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Ameaça ao direito
Em debate a emenda que propõe superpoderes à polícia federal
Para o olhar menos atento, ela se resume apenas a mais uma das tantas resoluções que vez por outra são submetidas ao Congresso com vistas a aperfeiçoar a suprema lei do Estado brasileiro. A proposta de emenda à Constituição nº 37, de 2006 – PEC 37 –, por exemplo, tem essa configuração. De autoria do ex-senador brasiliense Valmir Amaral, que assumiu o posto com a cassação do titular da cadeira, Luiz Estevão, no final de 2000, tem como objetivo esticar os poderes da polícia federal. Há algum mal nisso? Aparentemente nenhum. Olhos mais cuidadosos, no entanto, viram acender uma luz vermelha. É que, se for aprovada, a proposição de Amaral dará status ministerial ao chefe da polícia federal, assegurando à instituição autonomia funcional, administrativa, financeira e orçamentária. Ou seja, estamos falando de superpoderes que podem colocar a polícia federal, se não acima, à parte do Executivo.
É certo que a polícia – federal ou estadual – não deve atrelar seus passos aos interesses dos governantes, carecendo, pois, de liberdade para cumprir a tarefa de investigar e trancafiar quem quer que seja. A PEC 37, no entanto, exorbitou. Conforme editorial da "Folha de S. Paulo" de outubro passado, "no sistema de freios e contrapesos que caracteriza as democracias, aqueles que detêm a prerrogativa de fazer uso legítimo da violência precisam estar sob o controle firme de um poder". O jornal foi mais além, lembrando que pela tradição brasileira esse poder pertence ao Executivo, com a intermediação do Judiciário e sob a fiscalização do Legislativo. A PEC 37 vai contra tudo isso. Aliás, vai longe demais ao propor que seja conferida à polícia federal uma independência jamais vista, colocando-a acima de qualquer dos poderes. Mais ainda: a emenda de Amaral representa grave ameaça também a direitos e garantias individuais pelo fato de querer atribuir a delegados da instituição a faculdade de requisitar, "no interesse da investigação criminal", informações cadastrais públicas ou privadas de qualquer natureza, registros de ligações telefônicas, conexões na internet e movimentações financeiras. Tudo conduzido sem a necessária autorização do Poder Judiciário, portanto, às avessas do que temos hoje. A PEC 37 revela-se assim virtualmente prejudicial à democracia. O fortalecimento da polícia federal nos moldes desenhados pela emenda em tramitação no Senado será de tal monta "que os demais poderes serão caudatários de sua ação, que passaria, pelas prerrogativas e perspectivas que lhe seriam outorgadas, a ter mais força do que o Judiciário e o Ministério Público", asseverou o jurista Ives Gandra da Silva Martins, em artigo publicado na "Gazeta Mercantil". Enfim, e repetindo aqui o que homens de peso das ciências jurídicas têm expressado, se a PEC 37 for aprovada e prevalecer a interpretação segundo a qual não há necessidade de a Justiça manifestar-se, "será a morte do Estado de direito no Brasil".
O assunto foi debatido no dia 7 de novembro de 2006, em reunião do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, presidido por Ives Gandra da Silva Martins. Desse encontro participaram, além de Ives Gandra, os juristas Carlos Celso Orcesi, Carlos Miguel Aidar, Damásio de Jesus, Ney Prado e Rubens Miranda de Carvalho.
Ives Gandra da Silva Martins – A proposta de emenda constitucional que pretende elevar o chefe da polícia federal ao nível de ministro precisa ser contestada. Até a entidade representativa dos policiais federais é contrária, mas a cúpula da polícia federal acha que é a melhor forma de dar à instituição a possibilidade de realmente combater o narcotráfico. Curiosamente, o comandante do exército não é ministro, mas, se depender da PEC 37, o chefe da polícia federal vai ser ministro. Pela Constituição, em momentos de crise, a polícia tem de ficar subordinada às forças armadas, é o artigo 144. Hoje, os três comandantes militares são subordinados ao ministro da Defesa, enquanto o chefe da polícia federal, conforme preconiza a PEC 37, teria lugar assegurado na mesa ministerial. Dá para imaginar o poder que essa emenda, se aprovada, vai outorgar ao chefe da polícia federal?
Ney Prado – Confundiram segurança nacional com segurança pública.
Ives Gandra – A emenda diz que a segurança pública é exercida para a preservação da ordem, a fim de garantir o Estado de direito, e que as ações serão realizadas de forma integrada e sistêmica; que o gabinete de polícia é uma instituição permanente de segurança pública e que lhe será assegurada autonomia funcional. Ainda segundo a emenda, no parágrafo 5º do artigo 144-A destaca-se que o gabinete da polícia federal será comandado pelo ministro chefe da polícia federal, escolhido dentre integrantes da carreira de delegado da polícia federal com mais de 35 anos e menos de 65 anos de idade. No parágrafo 6º está escrito que o ministro chefe da polícia federal será nomeado pelo presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado, para mandato de dois anos, permitida a recondução. O delegado de polícia federal será titular de investigação criminal. Eles vão poder fazer investigação criminal à revelia do Ministério Público.
Ney Prado – Descobriram uma fórmula de chegar ao autoritarismo normativo lançando mão de princípios tidos como universais. Quando você coloca dignidade humana, cabe tudo, quem defende a dignidade humana tem todo o poder.
Ives Gandra – Sob a alegação de que a polícia federal, nestes dois ou três últimos anos, demonstrou a importância da Operação Mãos Limpas, de combater a corrupção e o narcotráfico, e que hoje é uma das instituições mais respeitadas, mas sujeita a limitações impostas pela Constituição, pretendem que seja alçada a um nível superior que o das polícias estaduais. A idéia é dar maior força para a polícia federal a fim de que possa exercer aquilo que o senador põe em sua justificação de motivos: o papel de efetivo defensor da dignidade humana, combate ao crime organizado, etc. Ao examinar a proposta em alguns de seus aspectos, parece-me que a emenda é inconstitucional. Ela fere o princípio da isonomia. O artigo 144 da Constituição coloca as diversas polícias em igualdade de condições e cabe inclusive à polícia estadual um papel mais relevante em relação à segurança pública do que à polícia federal. A segurança pública é fundamentalmente função das polícias dos estados, da polícia municipal e da polícia federal. O aspecto interessante é que a PEC 37 procura conferir à polícia federal um grau mais elevado que o das polícias estaduais e um status superior ao das forças armadas. Os militares têm limitações próprias nos artigos correspondentes às forças armadas e um estatuto que impede sua participação nas reuniões de ministros. Se aprovada, a emenda permitirá ao ministro chefe da polícia federal que ele se sente à mesa com o presidente e demais ministros para discutir questões de segurança quando a própria Constituição declara que nos momentos de crise maior as forças armadas têm preferência, cabendo às diversas polícias ficar submetidas ao seu comando. Estaríamos, então, diante de algo inusitado: um ministro subordinado a um comandante que é subordinado a um outro ministro, que é o ministro da Defesa. Parece-me uma quebra de hierarquia. Mas há um outro ponto. A emenda reza que a polícia federal poderá invadir casas, quebrar o sigilo e fazer investigações sem a presença de membros do Ministério Público e da advocacia. Eu entendo que o projeto fere o Estado democrático de direito. Lembro-me aqui do pensamento de lorde Acton, no século 19, que dizia que o poder absoluto corrompe absolutamente. O que me impressionou no caso é que a Federação Nacional dos Policiais Federais manifestou-se contrária à PEC 37, porque tem receio de que ela vá levar a discriminação para dentro da polícia. A entidade já deixou claro ao Senado que não vê com bons olhos a aprovação da emenda pelo simples fato de que ela atenta contra o Estado democrático.
Ney Prado – É que os agentes podem ser auto-responsabilizados.
Ives Gandra – A aprovação da PEC 37 traria uma intranqüilidade muito grande. Em minha opinião será o fim da democracia. Só para os senhores terem noção, no artigo 144-A da emenda do senador Valmir Amaral está escrito que o gabinete da polícia federal é uma instituição permanente, essencial à segurança pública e ao Estado, dirigida por delegado de polícia federal e estruturada em carreiras. Mas vejam o seguinte: realça que ao gabinete da polícia federal é assegurada autonomia funcional, administrativa, financeira e orçamentária, podendo, observado o disposto no artigo 169 – que diz respeito às leis complementares e às leis orçamentárias –, propor ao Poder Legislativo a criação e a extinção de seus cargos (provendo-os por concurso público e provas de títulos), e ditar a política remuneratória, planos de carreira, estrutura e processo de escolha do ministro chefe da polícia federal. Quer dizer, o ministro da Justiça perderia a função.
Carlos Miguel Aidar – A parte que trata da criação de um órgão de controle externo do ministério da polícia federal diz que ele será composto por 18 membros, dos quais basicamente uns 14 ou 15 seriam ligados à própria polícia. A meu ver não haverá controle externo de natureza alguma. Há aqui outra barbaridade: nos concursos públicos para preenchimento de vagas de delegado de polícia federal, 50% serão reservados aos policiais do gabinete da polícia federal, ou seja, é um concurso público onde metade das vagas já estará destinada à própria instituição.
Ives Gandra – Porque o gabinete é que é a instituição.
Aidar – Isso. Há essas e mais algumas outras barbaridades.
Damásio de Jesus – O Brasil tem sido uma fonte inesgotável de leis malfeitas e inconstitucionais, inclusive em termos de redação e de português. Sobre o aspecto penal, acredito que a PEC 37 mereceria um estudo, inclusive meu, mais aprofundado, porque há coisas aqui que, à primeira vista, fogem ao entendimento. Precisaria de algum tempo para lê-la por inteiro a fim de verificar se numa interpretação sistemática eu poderia extrair algumas compreensões. O caput do artigo 144 fala em preservação da ordem pública. Na emenda, o inciso VI do parágrafo 1º menciona a unidade dos conteúdos de cursos de formação de servidores da segurança, e o inciso V trata da unidade de princípios doutrinários. O que o autor da emenda quer dizer com "unidade de princípios doutrinários"?
Carlos Celso Orcesi – Partido único.
Damásio – É, partido único, idéia única, e quem discordar estará incorrendo naquelas infrações, creio eu, que estão no parágrafo 3º do 144-A: "Apurar infrações penais contra a ordem política e social". Será que alguém que discordasse dessa unidade de princípios doutrinários, ainda que agente da polícia, não estaria contrariando os interesses da própria Constituição, de acordo com a nova sistemática? E continua o parágrafo 3º, inciso I do 144-A: "…assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual". Não sei o que significa isso. Que crime seria esse? E ainda: "…repercussão interestadual ou internacional, e exija repressão uniforme". O que quer dizer "repressão uniforme"?
Ives Gandra – Significa que todas as polícias, estaduais e municipais, ficarão subordinadas à polícia federal, que dirá qual é a orientação que terão de seguir. Os governadores não dominarão mais as suas polícias.
Damásio – Sob o aspecto da redação é inacreditável que a emenda esteja, quem sabe, partindo do próprio governo. Leia-se o inciso II do parágrafo 3º do artigo 144-A, que trata das funções institucionais do gabinete de polícia federal: "Prevenir e reprimir, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência, os crimes praticados contra..." Até a alínea A (contra os direitos humanos), tudo bem. Mas, depois, fica contra o tráfico, contra a remoção e comércio ilegal de órgãos, contra o tráfico de animais. Como assim, cometer um crime contra o tráfico? Quem comete algo contra o tráfico é o policial, o juiz, o promotor. Então acredito que a redação foi feita por alguém que não conhece o português, não conhece direito penal nem direito constitucional, e tampouco a metodologia utilizada para fazer leis.
Orcesi – Fico realmente estupefato, porque não se sabe de onde essa proposta vem e qual é sua finalidade. Até podemos deduzir o objetivo, mas é surreal a amplidão do assunto. Mais do que isso, uma coisa que me preocupa fundamentalmente é o fato de se estar legislando em cima de mais de 11 artigos da Constituição Federal e em cada um deles em diversos parágrafos, incisos, itens e subitens. Uma verdadeira parafernália, uma "desconstitucionalização" da Constituição Federal que a transforma em, no máximo, uma lei ordinária com implicações de caráter político profundamente preocupantes para a defesa dos direitos fundamentais.
Ney Prado – Entendo que o Ministério Público é essencial, que o Poder Judiciário é um dos poderes que temos de defender a todo instante e que a polícia federal também tem prestado relevantes serviços. Temos observado isso. No entanto, se aprovarem a PEC 37 não vamos ter mais controle sobre a polícia federal. E não tendo mais controle, ficaremos à mercê de seus integrantes. Ainda que a intenção fosse patriótica e cívica, o cidadão não teria nenhuma garantia de exercer sua liberdade.
Ives Gandra – Nas três carreiras essenciais para administração da justiça (advocacia, Ministério Público e Poder Judiciário) há a necessidade de muito conhecimento jurídico, e os concursos públicos pertinentes são muito mais difíceis e mais sofisticados do que o concurso para delegado. O conhecimento jurídico é uma necessidade menor na polícia federal e nas polícias estaduais. A função delas é preparatória dos processos penais. Por exemplo, a polícia judiciária é uma polícia subordinada ao Poder Judiciário, o que vale dizer que ela não tem autonomia. Isso a despeito de dispor de pessoas boas, só que menos preparadas doutrinariamente do que um advogado, um membro do Ministério Público, um magistrado. No momento em que se cria um nível de autonomia como o proposto pela PEC 37, a polícia passa a interpretar o direito sem a obrigatoriedade de recorrer a outros órgãos reconhecidamente essenciais à administração da justiça. E, como já frisamos aqui, podendo quebrar sigilos, invadir, interpretar a lei e fazer investigações por conta própria, sem pedir autorização ao Poder Judiciário. Isso é perturbador.
Ney Prado – Você está fazendo uma análise do ponto de vista da qualificação do agente público e eu estou preocupado com essa tendência humana a autoafirmar-se através do abuso do poder. Se você entrega o poder sem limites a alguém, a tendência dessa pessoa é abusar dele. É sempre perigoso quando o indivíduo tem todo esse aparato e, pior, sem controle.
Orcesi – Eu realmente vou dar agora a essência do que nos preocupa e que talvez fundamente a manifestação de todos. Ainda que a Constituição tenha dado poderes ao Ministério Público – mesmo que "excessivos" no modo de ver do colega Ney Prado –, o fundamental é que isso ainda está dentro de um equilíbrio constitucional. O Ministério Público tem a função preponderante de denunciar, a polícia de investigar e o Judiciário de controlar e fiscalizar. Isso tudo é secular, antiqüíssimo, vem da Revolução Francesa e da própria tripartição dos poderes. O que a PEC 37 de fato comete é um absoluto extravasamento desse razoável equilíbrio constitucional. Pretende dar à polícia federal uma independência quase que absoluta, uma autonomia ditatorial perfeitamente fora dos parâmetros tradicionais. O que essa emenda faz, a meu ver, é algo de surreal, na medida em que introduz um corpo estranho numa ordem antiga.
Rubens Miranda de Carvalho – Eu confesso a vocês que tenho muito receio. Talvez por estar ficando velho, esteja me tornando meio paranóico, mas o fato é que estou começando a ver um fantasma atrás de cada poste. Todos aqui têm ciência do que foi o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), no Estado Novo, cujo chefe, Filinto Müller, levou o jornalista David Nasser a escrever Falta alguém em Nuremberg [referência ao Tribunal de Nuremberg, na Alemanha, que, após a Segunda Guerra Mundial, julgou os criminosos de guerra nazistas]. Müller torturou e matou centenas de pessoas sob a alegação de que eram comunistas. Aproveito para recomendar um filme que está nas locadoras, O Ditador. É baseado num livro de Mario Vargas Llosa e tem como figura central Rafael Leónidas Trujillo. Vê-se ali o que significa o bem comum e aonde coisas do tipo dessa que estamos discutindo podem chegar.
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