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Entrevista

REVISTA E Novembro - 2006

 

 


GABRIEL COHN

 


Em conversa com a Revista E, o sociólogo fala da universidade no Brasil e do papel da mídia no processo eleitoral do país



Ao analisar a atual situação das universidades públicas brasileiras, sobretudo as de São Paulo, o sociólogo Gabriel Cohn, atual diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), afirma que o momento é delicado. Segundo ele, se de um lado se tem cobrado delas o desempenho de seu papel original de atender a toda a população - embora acabem beneficiando aqueles com melhores condições -, de outro, elas passam a enfrentar uma crescente "concorrência" dos estabelecimentos privados de ensino superior. Para Cohn, essas instituições de ensino irão se multiplicar nos próximos anos justamente por perceber que os maiores usuários vêm das classes mais altas. Na entrevista exclusiva que concedeu à Revista E, o autor de Crítica e Resignação (Editora Martins Fontes, 2003), entre outros livros, afirmou ter reservas quanto às cotas raciais, mas defende programas que busquem maior inclusão de alunos vindos da escola pública, iniciativas como as que existem na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e na própria USP. A seguir trechos da conversa na qual o entrevistado falou ainda do papel da mídia no processo eleitoral brasileiro e da educação nos tempos da ditadura.



Como o senhor vê o papel formador das universidades, sobretudo as públicas, e a qualidade de seus corpos docentes?
A primeira coisa que me ocorre é que, de fato, vivemos um momento delicado da universidade pública. Em certa medida, porque a vejo sendo espoliada por dois lados. Por baixo ela está sendo devorada pelas demandas crescentes, que têm a ver com essa circunstância de que ela atende, de maneira muito insatisfatória, aos setores de mais baixa renda da sociedade - os quais supostamente deveriam ser os beneficiados pelo ensino gratuito. No entanto, ela acaba beneficiando aqueles com melhores condições, já que todos os mecanismos de seleção da universidade tendem a reproduzir a distribuição de renda. E, no caso, não se trata apenas das vantagens econômicas, mas estas trazem consigo as vantagens de formação em escolas específicas, em rede privada etc. O outro lado é que a universidade está ameaçada pelo lado de cima também, porque a contrapartida dessa circunstância, de absorver o pessoal com mais recursos, tanto econômicos quanto culturais, é que ela recruta uma elite de estudantes, forma profissionais, pesquisadores e docentes altamente qualificados, mas não está assegurado que ela mantenha isso. Porque o setor privado do ensino já descobriu que existe, sim, um mercado para escolas de elite. Creio que elas [as escolas particulares] irão se multiplicar nos próximos anos. O resultado disso é que a universidade pública pode perder em qualidade, nem mesmo ter condições para atender a essas pressões que vêm da base. Creio que essa é uma situação penosa, porque a questão primordial não é simplesmente se você está recrutando os que têm menos recursos, o problema é como você pode associar a sua expansão, em relação à sociedade, com a manutenção e o aperfeiçoamento da excelência da pesquisa na docência.


No que diz respeito às universidades paulistas, que são muito específicas no contexto brasileiro, o senhor acha que estamos vivendo o estertor de um modelo?
Em São Paulo, o grande desafio é a manutenção e o aprofundamento da condição de ponta que as universidades paulistas, junto com algumas de outros estados, têm. Talvez seja aqui que essa coisa de que eu falava antes, de cortar por baixo e por cima, seja mais nítida e mais crítica. Um pouco naqueles termos que eu tentava sugerir antes, de que para atender melhor às demandas de baixo, vai ser necessário ficar muito atento para não perder nada e para ganhar na excelência da alta qualidade do ensino e da pesquisa. É muito difícil. A USP está, em várias áreas, tendo problemas porque, por exemplo, forma excelentes pesquisadores, mas que não ficam na instituição. Antigamente eles ficavam, mas agora estão sendo capturados por outras escolas. Isso é outro lado que talvez valha a pena mencionar, que também é um risco que a universidade pública corre: por um lado é provedora de quadros de primeira linha para instituições privadas, por outro é provedora de mão-de-obra barata para essas outras instituições - que existem por aí aos montes e que não têm nada a ver com qualidade e com trabalho acadêmico. É outro lado da questão. A quem você está atendendo? Se não houver bons mecanismos de incorporar as demandas de baixo nem bons mecanismos para garantir a excelência em cima, corre-se o risco de ter seus estudantes formados drenados por mecanismos perversos de recrutamento. Pensando no caso da USP, ou você forma gente boa que vai embora - conseqüentemente, ela vai se empobrecendo por cima, perdendo a qualidade de excelência - ou você é simplesmente um provedor de mão-de-obra barata. É fácil localizar onde está o hiato entre as duas coisas: os problemas do ensino médio público. Nós pagamos um preço altíssimo pela exigência prematura, e em muitos aspectos artificial, da universalização do ensino superior. A idéia de que você tem de ter diploma de ensino superior para uma série de atividades onera muito e coloca um peso sem tamanho sobre o ensino superior, desviando a atenção daquilo que interessa, que é o bom ensino médio. Quer dizer, é a liquidação da boa escola pública pré-universitária, é realmente uma tragédia nacional.


O senhor está se referindo, por exemplo, à implementação dos cursos técnicos?
Os cursos técnicos são iniciativas simpáticas. Aliás, tem de haver a recuperação do ensino efetivamente profissional. Acredito bastante nisso. Perdemos ótimos colégios públicos, que davam uma formação ampla, mas não de nível universitário, que incorporavam boa parte da população às ciências e à humanidade. Como já houve neste país, mas que está perdido em um passado cada vez mais remoto. Por que todo mundo tem de ter diploma universitário? Isso não é necessário, é uma concepção equivocada, e eu diria artificial, porque ela é reforçada e induzida por empreendimentos privados que querem ter clientela cativa, e que gostam de ter regulamentação de profissão - o que cria uma demanda que precisa de diploma. Isso está drenando recursos para atividades que não têm nenhum retorno social. O essencial ali está perdido, e você tem um verdadeiro vácuo no ensino. Seria terrível se tivéssemos, aqui no Brasil, uma versão perversa de uma coisa ruim que os americanos criaram, que é um ensino na graduação sem grandes exigências, com todo o peso jogado para a pós-graduação, que é onde você vai formar os grandes profissionais, os pesquisadores etc. Isso é um traço ruim do sistema norte-americano que pode ser incorporado aqui em condições muito pioradas.


Nesse sentido, o que o senhor acha dessas ações afirmativas que têm sido feitas, principalmente fora de São Paulo?
Desde logo quero antecipar que tenho muita reserva em relação às cotas. Sou simpático ao argumento de alguns colegas que dizem que com cotas raciais haveria um aumento do problema a ser resolvido. Com isso, criam-se cortes na sociedade que não eram tão nítidos e abre-se espaço para todo tipo de desdobramentos que são mais questionáveis do que os eventuais benefícios em curto prazo. Eu tenho um severo desconforto em relação às cotas. No entanto, vejo com bastante simpatia as tentativas, ainda que de forma tímida, como a da própria USP e da Unicamp, que abrem mais espaço no vestibular, por exemplo, para quem vem da escola pública. Porque é uma maneira de canalizar, para a universidade, segmentos da população que são marcados por uma trajetória escolar condicionada em termos socioeconômicos, mas que certamente têm muitas pessoas com talento. No entanto, não chegariam à universidade pública se não houvesse esse incentivo. Trata-se de uma medida que tem seu foco particular e continua sendo universalizante, no sentido de que incorpora quem tem condições. Não há um corte étnico ou racial. E o aprofundamento de medidas desse tipo pode também contribuir para mobilizar mais a universidade - que em alguns momentos responde de modo insuficiente a uma exigência fundamental da universidade pública, que é a formação de pessoal para o ensino médio. Essa é uma vocação da USP, principalmente dessa escola onde estamos agora, a Faculdade de Filosofia da USP [Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, FFLCH], que sempre teve esse caráter de formar um quadro de professores para o ensino médio. A idéia levada até o extremo, que em alguns momentos foi nítida: formar formadores de cidadãos. Essa é a idéia mais funda que nos alimentou nos melhores momentos.



Há quem diga que a ditadura desmobilizou essa poderosa escola pública brasileira. Mas, vamos falar especificamente de São Paulo, a ditadura perseguiu professores que eram formadores.
Isso tudo é verdade. Algumas coisas totalmente inovadoras foram destroçadas naqueles tempos de ditadura. Porém, não dá para botar tudo na conta da ditadura, esse processo já vinha em andamento. O auge da grande escola pública foi nos anos 50, depois entrou em declínio. Não vou negar a contribuição da ditadura, que como todo regime com um matiz autoritário desconfia de inovações, do jogo amplo e livre das idéias. Mas também, por exemplo, a destinação de recursos para a área universitária e uma atenção menor na formação pré-universitária, talvez tenham contribuído um pouco para gerar esse hiato entre a universidade e o ensino médio. É claro que também nenhuma ditadura gosta da formação de formadores de cidadãos, mas não é isso que está em jogo, cidadania não é preocupação de nenhuma ditadura. Eficácia, sim, eficácia da rede ensino, inserção mais forte no setor produtivo, aumento da competitividade, enfim, tudo isso é compatível com qualquer ditadura. A ditadura é perfeitamente compatível com o aumento da eficiência de diversas políticas. Até aí não há problema algum. É claro que não existe aquele alento fundamental, que está na base de nossa escola aqui, de formar formadores de cidadãos. Nesse ponto há uma discrepância. Há uma concepção do ensino médio, por exemplo, como um simples canal de recrutamento de sujeitos mais dotados que serão capturados e jogados em posições importantes. É uma visão do ensino que acaba sendo elitista, apesar de eu não gostar desse termo. Então, é filtrar e selecionar alguém para ser um bom engenheiro, por exemplo. Mas a questão não é universalizar certos traços de conduta de relação com a sociedade, de ver o que é bom para sociedade. Formar cidadãos não é o problema, o que acentua as peculiaridades do componente autoritário nessa sociedade.


O senhor acredita que hoje as discussões no ambiente acadêmico, principalmente por parte dos alunos, são menos, digamos, importantes do que eram na época em que a universidade era um núcleo de resistência ao regime militar, por exemplo?
Confesso que não vejo esse tipo de grande objetivo com nitidez no cenário atual. Na realidade, a dificuldade é projetar qualquer tipo de proposta para um período mais longo, então isso dificulta muito. É verdade que as mobilizações se fazem em cima de questões muito pontuais e muito pequenas, e aí há um problema complicado envolvido. Não há mais cenários bem definidos que permitam olhar para o futuro e dizer: "Eu vou trabalhar para isso". Ou seja, de fato, não há um cenário definido que oriente as aspirações. O que me preocupa é que existe uma combinação que pode ser muito perniciosa, entre a concentração de ações pequenas, de curto prazo e pontuais, e a projeção muito difusa, pouco trabalhada, de aspirações que não ganham corpo e que são jogadas para um futuro muito remoto. Porque o sonho dos anos 60 não era tão remoto assim, era uma visão alternativa de sociedade, que se anunciava como possível na época. Hoje, não se tem uma alternativa bem definida de sociedade. Ao mesmo tempo, não se quer abrir mão de aspirações mais fortes. Então, corre-se o risco muito presente em uma parcela dos estudantes, justamente os que não querem ficar na pequena rotina, de haver um descolamento entre o pequeno espaço para a ação efetiva e algum tipo de referência que fica vaga. Isso gera, mais uma vez, um hiato, um vazio perigoso. Fico muito preocupado com isso, porque esse vazio pode ser preenchido de muitas maneiras. Nos anos 60, principalmente, não havia esse buraco entre seu trabalho cotidiano e sua inserção em uma proposta de transformação da sociedade, pelo menos não aparentemente.


Esse buraco pode gerar uma frustração?
Isso me preocupa. Não sei se é uma percepção equivocada, mas me parece que estamos vivendo um período em que está muito presente nas condutas sociais mais variadas componentes que assumem a forma de rancor, de ressentimento, quase de ódio. Há alguma coisa que alimenta a frustração, embutida no hiato entre a pequena ação e eventuais referências que continuam sendo abstratas. Como atingir algo que não se define com clareza? Como chegar a algo que de antemão está definido como impossível? Como conseguir orientar a própria conduta se não há um quadro bem definido do que se busca atingir? Se existe esse descompasso, de antemão há uma espécie de frustração embutida nas ações. Aí começa a surgir uma concepção rancorosa em relação ao outro. Agora, há outra coisa. No Brasil, a democracia representativa funciona muito bem hoje. Então, dizem: "Que beleza, agora linearmente isso vai passar adiante na sociedade e todos se tornarão os perfeitos democratas". Isso em termos políticos, sociais, de abertura para o outro e de entendimento. Mas isso não é verdade, eu não preciso ser um democrata para votar, posso votar sem nenhuma exigência desse tipo. A democracia representativa é compatível com um monte de coisas. Aliás, o oposto de democracia não é autoritarismo, existem democracias altamente autoritárias. A questão é não ter autocracia, não ter concentração de poder em um único foco, eliminando todos os mecanismos de soberania popular. Autoritarismo é compatível com qualquer regime. Então, a idéia de que existem instituições democráticas e por isso a sociedade se democratiza automaticamente e linearmente é muito perigosa. Há que se trabalhar muito para isso, e aí voltamos para a questão da universalidade, da formação dos formadores. Deve-se trabalhar em um prazo longo e molecularmente ir penetrando na sociedade, e isso demora, exige tempo e paciência. E o tempo e a paciência colidem com a exigência da eficácia e do resultado rápido, que é o que nos mata. Isso talvez seja um dos muitos traços que o período ditatorial acentuou e que ainda continua. Nós herdamos isso porque é compatível com as formas de organização econômica dominantes. Estamos com uma espécie de demônio nos comendo por dentro, que é o efeito máximo e rápido.


É como se fosse tirado o caráter humanista da própria busca da eficácia?
Exatamente. Você deixaria de perceber como as coisas se tornaram aquilo que são. Então, você engole qualquer coisa com anzol e tudo. O que significa, em termos de emprego, o aumento da eficácia do equipamento sobre a sociedade, de habilidades e de concentração do conjunto das capacidades de atenção de muitos em uma única coisa? Qual o significado do que estou fazendo? Se não tenho como refletir sobre isso, não sou um cidadão. O cenário é dos mais ásperos, mas se traduz eventualmente em bons indicadores estatísticos no fim do ano. Vou cometer uma enorme injustiça, vou falar sem pesquisa adequada, mas pegue o caso da China contemporânea. Todo mundo acha uma maravilha esse país crescer rápido. Será que realmente é uma maravilha? Será que a combinação entre a busca mais desenfreada de resultados de curtíssimo prazo e de instalação muito rápida de uma economia de mercado, associada ao despotismo político e a uma burocracia impiedosa, é tão fantástico assim? Tem 10% de crescimento ao ano, mas o que isso significa? Quer dizer, não dá para você simplesmente comprar a idéia de que políticas eficazes de crescimento são necessariamente as mais importantes. Talvez seja bem mais interessante aumentar formas de participação social e política do que formas de participação no produto.


O senhor acredita que hoje é possível perceber uma desmobilização e uma descrença nas ações políticas?
Há várias coisas acontecendo ao mesmo tempo. Existe, sim, todo um movimento que procura desvalorizar a política. Isso é perigosíssimo, tem até aquela história de que "no fundo é tudo igual, os políticos são todos corruptos" etc. Mais uma vez, no período recente, isso vem sendo enfocado, e é terrível. Ao mesmo tempo, isso tem contrapartidas. Primeiro, há uma participação eleitoral muito forte, há um aumento no discernimento e na crítica em relação a quem votar. É verdade que houve votos estranhíssimos aqui em São Paulo, mas isso sempre ocorre. No entanto, acredito que tenha uma curva ascendente de participação inteligente e consciente no ato do voto. Certos setores muito conservadores da política brasileira perdem espaço, é muito nítido isso nessas eleições no Nordeste. Agora, no curto prazo [essa desvalorização da política], é preocupante. Como querer construir cidadania se não se valoriza a ação voltada para o que é público? O que me preocupa é que existe uma ambigüidade do cidadão, comum em relação às coisas públicas, na qual uma pessoa não acredita na política, mas busca um bom candidato. Há uma tensão nisso. É uma ambigüidade que tanto pode reforçar os avanços em busca de uma cidadania mais consciente e participativa, mas que também pode, eventualmente, resultar numa capitulação diante de uma concepção mais minimalista do voto.


Qual o papel que a grande mídia, nos dias de hoje, representou e tem representado nesse processo eleitoral?
Não vejo tanto a mídia focalizando grandes opções para o Brasil e para a sociedade como um todo. Parece-me que ela exprime muito mais interesses setoriais, eventualmente em curto prazo. Entre eles, é impossível não reconhecer que haja o interesse das grandes empresas de comunicação. Na realidade, a mídia opera para consolidar as grandes regras do jogo, ela não atua contra isso. Não há uma mídia golpista questionando o valor das eleições. Mas existe, sim, uma inserção forte dos meios de comunicação na busca de interesses setoriais. Em um certo momento, são capazes de ser simpáticas ao governo vigente, porque entendem que obtiveram algum beneficio, mas em um outro momento orientam sua proposta de maneira totalmente oposta, dependendo da conjuntura e das vantagens que estão almejando. É uma relação complicada essa entre os sistemas de comunicação e os governos.

 

 

 

 

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