
EMBATE CONTEMPORÂNEO
Com os avanços
trazidos pela tecnologia, principalmente pela internet, o conceito de
direito autoral passa a ser freqüentemente questionado nos dias de
hoje. Ao mesmo tempo em que escritores, músicos e jornalistas dependem
do direito autoral para seguir em suas funções, vem engrossando
o coro dos que pedem uma maior democratização da produção
cultural. Mas qual o conceito de autoria em termos contemporâneos?
Como se adaptar aos novos tempos? Novas jurisprudências são
necessárias para tratar de casos de fraudes virtuais? Em artigos
exclusivos, o jornalista e colunista da Folha de S.Paulo Manuel da Costa
Pinto e o diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito
da Fundação Getulio Vargas (FGV-RJ), Ronaldo Lemos, debatem
a questão.
leia o artigo
O autor coletivo
O fetiche do autor e a voz do ventríloquo

O
autor coletivo
por
Ronaldo Lemos
Um dos jornais mais vendidos na Coréia não tem jornalistas
fixos. Trata-se do OhMyNews, uma das primeiras experiências em mídia
colaborativa. Seu lema é: "Todo cidadão é um
repórter". O jornal, que possui uma versão impressa
diária e uma versão on-line, é realizado a partir
das contribuições de qualquer pessoa. Entretanto, o corpo
editorial ainda desempenha um papel importante: uma junta de editores
escolhe o que vai ser publicado ou não dentre todo o material recebido.
A idéia de "jornalismo cidadão" tem-se mostrado
cada vez mais forte. O evento emblemático aconteceu no atentado
a bomba ocorrido em Londres em 2005. O evento, com toda a sua dimensão
trágica, pode ser visto como o marco zero da consolidação
do papel das mídias colaborativas na formação e disseminação
da informação. Os atentados a Londres demonstraram, através
dos inúmeros vídeos amadores e da explosão de matérias
e comentários feitos em blogs e em sites privados, que o monopólio
das versões sobre grandes eventos não pertence mais à
mídia tradicional.
Um fato muito simples demonstra essa transformação. Basta
procurar através do Google pela palavra tsunami. Dentre os primeiros
resultados, estará a Wikipedia, a enciclopédia colaborativa
escrita e modificada por qualquer pessoa. Em estudos recentes, tem ficado
claro que as pesquisas no Google têm trazido como principais resultados
informações provenientes de weblogs e outros sites colaborativos.
A mídia tradicional muitas vezes nem sequer aparece dentre os primeiros
resultados. Uma das razões para isso é a decisão
de grande parte dos conglomerados de mídia de "trancar"
seu conteúdo através de senhas e outras estruturas similares.
Dessa forma, o conteúdo não é indexado pelo Google,
tornando-se praticamente inacessível para um número significativo
de usuários. A conseqüência: o conteúdo dos blogs,
aberto e disponível livremente, torna-se a principal fonte de referência
indexada na internet.
Esse modelo de produção colaborativa está sendo apelidado
de "web 2.0". O termo indica o desenvolvimento recente da internet,
que potencializa formas de canalizar o trabalho descentralizado de voluntários.
Essa nova vertente de produção cultural, ao que tudo indica,
veio para ficar. Em tempos nem tão longínquos, um evento
como os atentados em Londres, o tsunami na Ásia ou os ataques à
Espanha seriam não só eventos políticos, sociais
e econômicos, mas também eventos de mídia. Atualmente,
a cobertura da mídia tradicional compete diretamente com a cobertura
feita de forma descentralizada, por qualquer pessoa. Em outras palavras,
a mídia tradicional ganhou um concorrente inédito historicamente:
a própria sociedade.
Não por acaso, o surgimento da sociedade como produtora de notícias
está levando a uma profunda reformulação em símbolos
da mídia centralizada. Essa reestruturação da mídia
tradicional é necessária e possivelmente um requisito para
sua sobrevivência. Gigantes como o jornal The New York Times, bem
como a tradicionalíssima estrutura da BBC, estão desenvolvendo
meios de captar as contribuições de seu público como
forma de se adaptar aos novos tempos. Em outras palavras, estão
tentando adotar internamente a descentralização de opiniões
e conteúdos. Essa é a tendência atual de todas as
empresas de mídia. Não por acaso, o magnata Rupert Murdoch,
dono da Fox, adquiriu o MySpace, a rede de relacionamentos norte-americana
que se tornou um dos sites mais visitados daquele país. Da mesma
forma, o Google adquiriu o YouTube, em acirrada competição
com a Microsoft e o Yahoo, também interessados no site. O interessante
nessas aquisições é que até o momento, ainda
nem sequer está claro como transformar o MySpace ou o YouTube em
modelos economicamente viáveis.
Outra estratégia consiste na criação de braços
on-line dos vários jornais e outros periódicos, muitas vezes
uma forma de se criar um digesto aberto das principais notícias,
que possa ser indexado e atrair a atenção para a parcela
de conteúdo "fechado", protegido por senha. Isso leva
a um questionamento sobre o futuro do acesso à informação
na internet. E, nesse sentido, uma das principais questões diz
respeito à "propriedade intelectual" daquilo que se encontra
na rede.
Como se sabe, o direito autoral atual é produto do século
19. Nesse sentido, a regra geral é de que, não havendo notificação
em contrário, todo o conteúdo nasce protegido pelo direito
autoral e só pode ser utilizado mediante autorização
de seu titular. Em vista disso, como gerar conteúdo colaborativo,
criado a partir do trabalho de outras pessoas?
Assim, o problema da web 2.0 e de qualquer forma de produção
colaborativa é a presença permanente de uma tensão
entre o legal e o ilegal. Para agir colaborativamente, é preciso
ter acesso e poder modificar o conteúdo produzido por terceiros.
Sem isso, não há colaboração. E, para fazer
isso de forma legal, é preciso que o conteúdo esteja previamente
autorizado para essa finalidade. Nesse sentido, cresce cada vez mais a
importância de um projeto como o Creative Commons (www.creativecommons.org),
que funciona como uma caixa de ferramentas que facilita o licenciamento
de qualquer obra autoral, deixando-a pronta para tornar-se parte do processo
colaborativo.
A essência do Creative Commons é seu caráter voluntário:
somente disponibiliza sua obra através dele quem quiser. Após
três anos de funcionamento, dá para notar que muita gente
efetivamente quis contribuir para esse conjunto de obras livres. Há
hoje mais de 140 milhões de obras referenciadas pelo Creative Commons.
Somente um único site, o www.soundclick.com, possui mais de 200
mil músicas licenciadas pelo sistema. Em síntese, já
é possível constatar a existência de uma parcela do
conteúdo da internet efetivamente pronta para a colaboração.
Não por acaso, muitos dos sites que lidam com o modelo da web 2.0
utilizam uma licença Creative Commons, bem como inúmeros
outros blogs.
As conseqüências disso são culturais, políticas
e sobretudo econômicas. O professor da Universidade Yale Yochai
Benkler teve a ousadia de batizar seu livro recém-lançado
de A riqueza das redes [do original em inglês The Wealth of Networks],
uma provocação com o título do livro de Adam Smith
A Riqueza das Nações. Benkler chama a atenção
para uma nova forma de geração de valor econômico
na sociedade contemporânea, que passa a residir cada vez mais na
idéia de "rede", isto é, em quanto uma obra ou
criação intelectual torna-se disseminada. É nisso
que reside o valor dos blogs: conteúdo livre, amplamente disseminado,
em contraposição ao conteúdo da mídia tradicional,
fechado e não indexável.
Tempos interessantes estes, em que as barreiras entre consumidor e produtor
da informação são abaladas. A internet dos dias de
hoje se torna cada vez mais o berço de uma nova mídia, produzida
de forma descentralizada. Há quem desqualifique tudo o que está
ocorrendo como irrelevante. Podem estar certos ou não. O principal
argumento para isso é que ainda não se descobriu um modo
uniforme de ganhar dinheiro para a mídia colaborativa. No entanto,
como Benkler enfatiza em seu livro, o motor da cultura colaborativa é
extramercado e extramonetário. Os incentivos para seu surgimento
não são os mesmos mecanismos tradicionais do mercado. Pode
não existir ainda um modelo de negócios claro para essa
nova mídia, mas o fato é que surge no horizonte a possibilidade
de que deixe de existir um também para a mídia tradicional.
Como cantava Doris Day, "que será, será".
Ronaldo Lemos é
diretor do centro de tecnologia e sociedade da Escola de Direito da Fundação
Getulio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RJ) e do creative commons no brasil.
é fundador do site colaborativo overmundo (www.overmundo.com.br)
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ao início
O
fetiche do autor e a voz do ventríloquo
por
Manuel da Costa Pinto
Cena 1: um jornalista da Folha de S.Paulo submete à avaliação
de seis grandes editoras brasileiras uma pequena narrativa póstuma
de Machado de Assis, intitulada Casa Velha. Detalhe: os "originais"
estão sem título e são assinados com nome desconhecido.
Três das editoras não respondem; três recusam a publicação
da obra.
Cena 2: em 1999, passa a circular pela internet um poema em prosa intitulado
La Marioneta, no qual Gabriel García Márquez, gravemente
enfermo, celebra a vida e termina afirmando que em breve morrerá.
A autoria do poema é desmentida pelo escritor colombiano - que,
doente ou não, continua vivo...
Cena 3: um professor de literatura, surpreso com o alto nível dos
trabalhos de fim de semestre, descobre em pesquisa no Google que parágrafos
inteiros das monografias de seus alunos na verdade foram escritos ora
por teóricos ilustres (como Erich Auerbach, autor do clássico
Mimesis), ora por autores de blogs tão desconhecidos quanto seus
plagiadores. Inquiridos, todos acharam natural a apropriação
indébita e indignaram-se com as acusações.
Esses três episódios têm em comum o fato de girar em
torno das idéias de má-fé, falsificação
e plágio. Dizem respeito, também, a um fenômeno histórico
de longo curso, a noção de autoria, que parece hoje prestes
a sofrer uma guinada, em grande parte devido às transformações
introduzidas pela tecnologia, em especial pela internet, em nossos hábitos
de produção e recepção de mensagens (escritas,
visuais, musicais etc.).
Vistos de perto, entretanto, apontam para direções opostas.
O caso do livro póstumo de Machado de Assis é exemplar.
A falcatrua jornalística foi concebida como forma de denunciar
a incompetência dos profissionais responsáveis pelo catálogo
das editoras. Não aceitar o livro revelaria uma dupla ignorância:
em primeiro lugar, por não terem identificado uma obra do maior
escritor brasileiro; em segundo, por não terem tido a sensibilidade
de reconhecer a excelência da escrita que estava por trás
do pseudônimo.
No entanto, passa-se exatamente o contrário: não apenas
Casa Velha é uma obra secundária na bibliografia machadiana
(sendo perfeitamente desculpável desconhecê-la), como o pseudônimo
induz a pensar que se trata de obra contemporânea - e, nesse caso,
a avaliação é certeira: um autor que escrevesse à
maneira de Machado seria anedótico, um imitador barato de maneirismos
que nada acrescentariam ao repertório das formas e temas da literatura
brasileira atual. Esse episódio, portanto, nos diz muito sobre
uma concepção do autor como voz singular, que não
se confunde com os modos como outros autores se expressam.
Vale aqui uma digressão: por mais remota que seja, a idéia
de autoria é histórica e foi sendo constituída ao
lado da idéia do sujeito - que, por sua vez, surge na era moderna
(termo etimologicamente derivado do advérbio latino modo = "agora",
"nesse instante"). Resumindo brutalmente, pode-se dizer que
na concepção de mundo da Antiguidade greco-romana e da Idade
Média, em que tudo estaria submetido à circularidade da
cosmologia pagã ou à onisciência de um Deus que já
escreveu a história de nosso futuro, não havia espaço
no imaginário social para noções como indivíduo,
subjetividade, progresso, transformação. Tampouco havia,
no campo das artes, lugar para as noções correlatas de "autoria"
ou "originalidade": as próprias formas poéticas
tendiam a se perpetuar numa cadeia de transmissão na qual um poeta
emulava o outro, isto é, imitava tentando decorosamente superar
aquilo que julgava perfeito (uma leitura comparada dos sonetos de Petrarca
e Camões é um bom exemplo desse modo de conceber a arte
como um equilíbrio entre técnica e engenho).
A modernidade, ao contrário, significará não apenas
o declínio das autoridades divinas e a descoberta de novos mundos,
mas também o surgimento de classes sociais (burguesia, proletariado)
compostas por indivíduos cada vez menos ligados a laços
comunitários e que, ao menos imaginariamente, inventam a si mesmos
através de novos gêneros literários (como o romance)
e da renovação ou negação dos antigos preceitos
retóricos. A cópia, antes encarada positivamente como emulação,
homenagem aos antigos, passará a ser o equivalente da falta de
originalidade e - já sob a vigência da figura jurídica
do "autor" - do "plágio" (delito contra o direito
autoral).
Voltando ao início: à luz dessa transformação
das concepções da arte, não é difícil
entender que aquele original de autoria vicária fosse ignorado.
Mais que isso: num mundo que entronizou a idéia da singularidade
e da novidade estética, seu autor nem sequer seria considerado
um escritor, sendo visto, antes, como produto descartável (pois
semelhante ao artefato saído de uma linha de montagem em série,
que repete formas e fórmulas).
Entretanto, no segundo episódio, envolvendo García Márquez,
temos uma alteração desse quadro. O caso não é
isolado. Algo semelhante ocorreu nos anos 80 com Jorge Luis Borges. Pouco
antes da morte do escritor argentino, foi atribuído a ele um poema
apócrifo no qual também celebra os prazeres simples da vida:
"Se eu pudesse viver novamente/(...) Iria a mais lugares onde nunca
fui,/tomaria mais sorvete e menos lentilha,/ teria mais problemas reais
e menos imaginários/(...) Mas, já viram, tenho 85 anos/
e sei que estou morrendo".
Em ambos, temos um fenômeno de certo modo oposto ao de Machado:
as assinaturas de García Márquez e Borges em poemas supostamente
inéditos à época da divulgação e escritos
num momento crítico, às vésperas da morte, foram
suficientes para de algum modo obnubilar a sensibilidade crítica
de muitos leitores. Certamente quem já suspeitava dos versos acima
reconheceu, no trecho final do poema em prosa de Gabo [apelido de García
Márquez], o mesmo traço (senão as mesmas palavras)
de pieguice postiça: "São tantas as coisas que aprendi
com vocês, mas, finalmente, não poderão servir muito,
porque (...) infelizmente estarei morrendo".
Entretanto, esses dois "poemas" circulam até hoje como
textos autênticos. Como interpretar isso? Talvez menos como um indício
do declínio da noção de autoria do que como um fetiche
em relação à figura do autor, com a conseqüente
regressão da percepção estética. Não
seria errado dizer que, no primeiro caso, a ausência do nome "Machado
de Assis" tenha sancionado o julgamento rigoroso, ao passo que, no
segundo, as assinaturas prestigiosas de García Márquez e
Borges tiveram por efeito embotá-lo - a tal ponto que o poema do
pseudo-Borges foi publicado na revista mexicana Plural (fundada pelo ensaísta
Octavio Paz, um incontestado Nobel de Literatura).
Até aqui, a idéia da autoria não corre risco, seja
para o sistema editorial, seja em termos jurídicos. Ao contrário:
num lance bizarro, a viúva de Borges, Maria Kodama, chegou a entrar
na justiça para não receber dividendos referentes à
publicação do tal poema, que considerava abominavelmente
kitsch - prova de que a legislação do direito autoral se
sofistica e se adapta aos tempos da pirataria e da internet.
Aliás, a internet vem gerando uma nova jurisprudência, que
permite identificar e punir fraudes virtuais. E os escritores fraudados
sempre podem utilizar as mesmas armas - como provam as crônicas
em que autores como Luis Fernando Verissimo e Arnaldo Jabor ironizam os
textos falsamente atribuídos a eles na web (tais textos e desmentidos,
deles e de várias outras vítimas, foram reunidos por Cora
Rónai num volume intitulado Caiu na Rede, da Editora Agir, no qual
também estão documentados os episódios envolvendo
García Márquez e Borges).
Falsificação e plágio, de todo modo, são delitos
que pressupõem o conhecimento, pelo criminoso, das distinções
entre original e cópia. Isso deveria ser uma obviedade. Entretanto,
não é. No terceiro episódio, citado inicialmente
(e contado por uma fonte que tem o direito de ser preservada), o que chama
a atenção não é a gatunagem de meia dúzia
de alunos preguiçosos, mas o fato de que, questionados pelo professor,
eles não tiveram a percepção de estar praticando
um ato ilícito.
Aqui, portanto, chegamos a um outro ponto, que talvez corresponda à
realidade atual: depois do fetiche em relação ao autor,
que cancela o senso crítico e reduz a obra à figura pública
do escritor, vemos surgir leitores para os quais os textos são
palavras ao vento, flatus voci repetidas por quem já não
distingue a própria voz daquilo que lê, ouve e reproduz numa
cadeia sem fim.
Em tempo: o verdadeiro autor do falso poema em prosa de García
Márquez se chama Johnny Welch, trabalha no México como ventríloquo
e escreveu La Marioneta para seu boneco Mofles. Talvez não exista
metáfora melhor para a nova condição do autor: uma
marionete que, sem o saber, dá voz a outrem.
Manuel da Vosta Pinto é jornalista, colunista da Folha de S.
Paulo, e coordenadore editorial do Instituto Moreira Salles
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