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O nó cego da previdência
País discute necessidade urgente de nova reforma previdenciária
HERBERT CARVALHO
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Retirar-se aos próprios aposentos – significado literal da palavra aposentadoria – para desfrutar, após uma vida de sacrifícios, um envelhecimento tranqüilo e o merecido ócio remunerado é um sonho de milhões de brasileiros que ameaça transformar-se em pesadelo, devido a um fantasma que não sai das manchetes dos jornais: o déficit da previdência social, da ordem de R$ 42 bilhões em 2006.
Considerada o problema número um pelos economistas liberais, a previdência pública é apontada como uma das principais razões para o pífio crescimento do Brasil, abaixo tanto do registrado pelos demais países emergentes quanto da média mundial. Na opinião deles, uma nova reforma da previdência deveria ter como eixo o estabelecimento de uma idade mínima para a aposentadoria, a exemplo do que já existe para o funcionalismo público. "É uma vergonha que o Brasil seja um dos únicos países do mundo sem exigência de idade mínima para aposentadoria", afirma o especialista em finanças públicas Raul Velloso, um dos críticos mais candentes do modelo atual.
Já os analistas situados à esquerda do espectro político, além de preferirem os juros altos como vilão para explicar nosso atraso em relação a outros países, enxergam nas propostas de reforma o dedo do capital financeiro. "O interesse dos banqueiros é duplo: garantir e ampliar o superávit primário para o pagamento dos juros e abocanhar os recursos que seriam canalizados para a previdência privada após o desmonte da pública", diz Altamiro Borges, editor da revista "Debate Sindical" e diretor do Centro de Estudos Sindicais.
Hoje, de cada R$ 100 que o governo federal gasta, R$ 17 destinam-se ao pagamento de juros, R$ 28 vão para as aposentadorias, R$ 50 para as demais despesas de custeio e apenas R$ 5 para investimentos.
Para além do confronto "excessivamente ideologizado", conforme o classifica o ministro da Previdência Social, Nelson Machado, projeções do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indicam que o envelhecimento da população se acentuará nas próximas décadas: os 16,3 milhões de indivíduos com mais de 60 anos em 2005 serão 40,5 milhões em 2030; o peso relativo desse grupo em relação ao total da população avançará, em um quarto de século, de 8,9% para 17,1%. Machado reconhece o problema e admite que a questão do estabelecimento da idade mínima deve ser discutida por toda a sociedade, mas sem pressa. "O fundamental no momento é eliminar as fraudes e aumentar a formalização na economia, para ampliar a arrecadação", argumenta, assegurando que o modelo atual é sustentável e que "o diabo não é tão feio como pintam". Junto com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o governo anunciou, no entanto, o Fórum da Previdência Social, cujo objetivo é discutir o que – e como – reformar.
Como todas as mudanças introduzidas no sistema até agora traziam em seu bojo a redução de direitos – ou privilégios, segundo a ótica de cada observador –, muitos se interrogam ansiosamente sobre o que lhes reservará o amanhã. O tema ficou praticamente ausente da campanha eleitoral, apesar de ocupar grande espaço na mídia. Nesta reportagem, Problemas Brasileiros procura mostrar as muitas faces de uma questão tão polêmica quanto vital para o futuro do país.
Invenção de Bismarck
O que fazer com as pessoas que deixam de ser produtivas, por idade ou limitação física decorrente de problemas de saúde, é um antigo dilema da humanidade, que se tornou uma aguda questão social com a Revolução Industrial. Ao introduzir relações de produção que agrupavam centenas ou milhares de trabalhadores em grandes unidades produtivas, o capitalismo então nascente fabricava, juntamente com as mercadorias, uma legião de acidentados e de pessoas doentes ou precocemente envelhecidas, em razão das longas jornadas e das condições insalubres de trabalho. O próprio termo "proletário", desde então usado para designar os trabalhadores fabris, identificava o homem que, na velhice, teria de se valer da prole para manter-se. Completando o ciclo, o trabalho infantil propiciava uma conveniência adicional para o patrão, que dessa forma podia pagar um salário ainda menor.
Porém, o mesmo caráter social da produção que gerou esses problemas engendrou formas de organização dos trabalhadores para superá-los: na década de 1830, surgiram na Inglaterra, quase que simultaneamente, os sindicatos (trade unions) e os fundos de mútuo socorro. Enquanto os primeiros organizavam a luta pela limitação da jornada, os segundos recolhiam contribuições dos operários ativos e saudáveis, para com elas amparar os velhos, os acidentados e os doentes.
O conceito de seguridade social como hoje o conhecemos, de responsabilidade do Estado a partir de contribuições das empresas e dos empregados, surgiria apenas no final do século 19, por iniciativa de Otto von Bismarck. Para acalmar as agitações operárias, que nas décadas seguintes se transformariam em revoluções por toda a Europa, ele introduziu o seguro relativo à velhice, à doença, aos acidentes de trabalho e ao desemprego.
Na conferência de maio de 1944 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), na Filadélfia (EUA), adotou-se a orientação de que deveriam ser unificados os sistemas de seguro social, com sua extensão a todos os trabalhadores e suas famílias, inclusive aos que não tivessem vínculo empregatício, como os camponeses e os autônomos. No entanto, a partir do governo de Margaret Thatcher, na Inglaterra, nos anos 1980, e com mais força após a queda do Muro de Berlim, na década de 1990, os países europeus enfrentam o problema dos déficits provocados pelo alto custo do Estado de bem-estar social e passam a reduzir seus benefícios.
Antecedentes
No Brasil, a primeira reforma da previdência talvez tenha sido a Lei Saraiva-Cotegipe – dos Sexagenários –, de 1885. Isso porque, ao dar a liberdade aos cativos com mais de 60 anos, o senhor se desobrigava de sustentar o escravo improdutivo. No início do século 20, quando a questão social era considerada um caso de polícia, duas greves gerais em São Paulo, lideradas pelos anarquistas, reclamaram leis de proteção ao trabalhador e mecanismos de aposentadoria. Estes surgiriam em 1923, com a Lei Elói Chaves, que regulamentou as caixas de previdência então existentes, a principal delas dos ferroviários, não por acaso a categoria mais bem organizada e com maior número de imigrantes europeus.
Em 1930, Getúlio Vargas chega ao poder e cria o Ministério do Trabalho. Três anos depois, começa a promover a fusão das Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPs) nos famosos IAPs, os Institutos de Aposentadoria e Pensões dos Bancários (IAPB), dos Industriários (IAPI), dos Comerciários (IAPC) e assim por diante. Os IAPs eram autarquias centralizadas no governo federal e supervisionadas pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, como então se chamava.
As CAPs e os IAPs, além das aposentadorias e pensões, prestavam o único tipo de assistência médica disponível aos assalariados, que, entretanto, excluía os trabalhadores rurais e informais urbanos. Durante as décadas de 1940 e 1950, poucos estados e municípios dispunham de serviços de saúde voltados ao atendimento das necessidades da população; as famílias pobres ou indigentes, em conseqüência, só podiam contar com instituições filantrópicas.
Essas e outras deficiências levaram à unificação da legislação referente aos IAPs por meio da Lei Orgânica da Previdência Social, em 1960. A reunião dos IAPs no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) ocorreria em 1966, no bojo das reformas administrativa, fiscal e financeira introduzidas pela ditadura militar. O INPS passou a ser responsável pela assistência médica dos trabalhadores formais. Na década de 1970, foi criado o Ministério da Previdência e Assistência Social, e o INPS foi desmembrado em três: o Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social (Iapas), que arrecadava e administrava os recursos; o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) e o próprio INPS, agora restrito a calcular, conceder e pagar os benefícios previdenciários e assistenciais.
A Constituição de 1988, por meio de seu artigo 194, instituiu no Brasil a seguridade social, um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Em 1990 é criado o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), mediante a fusão do INPS e do Iapas (o Inamps seria extinto em 1993), e, a partir de então, foram incluídos no sistema 6 milhões de trabalhadores rurais e milhares de idosos que nunca haviam contribuído, dando origem ao déficit atual. Por outro lado, quando se considera o sistema de seguridade social como um todo – além da questão previdenciária pura e simples –, no confronto entre o conjunto dos tributos destinados a custeá-lo, que inclui a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), e os gastos dos Ministérios do Trabalho e Emprego, da Saúde e da Previdência Social, o resultado se inverte e passa a superavitário.
Pacto de gerações
A principal causa da crise decorre dos rumos da economia, uma vez que, até meados da década de 1990, a previdência social brasileira era superavitária. Em 1993, havia R$ 2 bilhões sobrando em seu caixa. Com a explosão do desemprego, da terceirização e do trabalho informal, o total das contribuições dos segurados passou, entretanto, a ser inferior ao dos benefícios pagos – uma tendência que veio se acentuando, ao longo do tempo. Na década de 1970 houve aumento de 7,9% no número de contribuintes. Nos anos de 1990 esse crescimento foi de apenas 0,8%.
A redução dos contribuintes, aliada ao crescimento dos benefícios pagos, abala as estruturas do sistema, uma vez que a previdência social brasileira opera exclusivamente no chamado regime de repartição simples. Trata-se de um pacto entre gerações, no qual os trabalhadores ativos pagam pelos inativos, na esperança de que, quando se aposentarem, novas gerações de contribuintes venham a fazê-lo.
Se, em 1950, havia um beneficiário para cada oito contribuintes, hoje existe apenas 1,2 trabalhador para cada aposentado, e a curva ameaça se inverter perigosamente. Os gastos previdenciários anuais somam, atualmente, R$ 165 bilhões, R$ 42 bilhões dos quais sem cobertura das contribuições dos segurados. No primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a receita da previdência cresceu 28%, mas a despesa aumentou 40%.
A primeira reforma da previdência para fazer frente ao déficit foi proposta pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1998, e penalizou os trabalhadores do setor privado com a introdução do chamado fator previdenciário, um índice composto pelo tempo de contribuição (35 anos para homem e 30 para mulher, no mínimo), a idade do contribuinte e sua expectativa de vida, medida pela tábua de mortalidade do IBGE. Como resultado, quanto maior for o tempo de serviço, maior será o valor da aposentadoria. Hoje, para ter direito ao benefício integral ao se aposentar, um trabalhador precisa ter pelo menos 59 anos de idade e 40 de contribuição. Em conseqüência da criação do fator previdenciário mudou a idade média de aposentadoria, que antes era de 49 anos e agora é de 55.
A segunda onda reformista, em 2003, visou o funcionalismo público e obteve do Congresso Nacional a contribuição dos servidores inativos, tentada em vão na reforma anterior, o que gerou para Lula enorme desgaste político em uma antiga base de sustentação petista. Foi fixado o limite de idade para aposentadoria no setor público (60 anos para homens, 55 para mulheres) e estendido para os novos funcionários públicos o mesmo teto de R$ 2.801,56 vigente para os aposentados da iniciativa privada. O servidor que quiser aumentar seus rendimentos terá de contribuir para um fundo de previdência complementar, ainda não regulamentado.
Diagnóstico
A discussão para uma terceira reforma, que pegou fogo entre políticos, economistas e lobistas na véspera da posse do presidente Lula para o início do seu segundo mandato, começou por iniciativa da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio SP), que encomendou à Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo (Fipe/USP) um estudo, intitulado "Simplificando o Brasil" (ver PB nº 376), para saber como se poderiam cortar gastos do governo, liberando recursos para investimentos.
A parte desse estudo dedicada à análise das despesas previdenciárias revelou que o país destina cerca de 12% do PIB ao pagamento de aposentadorias e pensões, o que o transforma no campeão mundial de gastos com esses benefícios. Nossa proporção de idosos em relação ao conjunto da população é de apenas 5%, mas a despesa com aposentadorias é proporcionalmente a mesma de países em que os idosos são 15% do total.
Além de gastar muito com as aposentadorias, o Brasil gasta mal, diz o trabalho: em 2004, os 23 milhões de beneficiários do INSS recebiam, em média, R$ 5.660 por ano, enquanto os 3 milhões de funcionários públicos inativos ou pensionistas abocanhavam, em média, R$ 25.300 por ano, ou seja, quase cinco vezes mais. Assim, embora constituíssem apenas 12% do total de inativos, os servidores públicos ficaram com 37% do montante despendido com aposentadorias naquele ano (R$ 206,1 bilhões). Os demais 63% dos gastos previdenciários destinaram-se ao pagamento dos inativos do INSS, que somavam 88% do total. A diferença de tratamento entre os dois grupos evidencia a má qualidade desses gastos.
A partir desses números, a Fecomercio SP tirou três conclusões, apresentadas no livro Simplificando o Brasil (Editora Senac São Paulo, 2006): é desigual o gasto previdenciário entre os beneficiários do INSS e os do serviço público; a despesa com aposentadorias é excessivamente elevada, na comparação com os demais dispêndios do Estado; e o Brasil gasta muito com aposentadorias, na comparação com outros países.
As razões que explicam como se chegou a esse ponto são diversas, mas a precocidade da aposentadoria é apontada como a principal: o INSS não impõe uma idade mínima, e aquela estabelecida para os funcionários públicos é relativamente baixa. Também é citada como agravante a diferença concedida às mulheres, que adquirem o direito de se aposentar cinco anos antes dos homens, embora sejam mais longevas do que eles.
A segunda razão seria a generosidade dos legisladores para com os funcionários públicos. Para os servidores brasileiros, o valor do benefício de aposentadoria é igual ao último salário integral. E, uma vez na inatividade, eles têm direito aos mesmos reajustes salariais de seus colegas ativos.
A terceira razão é a existência de benefícios de caráter assistencial, que têm representado volumes significativos e crescentes nas despesas previdenciárias. O mais importante deles é a aposentadoria dos trabalhadores rurais, que em sua quase totalidade nunca contribuíram para a previdência social, razão pela qual a unanimidade dos analistas considera que esse benefício (responsável por 64% do déficit) deveria ser pago pelo Tesouro.
É incontestável a importância da aposentadoria rural como fonte de renda para um grande número de municípios pequenos de regiões menos desenvolvidas. O problema é que os gastos com esses benefícios, concentrados no valor de um salário mínimo, têm crescido aceleradamente, em decorrência dos aumentos reais concedidos nos últimos dez anos.
O trabalhador urbano, por sua vez, pode receber um benefício semelhante, desde que comprove ser pobre e ter atingido a idade de 65 anos – condição válida para ambos os sexos. Esses benefícios foram consolidados na Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), de 1993.
Em suma, as principais causas do excessivo gasto previdenciário no Brasil são: a idade precoce da aposentadoria, conjugada com o envelhecimento da população; a generosidade nas regras relativas ao funcionalismo público, agravada pelos benefícios oferecidos ao Poder Legislativo; as aposentadorias concedidas ao trabalhador rural e a vinculação de grande parte das despesas do INSS ao salário mínimo.
O problema é que o Estado não consegue extrair da folha de salários receitas suficientes. No caso do INSS, as contribuições de empregados (entre 8% e 11% do salário até o teto de R$ 308,20) e empregadores (20% sobre a folha de pagamento) cobriram em 2004 apenas 72% das despesas com benefícios previdenciários. Já entre os funcionários públicos dos três níveis de administração a arrecadação atingiu de um terço a um quarto dos gastos com aposentadoria.
Computando-se os dois segmentos, INSS e funcionários públicos, em 2004 a arrecadação sobre a folha supriu apenas 54% dos gastos. Os outros 46% foram cobertos pelo Tesouro Nacional. A diferença entre contribuições e benefícios foi de 5,3% do PIB, para uma despesa total de 11,7% do PIB.
Para enfrentar esse rombo, o Estado brasileiro lança mão das chamadas contribuições sociais, um tipo de receita que a Constituição formalmente não considera como imposto e que o Executivo não precisa repartir com estados e municípios. Como resultado, é enorme a tributação sobre a folha de pagamentos, e há uma pesada carga de tributos indiretos, reconhecidamente regressivos, como a CSLL e a Cofins, para financiar a seguridade social.
Propostas
Para mudar essa situação e tentar alcançar um equilíbrio sustentável do sistema, a Fecomercio SP propõe as seguintes medidas:
• Separação dos orçamentos da previdência e da assistência social.
• Estabelecimento de uma idade mínima para aposentadoria, aos 60 anos, para todos.
• Aposentadoria proporcional ao tempo de contribuição – a menor aposentadoria seria de um salário mínimo.
• Teto de dez salários mínimos para a aposentadoria, tanto para o INSS como para o servidor público.
• Financiamento do sistema a partir de tributos não cumulativos.
• No período de transição seriam taxados os inativos com rendimentos superiores a dez salários mínimos.
• Incentivo à previdência complementar, aberta ou fechada, aos que desejarem receber benefícios acima do limite estabelecido pela previdência pública.
• Regras idênticas, sem exceções, para servidores públicos e trabalhadores do setor privado.
• Respeito aos direitos adquiridos até a data da aprovação da reforma.
• Ampla cobertura do sistema, com maior proporção de contribuintes.
• Rigor na fiscalização da arrecadação e dos gastos do sistema.
Há muitas variações a partir desse eixo de propostas. O economista do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) Fabio Giambiagi, autor do livro Reforma da Previdência – O Encontro Marcado, sugere: indexação de todas as aposentadorias ao Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), para evitar aumentos reais do piso previdenciário quando se aumenta o salário mínimo; fixação de idade mínima de 60 anos para homens e 55 para mulheres, a vigorar em 2010, e redução da diferença de cinco para dois anos entre homens e mulheres, até 2026.
O economista Paulo Rabello de Castro, presidente do Conselho de Planejamento Estratégico da Fecomercio SP, defende uma lei de responsabilidade previdenciária, nos moldes da Lei de Responsabilidade Fiscal, com foco na gestão do INSS e no equilíbrio de suas contas a longo prazo. "Os segurados devem ser tratados como clientes", diz Rabello de Castro. Mas ele adverte: "Se demorarmos mais quatro ou cinco anos para realizar essa reforma, vamos ter de discutir até os tais direitos adquiridos".
Medidas administrativas, como o recadastramento dos segurados, que segundo o governo garantiu a economia de mais de R$ 1 bilhão em 2006, também estão na ordem do dia. Em março do ano passado, as empresas deviam R$ 100 bilhões ao INSS, o que levou o governo federal a editar medidas como o Programa de Recuperação Fiscal (Refis), destinado ao parcelamento de dívidas fiscais federais, e a Timemania, loteria criada para que os clubes de futebol, caloteiros crônicos da previdência, possam liquidar suas pendências.
Ralos como o da inadimplência e o do auxílio-doença – cujo número saltou de 600 mil por ano em 2000 para 1,5 milhão em 2006, evidenciando mais um esquema de fraudes – levaram o consultor Vicente Falconi, do Instituto de Desenvolvimento Gerencial, responsável pelo choque de gestão do governo Aécio Neves em Minas Gerais, a afirmar que seria possível reduzir R$ 50 bilhões nas despesas do INSS em três ou quatro anos, apenas com medidas administrativas.
O economista Amir Khair, secretário de Finanças da prefeitura de São Paulo no governo de Luiza Erundina (1989-92), rejeita as reformas "ortodoxas", que em sua opinião provocam uma corrida à aposentadoria pelas regras antigas e com isso retardam por 15 ou 20 anos os efeitos pretendidos. Diz que a aposentadoria rural detém a migração do campo para as saturadas metrópoles e se constitui no maior programa social do país, 20 vezes maior que o Bolsa Família. Ele concorda com a importância da qualidade da gestão para conter as fraudes, mas diz que o fundamental para resolver o problema é mais PIB: "Se a economia tivesse crescido 5% anuais desde 1995, em vez de 2,5%, o gasto previdenciário teria estagnado em relação ao PIB e não haveria déficit".
No pólo oposto, um superlobby de 90 entidades empresariais, coordenado pelo Comitê Executivo do Plano Diretor do Mercado de Capitais, insiste em um novo modelo previdenciário para os trabalhadores que estão entrando no mercado, com as seguintes características principais: separação entre benefícios de risco (auxílio-doença, aposentadoria por invalidez, pensão por morte, entre outros) e programáveis (aposentadorias); para estes, o regime de repartição continuaria em vigor até o teto de R$ 1.050, que abrange 80% do total. Para os 20% com benefícios acima desse teto seria instituído o regime de capitalização em contas individualizadas, em que o participante escolheria o administrador de sua poupança previdenciária.
Para que se tenha uma dimensão do caráter estratégico dessa questão, cujo alcance ultrapassa as fronteiras nacionais, no final do ano passado o coro em favor da reforma da previdência no Brasil foi engrossado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que congrega os países ricos. A diretora do Departamento Fiscal do FMI, Teresa Ter-Minassian, defendeu a adoção da idade mínima e a desvinculação dos benefícios previdenciários do salário mínimo, propostas idênticas às esposadas pela OCDE, que agrega mais uma: a elevação gradual, pelos próximos 15 anos, do período mínimo de contribuição.
Previdência complementar
As limitações da previdência pública, em especial o baixo valor das aposentadorias, há muito tempo despertaram nos trabalhadores do setor privado e de empresas estatais a certeza de que não deveriam deixar o seu futuro nas mãos do Estado.
Dessa consciência nasceram gigantes como a Previ e o Petros – respectivamente os fundos de pensão dos funcionários do Banco do Brasil e da Petrobras –, que pertencem ao segmento fechado da previdência complementar. Embora já existissem anteriormente, assim como outros com origem em empresas privadas como a Philips e a Promon Engenharia, esses fundos pioneiros foram legalizados pelo regime militar em 1977, com o objetivo de formar uma poupança previdenciária para alavancar o mercado de capitais.
Também fazem parte da modalidade fechada os fundos instituídos por entidades de classe – a previdência associativa, regulamentada em 2001. Em ambos os casos a participação não está disponível a qualquer interessado, mas sim condicionada ao vínculo empregatício com uma empresa que ofereça o benefício na condição de patrocinadora ou ao vínculo associativo com cooperativas, sindicatos e associações de classe credenciados para organizar os chamados fundos instituídos.
De acordo com o Ministério da Previdência Social, responsável pela fiscalização do sistema, atualmente existem 363 entidades fechadas de previdência complementar, responsáveis por 1004 planos de benefícios, que contam com 1,84 milhão de participantes e somam R$ 340 bilhões em ativos.
O número de participantes do outro pólo da previdência complementar – a previdência aberta, cujos planos são comercializados por bancos e seguradoras para o público em geral – é bem maior: saltou de 1,8 milhão em 1994 para 7,5 milhões de pessoas nos dias atuais. Por outro lado, seus ativos são mais de três vezes inferiores e só recentemente atingiram a casa dos R$ 100 bilhões, segundo a Associação Nacional de Previdência Privada (Anapp).
Planos privados
Os planos de previdência privada, tanto fechada como aberta, incluem duas fases, a de acumulação de recursos ou capitalização e a de recebimento dos benefícios. Na primeira fase é definido um valor de contribuição mensal que não precisa ser fixo: respeitado o mínimo estipulado em cada plano, esse valor pode aumentar ou diminuir, ao sabor dos êxitos ou reveses na vida pessoal e profissional de cada um. O valor da mensalidade deve guardar relação com a idade em que a pessoa planeja se aposentar e a renda que pretende garantir. Também podem ser feitos aportes eventuais, com o objetivo de aumentar o valor da renda estimada ou diminuir o tempo de contribuição.
Concluída a fase de acumulação prevista no contrato, o participante ou cliente credencia-se a receber os recursos poupados sob a forma de renda vitalícia, temporária ou pecúlio (quando o montante é pago de uma só vez). Na quase totalidade dos planos esses valores são estabelecidos na modalidade de "contribuição definida", ou seja, são proporcionais à poupança acumulada. Só alguns poucos fundos de pensão no país, como a Previ, mantêm a modalidade de "benefício definido", em que o aposentado recebe, indefinidamente, valores semelhantes a seus salários na ativa. Além da aposentadoria, os planos podem oferecer os chamados benefícios de risco para a proteção individual e familiar, como pecúlio ou pensão por morte ou invalidez.
Quanto à idade ideal para fazer um plano, os especialistas explicam que, quanto mais jovem for a pessoa, menores podem ser as contribuições mensais e mais cedo o início da aposentadoria. É possível fazer um plano de previdência para um bebê, visando a uma aposentadoria abastada ou simplesmente o custeio futuro dos estudos. Inversamente, quanto mais velho for o poupador, maiores serão os depósitos que terá de fazer para obter uma aposentadoria confortável.
Embora a proposta de um plano privado de previdência seja acumular o dinheiro a ser usado na aposentadoria – o que exige um longo tempo de aplicação –, o resgate pode ser feito antes do prazo combinado, respeitando-se os períodos de carência, que variam de dois meses a um ano.
Na previdência complementar aberta há dois tipos principais de plano. O Plano Gerador de Benefício Livre (PGBL), criado em 1998, não oferece garantia de rentabilidade mínima, repassa integralmente para o beneficiário os rendimentos de aplicação obtidos, e suas contribuições podem ser deduzidas da base de cálculo do imposto de renda, desde que não ultrapassem 12% da renda bruta anual do investidor. O Vida Gerador de Benefício Livre (VGBL) foi criado em 2002 com as mesmas características, mas uma diferença: não pode ser deduzido do IR; em compensação, no momento do resgate, a tributação incide apenas sobre o rendimento do investimento e não sobre o volume total. A fiscalização das instituições responsáveis por esses planos está a cargo da Superintendência de Seguros Privados (Susep).
Na previdência fechada, os planos com patrocinador – como os das empresas estatais – têm uma particularidade: o empregador soma uma contribuição sua à do empregado.
A vantagem da previdência associativa, na comparação com a aberta, é o fato de que, como o instituidor do plano é uma entidade sem fins lucrativos, as taxas de administração são inferiores às de mercado, o que significa maior rentabilidade dos recursos investidos. Um exemplo disso é a Fundação Fecomercio de Previdência Associativa (FPA), criada em 2005 pela Fecomercio SP, que cobra apenas 0,5%. Nos PGBLs e VGBLs, a taxa de administração oscila entre 1,5% e 3,5%.
De acordo com o diretor financeiro-administrativo da FPA, Antonio Fernandez, o Plano Fecomercio de Renda Complementar – que conta com a adesão de mais de cem instituidores, como os sindicatos patronais filiados à Fecomercio, a Federação da Agricultura do Estado de São Paulo, o Sesc SP e as Federações do Comércio do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco e Distrito Federal – é especialmente indicado para os sócios das micro e pequenas empresas, que constituem a imensa maioria no segmento comercial e de serviços, bem como para seus familiares.
"Esse é o segmento que, talvez, mais necessite de uma previdência complementar. Temos flexibilidade para atender seus diferentes perfis, visto que a contribuição é definida pelo participante, observado o valor mínimo de R$ 40", diz Fernandez. A previdência associativa também permite a dedução no IR das contribuições. O economista Paulo Rabello de Castro prevê para ela um futuro promissor: "A previdência associativa poderá atingir, nas próximas décadas, de 60 milhões a 70 milhões de brasileiros".
E se, apesar de todos os mecanismos de controle, a instituição responsável pela previdência complementar falir? Nesse caso, os donos de planos correm riscos e seus recursos podem até não ser recuperados, pois a prioridade de pagamento é dada aos débitos trabalhistas e fiscais.
Em abril do ano passado, a Secretaria de Previdência Complementar interveio no fundo Aerus e determinou a liquidação dos dois planos de benefícios previdenciários que eram patrocinados pela Varig. Deixaram de receber benefícios 6.792 aposentados e pensionistas e os 8,3 mil trabalhadores perderam as contribuições pagas ao fundo. A Varig devia ao Aerus R$ 2,3 bilhões, referentes a aportes que deixaram de ser feitos. Para Fernandez, esse é um caso isolado, que não deve se repetir: "A lei segrega o patrimônio de cada instituição dos ativos aplicados. Assim, se o banco gestor de ativos de um plano falir, os recursos aplicados não pertencem a ele e não são afetados pela falência".
No Brasil, a previdência complementar representa 18% do PIB e ainda tem grande potencial de expansão, se considerarmos que na Suíça essa relação é de 112%, na Holanda de 106%, nos EUA de 95%, na Austrália de 73% e no Reino Unido de 65%.
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