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REVISTA E Novembro - 2006

 

 

 


EMBATE CONTEMPORÂNEO

 



Com os avanços trazidos pela tecnologia, principalmente pela internet, o conceito de direito autoral passa a ser freqüentemente questionado nos dias de hoje. Ao mesmo tempo em que escritores, músicos e jornalistas dependem do direito autoral para seguir em suas funções, vem engrossando o coro dos que pedem uma maior democratização da produção cultural. Mas qual o conceito de autoria em termos contemporâneos? Como se adaptar aos novos tempos? Novas jurisprudências são necessárias para tratar de casos de fraudes virtuais? Em artigos exclusivos, o jornalista e colunista da Folha de S.Paulo Manuel da Costa Pinto e o diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV-RJ), Ronaldo Lemos, debatem a questão.

 

 

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O autor coletivo
O fetiche do autor e a voz do ventríloquo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

O autor coletivo



por Ronaldo Lemos

 



Um dos jornais mais vendidos na Coréia não tem jornalistas fixos. Trata-se do OhMyNews, uma das primeiras experiências em mídia colaborativa. Seu lema é: "Todo cidadão é um repórter". O jornal, que possui uma versão impressa diária e uma versão on-line, é realizado a partir das contribuições de qualquer pessoa. Entretanto, o corpo editorial ainda desempenha um papel importante: uma junta de editores escolhe o que vai ser publicado ou não dentre todo o material recebido.



A idéia de "jornalismo cidadão" tem-se mostrado cada vez mais forte. O evento emblemático aconteceu no atentado a bomba ocorrido em Londres em 2005. O evento, com toda a sua dimensão trágica, pode ser visto como o marco zero da consolidação do papel das mídias colaborativas na formação e disseminação da informação. Os atentados a Londres demonstraram, através dos inúmeros vídeos amadores e da explosão de matérias e comentários feitos em blogs e em sites privados, que o monopólio das versões sobre grandes eventos não pertence mais à mídia tradicional.
Um fato muito simples demonstra essa transformação. Basta procurar através do Google pela palavra tsunami. Dentre os primeiros resultados, estará a Wikipedia, a enciclopédia colaborativa escrita e modificada por qualquer pessoa. Em estudos recentes, tem ficado claro que as pesquisas no Google têm trazido como principais resultados informações provenientes de weblogs e outros sites colaborativos. A mídia tradicional muitas vezes nem sequer aparece dentre os primeiros resultados. Uma das razões para isso é a decisão de grande parte dos conglomerados de mídia de "trancar" seu conteúdo através de senhas e outras estruturas similares. Dessa forma, o conteúdo não é indexado pelo Google, tornando-se praticamente inacessível para um número significativo de usuários. A conseqüência: o conteúdo dos blogs, aberto e disponível livremente, torna-se a principal fonte de referência indexada na internet.



Esse modelo de produção colaborativa está sendo apelidado de "web 2.0". O termo indica o desenvolvimento recente da internet, que potencializa formas de canalizar o trabalho descentralizado de voluntários. Essa nova vertente de produção cultural, ao que tudo indica, veio para ficar. Em tempos nem tão longínquos, um evento como os atentados em Londres, o tsunami na Ásia ou os ataques à Espanha seriam não só eventos políticos, sociais e econômicos, mas também eventos de mídia. Atualmente, a cobertura da mídia tradicional compete diretamente com a cobertura feita de forma descentralizada, por qualquer pessoa. Em outras palavras, a mídia tradicional ganhou um concorrente inédito historicamente: a própria sociedade.




Não por acaso, o surgimento da sociedade como produtora de notícias está levando a uma profunda reformulação em símbolos da mídia centralizada. Essa reestruturação da mídia tradicional é necessária e possivelmente um requisito para sua sobrevivência. Gigantes como o jornal The New York Times, bem como a tradicionalíssima estrutura da BBC, estão desenvolvendo meios de captar as contribuições de seu público como forma de se adaptar aos novos tempos. Em outras palavras, estão tentando adotar internamente a descentralização de opiniões e conteúdos. Essa é a tendência atual de todas as empresas de mídia. Não por acaso, o magnata Rupert Murdoch, dono da Fox, adquiriu o MySpace, a rede de relacionamentos norte-americana que se tornou um dos sites mais visitados daquele país. Da mesma forma, o Google adquiriu o YouTube, em acirrada competição com a Microsoft e o Yahoo, também interessados no site. O interessante nessas aquisições é que até o momento, ainda nem sequer está claro como transformar o MySpace ou o YouTube em modelos economicamente viáveis.



Outra estratégia consiste na criação de braços on-line dos vários jornais e outros periódicos, muitas vezes uma forma de se criar um digesto aberto das principais notícias, que possa ser indexado e atrair a atenção para a parcela de conteúdo "fechado", protegido por senha. Isso leva a um questionamento sobre o futuro do acesso à informação na internet. E, nesse sentido, uma das principais questões diz respeito à "propriedade intelectual" daquilo que se encontra na rede.



Como se sabe, o direito autoral atual é produto do século 19. Nesse sentido, a regra geral é de que, não havendo notificação em contrário, todo o conteúdo nasce protegido pelo direito autoral e só pode ser utilizado mediante autorização de seu titular. Em vista disso, como gerar conteúdo colaborativo, criado a partir do trabalho de outras pessoas?



Assim, o problema da web 2.0 e de qualquer forma de produção colaborativa é a presença permanente de uma tensão entre o legal e o ilegal. Para agir colaborativamente, é preciso ter acesso e poder modificar o conteúdo produzido por terceiros. Sem isso, não há colaboração. E, para fazer isso de forma legal, é preciso que o conteúdo esteja previamente autorizado para essa finalidade. Nesse sentido, cresce cada vez mais a importância de um projeto como o Creative Commons (www.creativecommons.org), que funciona como uma caixa de ferramentas que facilita o licenciamento de qualquer obra autoral, deixando-a pronta para tornar-se parte do processo colaborativo.



A essência do Creative Commons é seu caráter voluntário: somente disponibiliza sua obra através dele quem quiser. Após três anos de funcionamento, dá para notar que muita gente efetivamente quis contribuir para esse conjunto de obras livres. Há hoje mais de 140 milhões de obras referenciadas pelo Creative Commons. Somente um único site, o www.soundclick.com, possui mais de 200 mil músicas licenciadas pelo sistema. Em síntese, já é possível constatar a existência de uma parcela do conteúdo da internet efetivamente pronta para a colaboração. Não por acaso, muitos dos sites que lidam com o modelo da web 2.0 utilizam uma licença Creative Commons, bem como inúmeros outros blogs.
As conseqüências disso são culturais, políticas e sobretudo econômicas. O professor da Universidade Yale Yochai Benkler teve a ousadia de batizar seu livro recém-lançado de A riqueza das redes [do original em inglês The Wealth of Networks], uma provocação com o título do livro de Adam Smith A Riqueza das Nações. Benkler chama a atenção para uma nova forma de geração de valor econômico na sociedade contemporânea, que passa a residir cada vez mais na idéia de "rede", isto é, em quanto uma obra ou criação intelectual torna-se disseminada. É nisso que reside o valor dos blogs: conteúdo livre, amplamente disseminado, em contraposição ao conteúdo da mídia tradicional, fechado e não indexável.



Tempos interessantes estes, em que as barreiras entre consumidor e produtor da informação são abaladas. A internet dos dias de hoje se torna cada vez mais o berço de uma nova mídia, produzida de forma descentralizada. Há quem desqualifique tudo o que está ocorrendo como irrelevante. Podem estar certos ou não. O principal argumento para isso é que ainda não se descobriu um modo uniforme de ganhar dinheiro para a mídia colaborativa. No entanto, como Benkler enfatiza em seu livro, o motor da cultura colaborativa é extramercado e extramonetário. Os incentivos para seu surgimento não são os mesmos mecanismos tradicionais do mercado. Pode não existir ainda um modelo de negócios claro para essa nova mídia, mas o fato é que surge no horizonte a possibilidade de que deixe de existir um também para a mídia tradicional. Como cantava Doris Day, "que será, será".



Ronaldo Lemos é diretor do centro de tecnologia e sociedade da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RJ) e do creative commons no brasil. é fundador do site colaborativo overmundo (www.overmundo.com.br)

 

 

 

 

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O fetiche do autor e a voz do ventríloquo

 

 

por Manuel da Costa Pinto

 

 


Cena 1: um jornalista da Folha de S.Paulo submete à avaliação de seis grandes editoras brasileiras uma pequena narrativa póstuma de Machado de Assis, intitulada Casa Velha. Detalhe: os "originais" estão sem título e são assinados com nome desconhecido. Três das editoras não respondem; três recusam a publicação da obra.



Cena 2: em 1999, passa a circular pela internet um poema em prosa intitulado La Marioneta, no qual Gabriel García Márquez, gravemente enfermo, celebra a vida e termina afirmando que em breve morrerá. A autoria do poema é desmentida pelo escritor colombiano - que, doente ou não, continua vivo...



Cena 3: um professor de literatura, surpreso com o alto nível dos trabalhos de fim de semestre, descobre em pesquisa no Google que parágrafos inteiros das monografias de seus alunos na verdade foram escritos ora por teóricos ilustres (como Erich Auerbach, autor do clássico Mimesis), ora por autores de blogs tão desconhecidos quanto seus plagiadores. Inquiridos, todos acharam natural a apropriação indébita e indignaram-se com as acusações.



Esses três episódios têm em comum o fato de girar em torno das idéias de má-fé, falsificação e plágio. Dizem respeito, também, a um fenômeno histórico de longo curso, a noção de autoria, que parece hoje prestes a sofrer uma guinada, em grande parte devido às transformações introduzidas pela tecnologia, em especial pela internet, em nossos hábitos de produção e recepção de mensagens (escritas, visuais, musicais etc.).



Vistos de perto, entretanto, apontam para direções opostas. O caso do livro póstumo de Machado de Assis é exemplar. A falcatrua jornalística foi concebida como forma de denunciar a incompetência dos profissionais responsáveis pelo catálogo das editoras. Não aceitar o livro revelaria uma dupla ignorância: em primeiro lugar, por não terem identificado uma obra do maior escritor brasileiro; em segundo, por não terem tido a sensibilidade de reconhecer a excelência da escrita que estava por trás do pseudônimo.




No entanto, passa-se exatamente o contrário: não apenas Casa Velha é uma obra secundária na bibliografia machadiana (sendo perfeitamente desculpável desconhecê-la), como o pseudônimo induz a pensar que se trata de obra contemporânea - e, nesse caso, a avaliação é certeira: um autor que escrevesse à maneira de Machado seria anedótico, um imitador barato de maneirismos que nada acrescentariam ao repertório das formas e temas da literatura brasileira atual. Esse episódio, portanto, nos diz muito sobre uma concepção do autor como voz singular, que não se confunde com os modos como outros autores se expressam.



Vale aqui uma digressão: por mais remota que seja, a idéia de autoria é histórica e foi sendo constituída ao lado da idéia do sujeito - que, por sua vez, surge na era moderna (termo etimologicamente derivado do advérbio latino modo = "agora", "nesse instante"). Resumindo brutalmente, pode-se dizer que na concepção de mundo da Antiguidade greco-romana e da Idade Média, em que tudo estaria submetido à circularidade da cosmologia pagã ou à onisciência de um Deus que já escreveu a história de nosso futuro, não havia espaço no imaginário social para noções como indivíduo, subjetividade, progresso, transformação. Tampouco havia, no campo das artes, lugar para as noções correlatas de "autoria" ou "originalidade": as próprias formas poéticas tendiam a se perpetuar numa cadeia de transmissão na qual um poeta emulava o outro, isto é, imitava tentando decorosamente superar aquilo que julgava perfeito (uma leitura comparada dos sonetos de Petrarca e Camões é um bom exemplo desse modo de conceber a arte como um equilíbrio entre técnica e engenho).



A modernidade, ao contrário, significará não apenas o declínio das autoridades divinas e a descoberta de novos mundos, mas também o surgimento de classes sociais (burguesia, proletariado) compostas por indivíduos cada vez menos ligados a laços comunitários e que, ao menos imaginariamente, inventam a si mesmos através de novos gêneros literários (como o romance) e da renovação ou negação dos antigos preceitos retóricos. A cópia, antes encarada positivamente como emulação, homenagem aos antigos, passará a ser o equivalente da falta de originalidade e - já sob a vigência da figura jurídica do "autor" - do "plágio" (delito contra o direito autoral).



Voltando ao início: à luz dessa transformação das concepções da arte, não é difícil entender que aquele original de autoria vicária fosse ignorado. Mais que isso: num mundo que entronizou a idéia da singularidade e da novidade estética, seu autor nem sequer seria considerado um escritor, sendo visto, antes, como produto descartável (pois semelhante ao artefato saído de uma linha de montagem em série, que repete formas e fórmulas).



Entretanto, no segundo episódio, envolvendo García Márquez, temos uma alteração desse quadro. O caso não é isolado. Algo semelhante ocorreu nos anos 80 com Jorge Luis Borges. Pouco antes da morte do escritor argentino, foi atribuído a ele um poema apócrifo no qual também celebra os prazeres simples da vida: "Se eu pudesse viver novamente/(...) Iria a mais lugares onde nunca fui,/tomaria mais sorvete e menos lentilha,/ teria mais problemas reais e menos imaginários/(...) Mas, já viram, tenho 85 anos/ e sei que estou morrendo".



Em ambos, temos um fenômeno de certo modo oposto ao de Machado: as assinaturas de García Márquez e Borges em poemas supostamente inéditos à época da divulgação e escritos num momento crítico, às vésperas da morte, foram suficientes para de algum modo obnubilar a sensibilidade crítica de muitos leitores. Certamente quem já suspeitava dos versos acima reconheceu, no trecho final do poema em prosa de Gabo [apelido de García Márquez], o mesmo traço (senão as mesmas palavras) de pieguice postiça: "São tantas as coisas que aprendi com vocês, mas, finalmente, não poderão servir muito, porque (...) infelizmente estarei morrendo".



Entretanto, esses dois "poemas" circulam até hoje como textos autênticos. Como interpretar isso? Talvez menos como um indício do declínio da noção de autoria do que como um fetiche em relação à figura do autor, com a conseqüente regressão da percepção estética. Não seria errado dizer que, no primeiro caso, a ausência do nome "Machado de Assis" tenha sancionado o julgamento rigoroso, ao passo que, no segundo, as assinaturas prestigiosas de García Márquez e Borges tiveram por efeito embotá-lo - a tal ponto que o poema do pseudo-Borges foi publicado na revista mexicana Plural (fundada pelo ensaísta Octavio Paz, um incontestado Nobel de Literatura).



Até aqui, a idéia da autoria não corre risco, seja para o sistema editorial, seja em termos jurídicos. Ao contrário: num lance bizarro, a viúva de Borges, Maria Kodama, chegou a entrar na justiça para não receber dividendos referentes à publicação do tal poema, que considerava abominavelmente kitsch - prova de que a legislação do direito autoral se sofistica e se adapta aos tempos da pirataria e da internet.



Aliás, a internet vem gerando uma nova jurisprudência, que permite identificar e punir fraudes virtuais. E os escritores fraudados sempre podem utilizar as mesmas armas - como provam as crônicas em que autores como Luis Fernando Verissimo e Arnaldo Jabor ironizam os textos falsamente atribuídos a eles na web (tais textos e desmentidos, deles e de várias outras vítimas, foram reunidos por Cora Rónai num volume intitulado Caiu na Rede, da Editora Agir, no qual também estão documentados os episódios envolvendo García Márquez e Borges).



Falsificação e plágio, de todo modo, são delitos que pressupõem o conhecimento, pelo criminoso, das distinções entre original e cópia. Isso deveria ser uma obviedade. Entretanto, não é. No terceiro episódio, citado inicialmente (e contado por uma fonte que tem o direito de ser preservada), o que chama a atenção não é a gatunagem de meia dúzia de alunos preguiçosos, mas o fato de que, questionados pelo professor, eles não tiveram a percepção de estar praticando um ato ilícito.



Aqui, portanto, chegamos a um outro ponto, que talvez corresponda à realidade atual: depois do fetiche em relação ao autor, que cancela o senso crítico e reduz a obra à figura pública do escritor, vemos surgir leitores para os quais os textos são palavras ao vento, flatus voci repetidas por quem já não distingue a própria voz daquilo que lê, ouve e reproduz numa cadeia sem fim.



Em tempo: o verdadeiro autor do falso poema em prosa de García Márquez se chama Johnny Welch, trabalha no México como ventríloquo e escreveu La Marioneta para seu boneco Mofles. Talvez não exista metáfora melhor para a nova condição do autor: uma marionete que, sem o saber, dá voz a outrem.

 

 

Manuel da Vosta Pinto é jornalista, colunista da Folha de S. Paulo, e coordenadore editorial do Instituto Moreira Salles

 

 

 

 

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