Postado em
Jongo, ritual de resistência e tradição
Manifestação de origem africana sobrevive e se consolida como patrimônio cultural
FRANCISCO LUIZ NOEL
Foto: Adilson dos Santos
O canto gutural ao ritmo de tambores, com dança no meio da roda e marcação de palmas, ecoa no vale do Paraíba desde o século 18, quando os negros do antigo Reino do Congo chegaram para a lida escrava nas fazendas de café de São Paulo e Rio de Janeiro. Em meio às profissões de fé na força dos ancestrais deixados na África e à crônica da vida dura na lavoura, os africanos cifraram palavras em português e em dialeto para burlar os ouvidos dos feitores e maldizer a opressão, falar de liberdade e combinar fugas. Nas noites das senzalas, o jongo era entretenimento para compensar a jornada no eito, marco de identidade social e trincheira cultural contra a escravidão.
Quase 120 anos depois da Abolição, a tradição jongueira continua viva. Vários grupos de afrodescendentes espraiam essa herança africana não só em solo paulista e fluminense, mas também em terras mineiras e capixabas por onde passaram o café, a cana-de-açúcar e o sofrimento escravo. A resistência às adversidades da discriminação racial, do êxodo rural, da luta pela sobrevivência e do bombardeio da cultura de massa acabou por elevar o jongo à condição de patrimônio cultural. O título foi concedido pelo Ministério da Cultura, que em dezembro de 2005 inscreveu essa manifestação cultural no Livro de Registro das Formas de Expressão do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Com metáforas cantadas à semelhança dos pontos de umbanda, o jongo é praticado ao som de atabaques cavados em troncos e cobertos com couro animal – o tambu ou caxambu, grave; e o candongueiro, agudo. Ao canto do solista, os dançarinos respondem em coro e se alternam no centro da roda, sozinhos ou em dupla. Rodando, saltando ou arrastando os pés, cada um exibe a destreza no estilo das coreografias de umbigada, mas sem contato físico. Contraparte profana da umbanda, o jongo é matriarcal, liderado pela mãe-de-santo do lugar. Alguns pontos são segredo dos mais velhos, e os tambores, reverenciados como elo de ligação com entidades sobrenaturais.
Orgulho e preconceito
O reconhecimento institucional coroou uma luta tenaz dos jongueiros. No livro das formas de expressão que devem ser valorizadas como relíquias imateriais da brasilidade, o registro do jongo foi o terceiro, atrás da arte pictórica dos índios wajãpi, do Amapá, e do samba de roda da Bahia, considerados patrimônio cultural do país em 2002 e 2004, respectivamente. A mobilização dos grupos ganhou impulso em novembro de 2002, quando a titulação do Iphan foi pedida pelos jongueiros da Serrinha, do bairro carioca de Madureira, e da Fazenda São José, em Valença (RJ), no vale do Paraíba, em carta endereçada ao ministro da Cultura, Gilberto Gil.
A reivindicação foi encampada pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular do Iphan, que produziu um alentado dossiê ao fim de visitas a comunidades, pesquisas e gravação de audiovisuais. Fundamentado no levantamento, o registro no livro do Iphan define a manifestação como "jongo no sudeste" e a descreve como "uma forma de expressão afro-brasileira que integra percussão de tambores, dança coletiva e práticas de magia" e que acontece em quintais da periferia e em localidades rurais em festas do sincretismo religioso, como as juninas e a do Divino, e no dia 13 de maio, em lembrança do fim da escravidão.
"O título foi um passo importante em direção à valorização do jongo e de todos aqueles para quem ele é uma referência cultural", assinala no Centro Nacional de Folclore a antropóloga Andréa Falcão, que coordena o plano de salvaguarda da tradição. Formulado com a participação de 15 comunidades, esse projeto se destina a estimular a transmissão de conhecimentos, a divulgação do patrimônio e a valorização dessas populações afrodescendentes. Por conta própria, o jongo já vem conquistando espaços. Na novela Sinhá Moça, da TV Globo, passada às vésperas da Abolição, 50 jongueiros da Fazenda São José participaram das gravações, com direito a várias aparições na telinha.
A divulgação na tevê levantou a auto-estima dos jongueiros, que, no Rio de Janeiro, já fizeram roda no Canecão, no Circo Voador e até no Teatro Municipal, onde o Jongo da Serrinha subiu ao palco com Dona Ivone Lara, em junho de 2006. Resta, no entanto, muito a fazer, como ilustra pedido inusitado dos jongueiros ao Centro Nacional de Folclore: oficiar às prefeituras que o jongo agora é titulado e apoiado. "Muitas das dificuldades dizem respeito à relação com os poderes locais", diz Andréa Falcão. "É importante conscientizar a população do valor cultural dessa manifestação, dando maior visibilidade ao registro do Iphan e contribuindo para evitar o preconceito e a discriminação."
Inimigos como esses, a que já se juntou a repressão da polícia, são recorrentes na história do jongo e de outras tradições de origem africana. Em Piquete, no trecho paulista do médio Paraíba, o Código Municipal de 1893, desengavetado pelo professor Gilberto Augusto da Silva, de 44 anos, o Gil do Jongo, diretor da Escola Municipal Professora Ricarda Godoy Lopes, é categórico: "Os batuques, sambas, cateretês, cana-verde e outros, sem aviso da autoridade competente, ficam proibidos, sob pena de 5.000,00 de multa ao dono da casa". Confundido com a umbanda, o jongo também recebe a pecha de "macumba" e sofre a mesma demonização por parte de evangélicos de linha pentecostal.
Quilombolas
A fazenda de Valença é o mais reverenciado santuário dos jongueiros. No município, um dos principais pólos da cafeicultura fluminense no século 19, as raízes do jongo são preservadas por descendentes de quilombolas com mais de 150 anos de tradição. Foi na São José, no distrito de Santa Isabel, que 14 grupos do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais realizaram, em novembro, o 11º Encontro de Jongueiros. Organizada pela Associação dos Moradores do Quilombo São José e pela ONG Brasil Mestiço, com patrocínio da Petrobras, a festa reuniu 700 pessoas, juntando música e dança a comidas da tradição afro-brasileira.
O jongo dos remanescentes do quilombo São José é um achado de valor inestimável para a memória popular no país. Autor do livro Jongos do Brasil, lançado no ano passado com patrocínio da indústria de cosméticos Natura, o cantor e pesquisador Marcos André recorda o fascínio que sentiu quando se deparou com a arte dos jongueiros de Valença, em 1997. "Encontrei uma realidade que imaginava ser coisa do passado. Era o elo perdido. Para a comunidade do jongo, a grande referência da tradição ancestral é o quilombo São José", diz, com a vivência de ex-cantor do Jongo da Serrinha, que adiciona ingredientes modernos aos tradicionais e se apresenta em shows no Rio de Janeiro.
De geração em geração, os pontos cantados pelos descendentes de quilombolas de Valença atravessaram o século 20. Soam como nos tempos do mais antigo ancestral da comunidade, o escravo Pedro Seabra, que chegou à fazenda na década de 1850. As letras falam da faina nos cafezais, das agruras do cativeiro, da violência dos feitores e dos mistérios da natureza, povoada por jaguatiricas, tatus, saracuras, inhambus, jacus e lambaris – fauna nativa a que se juntam os bois e cavalos da fazenda. Ícones católicos que ganharam novos significados com o sincretismo também freqüentam os pontos, como são Benedito, santo Antônio, Nossa Senhora e o Menino Jesus.
O jongo sobreviveu intacto em Valença porque, apesar do progresso acelerado das comunicações e dos transportes no século 20, só nas últimas décadas os afrodescendentes emergiram do isolamento a que foram relegados ali desde a Abolição. Abandonada à própria sorte na fazenda, ao pé da serra da Beleza, a comunidade manteve velhos usos como as roças de subsistência, o fogão a lenha e o candeeiro. Mesmo com a chegada da energia elétrica, em 2004, muitas famílias ainda passam a roupa com ferro a brasa. No caldeirão cultural do jongo e da umbanda, estão conservados também o costume das ervas medicinais e das benzeduras, o artesanato utilitário, a dança do calango e o terço de são Gonçalo.
A grande presença de idosos, favorecida pela alimentação saudável e pela ausência do estresse das cidades, também jogou a favor do jongo na Fazenda São José. Seus fundamentos e pontos são guardados na memória de homens e mulheres com 80, 90 e até cem anos – muitos deles descendentes do escravo Pedro. Exemplo de longevidade foi Mãe Zeferina, matriarca ao longo de décadas. Falecida aos 78 anos em 2003, ela legou à filha Tetê, então com 62 anos, a ascendência sobre o jongo e o terreiro de umbanda.
A revalorização dessa tradição é puxada também por outro dos 12 filhos de Mãe Zeferina, Antônio do Nascimento Fernandes, de 60 anos, o Toninho Canecão, ex-subprefeito do distrito e ex-vereador em Valença. Presidente da associação comunitária, Toninho comanda a escolinha de jongueiros criada na fazenda, ao lado da Escola Municipal Antônio Moreira Alves. Nas aulas, duas vezes por semana, 80 jovens aprendem com os mais antigos, que atuam como os griôs – anciões que transmitem a tradição na costa oeste da África. A maioria dos alunos tem entre 10 e 23 anos, mas a petizada também diz presente. "Tem crianças de colo que já estão batendo palmas e participando", orgulha-se Toninho.
O acesso das crianças e jovens ao ritual poético-musical é o mais forte sinal dos tempos, estimulado pela estratégia de sobrevivência dos jongueiros. "Quando eu era pequeno, não podia participar do jongo", conta Toninho Canecão. "Nas casas, em dia de roda, a garotada era retirada e alguém tomava conta da porta. Diziam que criança tinha língua leve e contava tudo o que via." Com o segredo, os jongueiros resguardavam a sabedoria ancestral, mas, como efeito colateral, acabavam por dificultar a propagação do jongo. Outro motivo para manter a meninada longe era a rivalidade entre mestres, que, às vezes, perdendo nos versos, tentavam virar o jogo com pancadaria.
Resgate da cultura
Nem todas as comunidades conservaram o jongo de pé desde o século 19. Foi por obra de Gilberto Augusto da Silva que a tradição foi resgatada em Piquete, cidade paulista com 16 mil habitantes na divisa com Minas Gerais, próximo do Rio de Janeiro. Neto de jongueiros dos municípios mineiros de São José do Alegre e Itajubá, o professor cresceu em convívio com pontos e batuques, que foram se calando à medida que morriam os mestres locais – entre eles, Dona Teresinha Generoso, vereadora que, a duras penas, mantinha a herança africana em Piquete. Adormecido na memória local após a morte da jongueira, nos anos 1970, o jongo foi reabilitado por Gil duas décadas depois. E só tem feito crescer.
O ponto de retomada foi a reunião de velhos jongueiros, no fim dos anos 1990, para uma série de gravações em vídeo feitas pelos pesquisadores Paulo Dias e Marcelo Manzatti, da paulistana Associação Cultural Cachuera!, dedicada ao registro de manifestações populares. "Fui às casas dos jongueiros antigos para que pudéssemos formar uma roda. Comecei às 10 horas e só consegui juntá-los depois das 17", lembra Gil, referindo-se às dificuldades para reunir os mestres locais – Cafuringa, Piúla, Tia Ignez –, que morreram tempos depois. O professor aproveitou a deixa, no entanto, para aglutinar os jongueiros: "Fui, depois, atrás dos filhos, netos e bisnetos dos antigos. Deu certo. Não paramos mais".
O reduto do jongo em Piquete é a Vila Eleotério, para onde se expandiu a população afrodescendente do vizinho bairro da Raia, que recebeu muitos escravos libertos após a Abolição. De crianças com menos de 10 anos a adultos acima dos 40, cerca de 60 jongueiros estão revivendo pontos e passos preservados pelos mais velhos, ao som do tambu e do candongueiro, apresentando-se na rua uma vez por mês. O jongo convive em harmonia com o samba da escola Império do Braz, onde os jongueiros desfilam durante o carnaval. "Todo mundo do jongo também é da escola", diz o professor Gil, fundador, compositor e cantor da agremiação carnavalesca.
Inclusão social
O despertar da tradição que adormecia na memória dos mais velhos também ocorreu em Quissamã, município de 16 mil habitantes do norte fluminense, região de canaviais desde a Colônia. Mestres locais como Maria Natividade Azevedo, de 78 anos, a Dona Preta, sua prima Guilhermina Azevedo, de 68, a Dona Chêro, e o bamba do tambor Erotides Azevedo, de 86, não praticavam o jongo desde os anos 1970. Um projeto de recuperação da culinária típica dos tempos da escravidão foi o suficiente, porém, para aglutinar os jongueiros e rememorar pontos, ritmos e passos que hoje são praticados por 50 pessoas, integrantes do grupo Tambores da Machadinha.
"A comida puxou toda a história", conta Darlene Monteiro, de 34 anos, cearense que iniciou em 2003 a revitalização de pratos locais, à base de mandioca, que também eram só lembrança entre os descendentes de escravos da Fazenda Machadinha. O jongo de Quissamã faz parte de um relicário único na tradição afro-brasileira, pois seus praticantes vivem na senzala que abrigou os antepassados – patrimônio que também serve de pano de fundo para danças como a do boi malhadinho e do fado (bailado com viola e pandeiro sem semelhança com o homônimo português). "O jongo só sobreviveu porque a comunidade ficou unida", garante Darlene.
Outra singularidade dos jongueiros de Quissamã é a variedade rítmica. Enquanto só um ritmo é cultivado nos outros locais, os jongueiros da Machadinha alternam-se em dois. "São duas levadas diferentes: o compasso de seis por oito e o de dois por quatro, parecido com o do samba e da umbanda", destaca o músico Marcos André. Como os pontos de seis por oito são tradicionais do médio Paraíba e os de dois por quatro dominam no noroeste fluminense, o jongo de Quissamã soa como o cruzamento das duas tradições rítmicas. Como forma de gerar renda para as famílias, o grupo costuma se apresentar para turistas em pacotes que incluem almoço com iguarias típicas na fazenda.
O caso da Machadinha exemplifica como a revalorização do jongo contribui para a auto-estima, assim como para a inclusão social das comunidades afrodescendentes. A prefeitura de Quissamã está restaurando as senzalas, onde vivem 200 pessoas, de 46 unidades familiares. Depois de várias apresentações fora do município, os jongueiros ganharam visibilidade aos olhos da população. "De grupo marginalizado, a comunidade virou cult, porque passou a ser representante da cidade em outros lugares", conta Darlene Monteiro. E pensar que, antes da retomada do jongo, um dos tambores ancestrais dos jongueiros servia de ninho de galinhas num fundo de quintal na Machadinha...
A incorporação do jongo à mobilização comunitária tem outro exemplo na Fazenda São José, em Valença, onde os descendentes de quilombolas lutam há décadas pela terra. O processo, no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), pode ser o primeiro a desapropriar uma área particular em benefício de uma comunidade negra, já que as outras titulações semelhantes no país ocorreram em terras públicas. A sociedade também vê com outros olhos a comunidade desde a novela Sinhá Moça, não faltando pedidos de autógrafo aos jongueiros quando vão à cidade – sinal de que o jongo está fazendo o velho preconceito ceder lugar ao respeito e à admiração pela tradição afro-brasileira.
Grito de liberdade
Alma poética do jongo, o ponto é improvisado ou retirado da tradição que remonta ao tempo das rodas na noite da senzala, ao lume da fogueira. É um mundo cheio de relatos de encantamentos e feitiços entre mestres, que às vezes dialogavam com versos de duplo sentido até que um dos bambas, derrotado, não decifrasse mais o que o outro cantava. Foi-se a porfia, que até brigas dava, mas ficou o deciframento, a busca do significado oculto atrás das palavras.
Exemplo de um ponto de Quissamã:
"Ô mamãe, ô mamãe,
o seu filho tá nu.
A camisa que ele tem
é de seda azul".
Desamparado sob a escravidão, o jongueiro invoca a proteção divina do manto de Nossa Senhora. Em outro ponto local, os escravos cantavam a liberdade que parecia impossível:
"A cobra não tem pé,
a cobra não tem mão.
Como é que a cobra sobe
no pezinho de limão?"
O tema é recorrente. Em Miracema (RJ), os versos podem ser para Nossa Senhora ou para a princesa Isabel:
"Pisei na pedra,
a pedra balanieou.
O mundo estava torto,
a Rainha endireitou".
O ponto mais conhecido sobre a liberdade atribui a notícia da Abolição ao tambor maior, chamado também de cangoma ou angoma. Clementina de Jesus, nascida entre jongueiros, em Valença, gravou em disco. Os jongueiros de Piquete também cantam:
"Tava durmindo,
cangoma me chamou.
Disse levanta, povo,
cativeiro já acabou".
Quando sai da roça atrás do sonho da cidade, é do tambor ancestral que o jongueiro se despede, cheio de tristeza, como entoa um ponto da Fazenda São José:
"Adeus, cangoma, adeus,
adeus qu’eu já vou m’imbora.
Meu cangoma fica
aqui até outra hora".
![]() | |