiano
e sua inserção em uma proposta de transformação
da sociedade, pelo menos não aparentemente.
Esse buraco pode
gerar uma frustração?
Isso me preocupa. Não sei se é uma percepção
equivocada, mas me parece que estamos vivendo um período em que
está muito presente nas condutas sociais mais variadas componentes
que assumem a forma de rancor, de ressentimento, quase de ódio.
Há alguma coisa que alimenta a frustração, embutida
no hiato entre a pequena ação e eventuais referências
que continuam sendo abstratas. Como atingir algo que não se define
com clareza? Como chegar a algo que de antemão está definido
como impossível? Como conseguir orientar a própria conduta
se não há um quadro bem definido do que se busca atingir?
Se existe esse descompasso, de antemão há uma espécie
de frustração embutida nas ações. Aí
começa a surgir uma concepção rancorosa em relação
ao outro. Agora, há outra coisa. No Brasil, a democracia representativa
funciona muito bem hoje. Então, dizem: "Que beleza, agora
linearmente isso vai passar adiante na sociedade e todos se tornarão
os perfeitos democratas". Isso em termos políticos, sociais,
de abertura para o outro e de entendimento. Mas isso não é
verdade, eu não preciso ser um democrata para votar, posso votar
sem nenhuma exigência desse tipo. A democracia representativa é
compatível com um monte de coisas. Aliás, o oposto de democracia
não é autoritarismo, existem democracias altamente autoritárias.
A questão é não ter autocracia, não ter concentração
de poder em um único foco, eliminando todos os mecanismos de soberania
popular. Autoritarismo é compatível com qualquer regime.
Então, a idéia de que existem instituições
democráticas e por isso a sociedade se democratiza automaticamente
e linearmente é muito perigosa. Há que se trabalhar muito
para isso, e aí voltamos para a questão da universalidade,
da formação dos formadores. Deve-se trabalhar em um prazo
longo e molecularmente ir penetrando na sociedade, e isso demora, exige
tempo e paciência. E o tempo e a paciência colidem com a exigência
da eficácia e do resultado rápido, que é o que nos
mata. Isso talvez seja um dos muitos traços que o período
ditatorial acentuou e que ainda continua. Nós herdamos isso porque
é compatível com as formas de organização
econômica dominantes. Estamos com uma espécie de demônio
nos comendo por dentro, que é o efeito máximo e rápido.
É como se
fosse tirado o caráter humanista da própria busca da eficácia?
Exatamente. Você deixaria de perceber como as coisas se tornaram
aquilo que são. Então, você engole qualquer coisa
com anzol e tudo. O que significa, em termos de emprego, o aumento da
eficácia do equipamento sobre a sociedade, de habilidades e de
concentração do conjunto das capacidades de atenção
de muitos em uma única coisa? Qual o significado do que estou fazendo?
Se não tenho como refletir sobre isso, não sou um cidadão.
O cenário é dos mais ásperos, mas se traduz eventualmente
em bons indicadores estatísticos no fim do ano. Vou cometer uma
enorme injustiça, vou falar sem pesquisa adequada, mas pegue o
caso da China contemporânea. Todo mundo acha uma maravilha esse
país crescer rápido. Será que realmente é
uma maravilha? Será que a combinação entre a busca
mais desenfreada de resultados de curtíssimo prazo e de instalação
muito rápida de uma economia de mercado, associada ao despotismo
político e a uma burocracia impiedosa, é tão fantástico
assim? Tem 10% de crescimento ao ano, mas o que isso significa? Quer dizer,
não dá para você simplesmente comprar a idéia
de que políticas eficazes de crescimento são necessariamente
as mais importantes. Talvez seja bem mais interessante aumentar formas
de participação social e política do que formas de
participação no produto.
O senhor acredita
que hoje é possível perceber uma desmobilização
e uma descrença nas ações políticas?
Há várias coisas acontecendo ao mesmo tempo. Existe, sim,
todo um movimento que procura desvalorizar a política. Isso é
perigosíssimo, tem até aquela história de que "no
fundo é tudo igual, os políticos são todos corruptos"
etc. Mais uma vez, no período recente, isso vem sendo enfocado,
e é terrível. Ao mesmo tempo, isso tem contrapartidas. Primeiro,
há uma participação eleitoral muito forte, há
um aumento no discernimento e na crítica em relação
a quem votar. É verdade que houve votos estranhíssimos aqui
em São Paulo, mas isso sempre ocorre. No entanto, acredito que
tenha uma curva ascendente de participação inteligente e
consciente no ato do voto. Certos setores muito conservadores da política
brasileira perdem espaço, é muito nítido isso nessas
eleições no Nordeste. Agora, no curto prazo [essa desvalorização
da política], é preocupante. Como querer construir cidadania
se não se valoriza a ação voltada para o que é
público? O que me preocupa é que existe uma ambigüidade
do cidadão, comum em relação às coisas públicas,
na qual uma pessoa não acredita na política, mas busca um
bom candidato. Há uma tensão nisso. É uma ambigüidade
que tanto pode reforçar os avanços em busca de uma cidadania
mais consciente e participativa, mas que também pode, eventualmente,
resultar numa capitulação diante de uma concepção
mais minimalista do voto.
Qual o papel que
a grande mídia, nos dias de hoje, representou e tem representado
nesse processo eleitoral?
Não vejo tanto a mídia focalizando grandes opções
para o Brasil e para a sociedade como um todo. Parece-me que ela exprime
muito mais interesses setoriais, eventualmente em curto prazo. Entre eles,
é impossível não reconhecer que haja o interesse
das grandes empresas de comunicação. Na realidade, a mídia
opera para consolidar as grandes regras do jogo, ela não atua contra
isso. Não há uma mídia golpista questionando o valor
das eleições. Mas existe, sim, uma inserção
forte dos meios de comunicação na busca de interesses setoriais.
Em um certo momento, são capazes de ser simpáticas ao governo
vigente, porque entendem que obtiveram algum beneficio, mas em um outro
momento orientam sua proposta de maneira totalmente oposta, dependendo
da conjuntura e das vantagens que estão almejando. É uma
relação complicada essa entre os sistemas de comunicação
e os governos.
volta
ao início
|