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A última missão de um herói de guerra

Restauração de um antigo avião de caça relembra dias de coragem em combate

CEZAR MARTINS


Foto: Cezar Martins

Quando atendeu o telefone de sua casa em Araraquara (SP), o ex-tenente Fernando Correa Rocha teve dificuldade para conter as lágrimas ao ouvir a frase que fizera parte de sua rotina entre 1944 e 1945: "Senhor, seu avião está pronto. Vou reabastecê-lo e municiá-lo". Aos 85 anos, o aviador que combateu pelo Brasil na 2ª Guerra Mundial sabia que terminava ali uma de suas missões mais difíceis: restaurar o B-5, aeronave que pilotou em boa parte de seus 75 vôos durante o confronto contra as forças nazistas no céu da Itália.

Utilizado pela Força Aérea Brasileira (FAB) no conflito mundial, o B-5 é um caça-bombardeiro do modelo P-47D Thunderbolt produzido pela fábrica norte-americana Republic Aviation, que estava praticamente sepultado em um galpão do Centro Municipal de Campismo (Cemucam), parque localizado em Cotia, região metropolitana de São Paulo. Tinha os pneus furados, as rodas danificadas e a fuselagem amassada e enferrujada. As oito metralhadoras Browning .50, as bombas que carregava sob as asas e o painel de controle tinham desaparecido. Em 11 meses, a aeronave foi praticamente reconstruída por uma equipe de seis mecânicos chefiada por Jorge Luiz Stocco, de 53 anos, o autor do telefonema que emocionou Rocha. "O comandante havia me falado da rotina deles na Itália e fiz essa brincadeira quando terminamos a restauração." Agora, a relíquia da aviação de guerra nacional está exposta no Museu Asas de um Sonho, patrocinado pela empresa de viação aérea TAM, que se encontra aberto à visitação desde 12 de dezembro do ano passado na cidade de São Carlos (SP).

Em 1942, aos 21 anos, Rocha era um estudante do segundo ano da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e decidiu concorrer a uma bolsa de estudos e treinamento militar oferecida pelo governo dos Estados Unidos à FAB, criada havia apenas um ano pelo então presidente Getúlio Vargas. "Por já ser piloto civil, apresentei-me. Dedicava horas diárias a aprender inglês para ser aprovado. Fui então convocado e comecei o curso em 1943. Em outubro de 1944, cheguei à Itália para combater", conta ele, um dos cinco veteranos do esquadrão ainda vivos.

Enquanto Rocha se preparava para os testes, submarinos alemães e italianos faziam seguidos ataques a navios brasileiros. Os mais ferozes ocorreram em agosto de 1942, quando embarcações civis foram afundadas e mais de 600 passageiros morreram. Manifestações populares tomaram as ruas do Rio de Janeiro e obrigaram o governo Vargas a se aliar aos Estados Unidos. No dia 31 daquele mês, o decreto 10.358 declarava guerra contra as forças do Eixo.

Foi então aberto espaço para o envio de tropas terrestres brasileiras à Europa como apoio às operações das forças aliadas. O ministro da Aeronáutica, Joaquim Pedro Salgado Filho, sugeriu mandar também um contingente da recém-criada FAB, mas, para assegurar o sucesso da empreitada, era preciso organizar e treinar um grupo de caça, que nasceu em 18 de dezembro de 1943 e foi batizado de 1º Grupo de Aviação de Caça (1º GAvCa).

No posto de aspirante aviador, Rocha juntou-se ao grupamento em 4 de julho de 1944 no porto de Nova York. Dois dias depois, seguiram todos para o campo de treinamento de Suffolk, em Long Island, onde fariam um estágio de 46 dias para se adaptar ao avião que usariam na Europa, o P-47D Thunderbolt. Em meio a simulações de vôo noturno, escolta de bombardeiros e combates aéreos, os americanos intrigaram-se com o grito que acompanharia os brasileiros por toda a guerra: "Senta a pua!" Segundo os dicionários, a expressão significa "bater muito, com força, fazer algo com disposição, determinação e energia". Explicar tudo isso prestes a embarcar para o campo de batalha não era tarefa das mais simples, mas foi assim que os 49 pilotos que chegaram à base de Tarquínia, na Itália, em outubro de 1944, ficaram conhecidos.

Quase indestrutível

Maiores, mais rápidos e com poder de fogo superior aos rivais Messerschmitt, os Thunderbolts eram a armadura perfeita para os ases aliados. "Se você quisesse mandar uma foto para sua garota, subia na cabine de um P-51 Mustang. Mas se o que pretendia era sobreviver em combate, escolhia um P-47 Thunderbolt", costumava dizer Hub Zemke, comandante do 56th Fighter Group, primeira unidade do exército americano a testar os aviões.

A segurança dessas máquinas, cujo formato lembra um jarro deitado, foi comprovada pelo piloto Rocha durante uma missão em que escoltava o capitão de sua esquadrilha, Roberto Pessoa Ramos. "Fui atingido no supercharger, um turbo que aumentava a potência utilizando o gás do escapamento do motor. Pessoa Ramos avistou o fogo e me mandou ejetar. Lembrei-me das instruções recebidas no treinamento, de que aquela área era vulnerável e que isso poderia causar incêndios. Em vez de saltar, consegui desligar o supercharger. Passado um tempo, Pessoa Ramos disse que o fogo havia apagado. Seguimos em frente, terminamos a missão e o avião voltou inteiro."

Ian Comber, curador do museu onde está exposto o B-5, conhece a história dessas aeronaves, usadas pela FAB até 1967. "O avião é grandão, típica construção americana. O B-5 e seus irmãos tinham um radiador gigantesco na frente e agüentavam mesmo o tranco. Seu motor era capaz de funcionar com apenas três cilindros, dos 18 que tinha. Era muito robusto e dava confiança aos pilotos", comenta o admirador do caça americano com mais unidades produzidas durante a guerra.

No entanto, a falta de recursos da Fundação Santos Dumont, à qual foi destinada a tutela desse protagonista da história da aviação brasileira após sua aposentadoria, conseguiu resultados mais destrutivos do que o fogo inimigo. Depois de perder o espaço cedido pela prefeitura de São Paulo no Parque do Ibirapuera para exposição de seu acervo, a instituição teve de levar suas aeronaves para o Cemucam, único parque paulistano fora dos limites da cidade. Desde o transporte, o Thunderbolt, que enfrentara tiros e explosões, começou a sentir os efeitos nocivos do vandalismo e da falta de cuidados. Suas bombas e metralhadoras sumiram, assim como parte de seus instrumentos de vôo. Algumas chapas da fuselagem ficaram amassadas e depois enferrujaram, e os pneus, após muito tempo murchos, danificaram irremediavelmente as rodas do trem de pouso.

Na época com as cores do P-47 número 1 de Nero Moura, comandante do esquadrão, o avião estava em condições tão precárias que não pôde aparecer no documentário Senta a Pua, sobre a participação da FAB na 2ª Guerra, lançado em 2001. "Tentamos filmar todos os aviões que ainda havia no Brasil. Sabia da existência desse, mas não conseguimos usá-lo. Era o único que não estava pintado de verde-oliva", lamenta o diretor Erik de Castro. Dos outros três aviões utilizados na Europa e ainda preservados, um está na Base Aérea de Santa Cruz e outro no Museu Aeroespacial, ambos no Rio de Janeiro; o último se encontra no museu Casa do Expedicionário, em Curitiba. Ainda há um quarto avião com as cores do 1º GAvCa no Rio de Janeiro, mas que só foi recebido pela FAB após o final do conflito mundial.

Entusiasta da história do Senta a Pua, o representante comercial Wagner Indig foi quem redescobriu o caça no galpão em que tinha sido encostado. Com a idéia de restaurar a aeronave, entrou em contato com Fernando Correa Rocha, o único veterano que morava no estado de São Paulo. "A impressão que eu tinha é que não seria mais possível recuperá-lo. A Fundação Santos Dumont explicou que passava por dificuldades financeiras e estava em busca de alternativas para resolver o problema. Foi então que procurei o comandante Rocha, que abraçou a causa."

O ex-piloto iniciou uma campanha para tirar o antigo companheiro de guerra do ostracismo e levá-lo até um novo lugar, onde, devidamente recuperado, pudesse servir de elo entre o presente e o passado da aeronáutica brasileira. Diante do estado calamitoso em que se encontrava a aeronave, não importava sequer o fato de o código B-5 não estar pintado na carenagem – imperativo era encontrar um parceiro que levasse a cabo a restauração. "Quando era escalado para voar, o piloto tinha de subir no avião que estivesse disponível, mas a marca da missão cumprida era feita na aeronave que levava seu nome. Não é tão importante quem voou com aquele avião, mas o que ele representa para a história", justifica Rocha.

Ao fim da restauração, os fundadores do museu decidiram homenagear o veterano de 85 anos, que desafiou durante meses as dores nos joelhos para convencer autoridades a assinar um acordo que cedia o patrimônio histórico, em regime de comodato, para a exposição organizada com apoio da empresa de viação aérea particular. O Thunderbolt deixaria de representar o número 1 do capitão Nero Moura para eternizar o B-5 do tenente Rocha. "Assinamos um contrato de cinco anos com a Fundação Santos Dumont em que nos comprometemos a restaurar o avião e deixá-lo em exposição, e podemos renovar depois desse período. Ele é importantíssimo para a história do Brasil", justifica João Amaro, presidente do Asas de um Sonho.

Passaram-se 60 anos desde o afastamento de Rocha da FAB até o reencontro com seu caça de guerra. Como aviador civil, ele viveu experiências distintas a partir de 1946, ano em que foi contratado pela Panair do Brasil, companhia na qual trabalhou por 20 anos e chegou a comandar as operações na Europa. Sua carreira como piloto acabou em 5 de março de 1967, quando voava pela Varig e sofreu um acidente em Monróvia, capital da Libéria (África). Durante um pouso com visibilidade prejudicada por causa das nuvens e da neblina, o avião perdeu altitude rapidamente, caiu sobre uma aldeia e pegou fogo, o que causou a morte de 50 passageiros, um tripulante e cinco moradores de uma casa atingida pelos destroços: "Tive uma fratura e fiquei muito machucado. Passei meses em recuperação. Depois, fui contratado por uma empresa de planejamento e engenharia aeronáutica". Na Hidroservice, corporação que usou sua experiência para construir e reformar os aeroportos internacionais do Rio de Janeiro e de São Paulo, entre outros projetos, o ex-combatente ficou mais 15 anos.

A reconstrução

Vencida a etapa dos acordos e de assinatura de papéis, era hora de começar a restauração, cujo gasto ultrapassou R$ 200 mil. "Desmontamos todo o avião e o trouxemos de caminhão para o museu. Faltavam algumas chapas, uma roda teve de ser trocada. A original era mais bonita, mas tivemos de usar outra, com o mesmo tipo de rolamento", conta Stocco. "O azul da estrela que fica na parte traseira foi o mais complicado de reproduzir. Tive de encontrar um catálogo da Federal Standard, que mostra todas as cores dos aviões usados em guerra pelos Estados Unidos. Não foi fácil fazer tudo no prazo determinado", afirma o mecânico-chefe.

Stocco também fez pesquisas históricas para reproduzir os detalhes do avião à época das batalhas. "O capô ficou verde, embora o avião todo seja prateado. Descobri que, já no final da guerra, o B-5 foi encaminhado para uma revisão, mas os mecânicos não encontraram, depois, o capô original. Usaram então o de um avião pintado de verde. E, como foi assim que ele terminou, foi como o deixamos no museu. Tivemos de usar fotografias, desenhos, conseguimos alguma coisa em manuais da época", diz o comandante da restauração de outras 31 aeronaves expostas em São Carlos.

Contudo, por conta dos estragos causados, é praticamente impossível deixar o avião idêntico ao que era seis décadas atrás. As metralhadoras atuais, por exemplo, são réplicas construídas manualmente, mas incapazes de dar um tiro. Apaixonado pela história do Senta a Pua, o técnico em processamento de dados Vicente Vasquez, de 39 anos, tornou-se um especialista no assunto e foi um dos primeiros a ver o avião restaurado. "Foi feito um trabalho muito bom, mas os detalhistas vão perceber diferenças. Na Itália, o B-5 tinha a cor da chapa natural, sem tratamento, mas agora ele está pintado com uma tinta que o deixa mais brilhante e facilita a manutenção. A bolacha com o desenho do avestruz do Senta a Pua era mais ovalada, não é a correta que foi pintada", comenta.

Outra dificuldade apontada por Vasquez é saber com precisão o código original pintado no caça. "Todo avião militar tem uma placa de identificação, mas a desse desapareceu. Vi uma foto em que se verifica, pelo número da cauda, que era um caça da esquadrilha B."

Fernando Correa Rocha e Pessoa Ramos eram companheiros na esquadrilha amarela, cujos aviões, identificados com a letra B, constituíam uma das quatro do 1º GAvCa – as outras eram a vermelha (A), a azul (C) e a verde (D). Cada equipe tinha seis aviões e, em média, 12 pilotos. Os da yellow, como eram chamados pelos americanos, eram tão ousados que o brigadeiro Rui Moreira Lima, veterano que mora no Rio de Janeiro, apelidou-os de "camicazes". Mas a coragem custou caro. "Nossa esquadrilha sofreu baixas rapidamente e fomos reduzidos a quatro. Fui então deslocado para a verde, mas ainda voava com o B-5. Quando era aspirante, não tinha um avião com o meu nome. Após as baixas, ele ficou sendo o meu", recorda Rocha.

Na trajetória do piloto, porém, o B-5 parecia predestinado a ser seu companheiro. Foi com ele que Rocha fez seu primeiro vôo na Itália, no dia 5 de novembro de 1944. "Foi uma missão só de teste do avião, era para ser um sobrevôo local. Só que eu dei uma esticada e fui fazer um rasante em Roma", lembra o veterano. "A missão mais importante aconteceu em 21 de março de 1945. Tínhamos de destruir edifícios que serviam como oficina de trilhos. Minhas bombas acertaram em cheio os prédios. Na saída do bombardeio, o Pessoa Ramos atacou uma base aérea. Ele destruiu um avião e eu danifiquei outros dois."

Nos últimos meses da guerra, em abril e maio de 1945, os brasileiros chegaram a realizar até três missões por dia. Embora pressentissem que a rendição alemã não tardaria, não era possível prever quando não precisariam mais atacar prédios inimigos. "Morrer ali seria como ter atravessado um oceano inteiro a nado e não resistir no momento de chegar à areia. A minha vida e a de outros pilotos que sobreviveram à guerra se devem a esse avião, ao qual tenho, antes de mais nada, um agradecimento", reconhece Rocha, quando olha de frente o novo B-5.


O avestruz e seu grito de guerra

Numa época em que o McDonald’s estava longe de ser a expressão maior da cozinha norte-americana, os pilotos do 1º GAvCa tiveram de se acostumar, durante o treinamento antes de embarcar para a Itália, a pratos hostis ao paladar acostumado ao tempero brasileiro. Nem o feijão branco com açúcar era rejeitado pelos combatentes, que logo passaram a se comparar ao avestruz, cujo hábito alimentar inclui até a ingestão de pedras.

A ave serviu de inspiração para a criação do símbolo do grupo, desenhado pelo capitão Fortunato Câmara de Oliveira durante a viagem até a Europa e pintado depois na fuselagem dos aviões da FAB. Com um quepe de piloto, o mascote segura um escudo com o Cruzeiro do Sul pintado e uma pistola, referências à robustez e ao poder de fogo dos P-47D Thunderbolt. As linhas que circundam o desenho trazem o verde e o amarelo brasileiros. O fundo vermelho evoca o sangue dos mortos e feridos, e sobre a nuvem – o chão dos combatentes aéreos – está o grito de guerra "Senta a pua!"

Os brasileiros começaram a ser treinados em janeiro de 1944, na Flórida. Eram 32 homens, que receberam instruções detalhadas sobre aviões, táticas de operação e armamento inimigo. Enquanto isso, no Brasil, eram recrutados outros aviadores para fazer parte do 1º GAvCa. Em 10 de março, os homens que estavam nos Estados Unidos foram mandados ao Panamá, onde ganharam a companhia dos demais selecionados para seguir o treinamento. Por fim, o grupo foi enviado em julho a Long Island (EUA) para testar os equipamentos que teriam à disposição.

A travessia de navio até a Europa começou em 20 de setembro e terminou no dia 6 de outubro de 1944, em Livorno, na Itália, de onde seguiram de trem para a base aérea de Tarquínia para ser incorporados – como esquadrão subordinado – ao 350th Fighter Group, unidade aérea do exército americano. O codinome dado ao grupo brasileiro e usado até hoje foi Jambock, corruptela da língua inglesa para "sjambok", palavra usada na África do Sul para designar um chicote feito de couro de rinoceronte para castigar escravos.

Na guerra, o 1º GAvCa teve 16 aviões abatidos pelas forças inimigas, e o baixo número de reposições obrigou os brasileiros a voar até três vezes por dia – principalmente a partir de dezembro de 1944, quando deixaram Tarquínia e se mudaram para a base de Pisa. O ápice desse esforço se deu em 22 de abril de 1945, quando, mesmo com apenas 22 pilotos e 23 aviões em condições de voar, o Senta a Pua cumpriu 44 missões. Por conta desse feito, o grupamento se tornou a segunda unidade fora dos Estados Unidos a receber a Presidential Unit Citation, condecoração do governo americano concedida a quem se destacou pelo heroísmo na guerra. Agora, a data em que os brasileiros "sentaram a pua" é lembrada como o Dia da Aviação de Caça.

Em oito meses de combates, o 1º GAvCa cumpriu 445 missões. Ao todo, nove pilotos morreram: quatro em acidentes e cinco em combate. O último foi o tenente Luiz Lopes Dornelles, atingido em 26 de abril de 1945 enquanto atacava uma locomotiva na estação ferroviária de Alessandria.

 

 

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