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Expressão de solidariedade humana
Vida, saúde e o que se espera da medicina
PEDRO S. J. KASSAB
Pedro Kassab / Foto: Nicola Labate
Pedro Salomão Kassab, ex-presidente da Associação Médica Mundial e da Associação Médica Brasileira, diretor-geral do Liceu Pasteur, presidente do Conselho Estadual de Educação de São Paulo e membro do Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar) e da Academia Paulista de Educação, esteve presente no dia 15 de setembro de 2006 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde proferiu uma palestra com o tema "Vida, saúde e o que se espera da medicina". Reproduzimos abaixo sua exposição e uma versão resumida dos debates que se seguiram. A edição completa pode ser lida na revista impressa.
Com crescente rapidez acumulam-se os conhecimentos sobre o universo material. Das menores partículas às grandes estrelas, das minúsculas dimensões dos átomos às extensões imensuráveis onde estão e movimentam-se os astros, e da energia, em seus vários estados, fica-se sabendo cada vez mais, em menores intervalos de tempo.
Não há como rejeitar idéias sobre extensão infinita desse universo e quanto a sua perpetuidade, quaisquer que sejam as transformações que nele ocorram, não se tendo como definir, no tempo, seu instante de início e como imaginar um momento final, nem sendo possível assinalar seus limites no espaço. Os corpos do Universo têm características físicas e químicas cada vez mais esmiuçadas, não só na matéria bruta como nos seres vivos, aprofundando-se o que se vai revelando quanto a sua constituição, modificações e fenômenos de que fazem parte.
Como ponto de partida da ciência quanto à vida, não se tem mais do que a constatação de sua existência, para a qual não há explicação. A interrogação que permanece sobre a vida compreende, tacitamente, a reprodução dos seres vivos. Observam-se e analisam-se seus atributos, compreendendo-se mesmo, com progressiva profundidade, o que neles se passa em correlação com o que demonstram, mas não se tem definição do porquê dessa diferença transcendente em relação à matéria bruta que tenha composição semelhante. Por que existe o movimento de origem intrínseca, a motilidade dos entes vivos, desde espécies muito rudimentares, assim como manifestações de sensibilidade, ao passo que na matéria bruta de constituição idêntica isso não acontece?
Observem-se, especialmente, as possibilidades sensoriais e de emissão de voz, que, de modo geral, crescem juntamente com o aumento da complexidade dos seres vivos e têm no homem seu apogeu. Não nos detendo, nesta oportunidade, na lembrança do maravilhoso canto dos pássaros, ressaltemos aqui o que é, talvez, o ponto mais merecedor de ênfase, a fala, o dom de transmitir o pensamento por meio da palavra, de o fazer acessível e compreensível, expondo o intelecto de que se origina, com graus variáveis de racionalidade, emotividade e criatividade.
São incessantemente vasculhadas a matéria e suas funções no ser vivo. A par das clássicas observações referentes a aparelhos, sistemas, tecidos e células, as pesquisas mergulham nos componentes materiais destes, visitando, além das substâncias e elementos químicos que os compõem, moléculas, átomos e partículas elementares. Estabelecem-se nos seres vivos suas relações com a fisiologia e seus fenômenos químicos e físicos.
Nesse caminhar incessante na busca de saber, somam-se às investigações científicas sobre a vida existente as que se fazem sobre suas precedentes e as que lhe sucederão e, com isso, detalhamentos da herança genética, com suas possibilidades positivas e negativas, transmissão de dons e de doenças e, a partir daí, chega-se à possibilidade de intervenções genéticas, tão bem exposta há cerca de meio século, por Jean Bernard, em seu livro L’Homme Changé par l’Homme.
A meditação suscitada por essas relembranças ocupa, forçosamente, boa parte de nosso pensar; estimula conjecturas e forma convicções; enseja confiança, esperança e otimismo; por vezes, todavia, gera decepções, desalento e pessimismo.
Qualquer que seja o rumo tomado por nosso interesse, não se pode fugir às reflexões que dele provêm. Na medicina, juntamente com o que lhe é forçosamente pertinente, tais reflexões somam-se, de modo inevitável, a um conjunto de preocupações que, longe de lhe serem exclusivas, estão presentes em outras atividades e devem ser consideradas de grande relevância para todas as pessoas.
Compreende-se, portanto, quanto a muitas questões inerentes ao universo e à evolução da ciência, que há uma especial atenção, bastante generalizada, tanto da sociedade como de qualquer pessoa, notadamente do próprio médico, em relação ao que se espera da medicina. Tal expectativa acaba por ser conduzida a domínios que, em grande parte, não são de responsabilidade explícita da medicina e não se incluem em suas exclusivas prerrogativas.
Como exemplo, recordemos a pena de morte. Essa sanção de caráter extremo, com finalidade declarada de defender a sociedade, simultaneamente com a imposição do castigo, não é, obviamente, matéria em que se deva esperar decisão da medicina quanto a sua aplicabilidade. Cada médico, no entanto, está moralmente impedido de participar, a qualquer título, de sua execução, assim como de torturas ou de quaisquer sofrimentos físicos e morais impostos a pessoas que estejam privadas de liberdade. A medicina foi e é concebida como atividade que defende a vida, e seu profissional não deve praticar atos em sentido contrário. Existindo execuções que se realizam com métodos, técnicas, agentes físicos ou químicos de natureza médica, o médico não deve participar do procedimento, em nenhuma etapa e de forma alguma. A enunciação desse entendimento pela Associação Médica Mundial, há cerca de 25 anos, foi motivada pelo anúncio de execução de um condenado, em outra nação, por meio de injeção endovenosa, o que deve ter-se apoiado em conhecimentos obtidos da medicina. Questões de grande significação para a sociedade, como esta, podem recomendar ou mesmo exigir manifestação, colaboração, decisão e até restrição com origem na medicina, mas a palavra final não é de sua competência.
Há 30 anos, em Assembléia Médica Mundial realizada em São Paulo, discorremos sobre as contradições existentes no chamado desenvolvimento, que se costuma focalizar com ênfase no desenvolvimento econômico. A necessidade ou aspiração de aumento de produção, para elevar a qualidade de vida, é respeitável e sempre digna de compreensão e apoio. É preciso, porém, que ocorra paralelamente o desenvolvimento educacional, com a elevação do nível cultural, pilares que são da prevenção de possíveis intercorrências negativas. O uso de fontes de energia, permitindo aplicação de maiores forças e obtenção de maiores velocidades, implicou multiplicação dos acidentes, tanto no trabalho como nos transportes e em vários outros setores, até domésticos. O emprego de combustíveis, agrotóxicos, conservantes e outras substâncias gerou poluição do ar, do solo, da água, dos alimentos e de muitos ambientes, inclusive os de trabalho. Atualmente, está sob permanente debate a questão dos produtos agrícolas transgênicos. Em seu favor, invoca-se a necessidade de maior produção de alimentos, fazendo-os mais acessíveis. Em sentido contrário, o receio de efeitos nocivos sobre a natureza e a saúde. O debate fundamentado em pesquisas confiáveis deve oferecer conclusões e orientação que permitam a proteção da saúde e contra alterações indesejáveis do meio ambiente.
Não nos empenhemos, pois, somente para o incremento tecnológico, que leva à maior produção e ao progresso material; pelo menos simultaneamente, dediquemo-nos à cultura, que civiliza.
Em muitas atividades que têm o propósito de aperfeiçoamento das condições de vida, da sociedade e de cada pessoa, encontram-se desvios em que a medicina deve intervir. São peculiares, a esse respeito, problemas detectados em práticas desportivas, que mereceram orientação médica no plano mundial. Exemplifique-se com a utilização de hormônios para manutenção de características físicas infantis, visando ao sucesso na ginástica olímpica, ou com o uso de meios para estímulo do desenvolvimento muscular, até com virilização de mulheres, para a vitória em competições de atletismo e de outras modalidades desportivas. Lembre-se a auto-hemotransfusão, para maior disponibilidade de oxigênio, além de outras formas de "dopagem". A condenação expressa do pugilismo, devido à provocação intencional de lesões no adversário, ilustra a preocupação da medicina com relação a tais atentados à saúde.
De modo notoriamente direto, a medicina age – e isso mais do que em conformidade com as expectativas – em função de indeclináveis obrigações. Deve-se entender desse modo, sem hesitação alguma, a classificação de determinadas doenças no rol das que exigem notificação compulsória aos órgãos competentes de saúde pública. Não se passe sobre essa particularidade sem notar que, mais de um século após o advento da microbiologia e o início do combate eficaz às infecções transmissíveis, estas continuam tendo grande incidência, algumas com recrudescimento, conforme as regiões do mundo e as condições em que vivem suas populações, como se tem visto com a tuberculose. Outras, já erradicadas ou significativamente decrescentes em muitos países, ainda têm incidência elevada em várias nações, como é o caso da hanseníase.
As infecções hospitalares e os fenômenos genéticos de que resulta a resistência de microorganismos a antibióticos tornam necessários procedimentos que incluem mudanças de hábitos para sua prevenção. Em nossos dias, é certamente a síndrome de imunodeficiência adquirida – Sida ou Aids, conforme suas iniciais em diferentes idiomas – que constitui, dentre as infecções, a que mais se relaciona com comportamentos pessoais e, por sua gravidade, é causa de grande ansiedade. Pelos fatores em que pode ter origem – dependência por drogas, condutas sexuais, promiscuidade –, esse mal evidencia a necessidade de mudanças de hábitos, além dos grandes esforços da medicina, em que os pacientes e toda a sociedade depositam esperança.
Os problemas de saúde atingem mais direta e fortemente as pessoas fragilizadas e que sofrem carências por razões diversas, tornando-se, conseqüentemente, mais vulneráveis. A inter-relação medicina-sociedade aponta aspectos dramáticos dessa realidade de decadência concomitante da renda e da saúde.
É possível que a maior demonstração da vulnerabilidade a que aludimos se apresente na situação dos aposentados e pensionistas do sistema de previdência social. As opções políticas definiram caminhos que fogem aos objetivos iniciais da previdência, em que as cotizações, entendidas como "remuneração de reserva", visavam à manutenção das condições de sobrevivência após a cessação do trabalho. Aos benefícios previdenciais atribuíram-se recursos progressivamente menores, comparados aos anteriores e às cotizações atuais. Paradoxalmente, os progressos da medicina, que têm melhorado consideravelmente a prevenção de doenças, seu tratamento e a reabilitação das pessoas, tornaram mais aguda essa questão, pois prolonga-se a vida cada vez mais, ampliando-se o período subseqüente ao de trabalho, ao mesmo tempo em que nessa parte da existência, que deveria ser a do ócio com dignidade, cresce relativamente o porte das exigências para a saúde. Em muitos casos o aposentado e seus dependentes passam a não ter sequer o suficiente para o mínimo admissível em alimentação, vestuário e habitação, o que se agudiza com a necessidade de aquisição de serviços e produtos para a saúde.
Como afirmamos há muitos anos e sempre repetimos, as legislações traduzem com freqüência uma verdadeira conspiração tácita dos que não têm deficiências contra os portadores destas. Pode-se acrescentar idêntica menção quanto aos que trabalham em relação aos que cessaram sua atividade produtiva. Em todas essas circunstâncias, existem situações de necessidade em que, com enorme freqüência, é frustrada a aspiração básica de ter saúde e contar com assistência para sua defesa e recuperação, não apenas pelo seu intrínseco significado mas, também, para conseguir a retomada de trabalho e a fuga do ciclo vicioso constituído pela doença e pela falta de recursos.
Temos insistido há muito tempo sobre a coloração ideológica que se deu à definição de saúde, apresentada como estado de completo bem-estar físico, mental e social. Ao mesmo tempo em que permite, como já ocorreu, considerar doente mental a pessoa com divergência política, classificando esta última como mal-estar social, esse conceito pretende impor à medicina o dever de proporcionar algo comparável à felicidade. Essa impropriedade foi emblematicamente enfatizada há mais de um quarto de século, em conferência mundial sobre a saúde realizada em Alma-Ata, Cazaquistão, em que o mote e a conclusão foram "Saúde para todos no ano 2000". Em 2006, estamos – como sempre estaremos – incapazes de converter em realidade essa utópica meta, de promover felicidade ampla, geral e irrestrita, o que costuma dar a impressão de incapacidade de a medicina cumprir o que é prometido mas ninguém pode concretizar. Talvez tenham cogitado de consolidar esse conceito impossível, para ganhar a imagem de autores dessa situação, certos governantes que, com horrorosas pretensões de feição eugênica, incentivavam a eliminação de doentes mentais e portadores de outros males e deficiências, aduzindo à sua fúria discriminatória até a cor dos olhos, da pele e dos cabelos, distinguindo quem os tivesse lisos ou crespos e assim por diante. Nem mesmo tais monstruosidades poderiam ter garantido saúde para todos, ainda que trucidando os que tivessem doenças graves ou fossem vítimas de acidentes mutilantes ou geradores de deficiência e outras conseqüências.
De maneira qualitativamente semelhante, embora com menor exagero do que o de "Saúde para todos no ano 2000", constituições e leis apregoam o "direito à saúde", que tem análogas limitações, embora sem marcar prazo para que todos tenham saúde. Isso tem importância? Muita, pois a categórica afirmação, que é necessária, do direito à assistência à saúde, possibilidade tangível mas não realizada efetivamente, fica obscurecida por esse artifício; não é peremptoriamente afirmado esse direito e, menos ainda, realizado.
O médico tem uma confissão pública de vocação, uma profissão de defesa da vida e da saúde.
Assistindo há alguns anos a uma defesa de tese, um dos integrantes da banca emocionou-nos, ao dizer ter epigrafado seu livro, da especialidade que pratica, com a afirmação, que fizéramos anos antes, de que a medicina é expressão inexcedível de solidariedade humana. Cremos nisso com a máxima convicção. E, com idêntica certeza, afirmamos ser basicamente isso que dela esperam as pessoas e a sociedade: solidariedade humana praticada com consciência, competência e dedicação, continuamente acrescidas pelo estudo e pela experiência.
De fato, é indiscutível, para nós, que as práticas médicas têm sua origem remota na tentativa, bem-sucedida ou não, de atenuar o sofrimento dos semelhantes. As pessoas tidas como conhecedoras dos males e dos recursos para saná-los, os curandeiros de outrora, prestavam cuidados e, como acontecera com eles, iniciavam outras pessoas na aprendizagem dessa prática. Como é natural, a organização do ensino da medicina e a realização de investigações de cunho científico brotaram dessas atividades precedentes, vindo a ser criados critérios para reconhecimento da formação adequada do médico e da qualidade das pesquisas médicas. A cada época, a confiança nesses critérios, que nascem da própria atividade de profissionais e são discutidos e aprovados por seus pares, constitui provavelmente a expectativa mais relevante em relação à medicina, e que esta tem confirmado por seus magníficos e crescentes êxitos. A tal ponto que o papel do médico – curar, se possível, aliviar o sofrimento ou, pelo menos, confortar – é geralmente bem compreendido sempre que o sistema de prestação de serviços permite que o paciente identifique claramente a solidariedade humana do profissional, apesar das limitações inerentes à vida e ao saber que, afinal, acabam por predominar nos estados terminais. A dor, os sofrimentos físicos e morais, as limitações mentais, sensoriais, de movimentos, esforços físicos e comunicação, existentes e persistentes, não curadas e mesmo quando pouco aliviadas, encontram no médico a solidariedade humana, o apoio, que pode dar ao paciente, compreensão, coragem e até resignação.
Na prevenção de doenças e acidentes, é imenso o valor da educação sanitária, com especial dedicação à criança, desde a fase pré-natal e continuamente na vida escolar. Já houve em nosso estado, durante alguns decênios, excelente trabalho de formação de competências nesse campo, realizado no antigo Instituto de Higiene, que se tornou Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Eram geralmente professoras diplomadas nas antigas escolas normais que recebiam essa formação adicional e transmitiam aos alunos os cuidados necessários para preservação da saúde. Foi observado, àquela época, um efeito adicional: através das crianças, os pais e as famílias recebiam os ensinamentos hauridos na escola. Em muitos casos, principalmente dentre a população de condição econômica, social e cultural mais modesta, as visitas sanitárias às moradias não tinham a necessária compreensão e o resultado desejado. A criança, no entanto, a par da linguagem utilizada na escola, tinha familiaridade com a linguagem doméstica e, nesta, como uma espécie de intérprete, dizia à família o que aprendia na escola. Potencializava esse resultado o fato de a imensa maioria das crianças ser mais escolarizada que seus pais. Nunca chegamos a aceitar o desaparecimento dessa ação e a entender seus motivos, sobretudo diante dos problemas que se agravam e crescem em grandes grupos da população.
Por outro lado, desde a instituição das grandes campanhas de vacinação em massa, que predominam em relação à prevenção rotineira de doenças infecciosas transmissíveis, houve resultados positivos evidentes. Há cerca de 30 anos não se têm novos casos de varíola no mundo, graças à imunização.
A ciência médica persegue, incessantemente, a expansão de meios para melhor diagnosticar, tratar e reabilitar, a par de melhor prevenir, no conjunto de ações para defender e recuperar a saúde e visando a sua promoção. E nisso encontra a competente colaboração de outras ciências, profissões e recursos técnicos. Sem a pretensão de nos estendermos em minúcias, citemos apenas, para exemplos, o que se produziu, com apoio da física, da química e da biologia, para a realização de endoscopias; para a produção de imagens reveladas através de ressonância magnética, tomografias, ultra-sonografias e termografias; para o uso de elementos radiativos em diagnóstico e terapêutica; para análises qualitativas e quantitativas de substâncias normais e suas variações patológicas; para o desenvolvimento da genética. Esses sucessos avançam em seus desdobramentos, atingindo minúcias com subsídios para diagnósticos e criação de terapêuticas. Deve-se muito ao desenvolvimento da genética, com definição de males associados à herança contida nos óvulos e espermatozóides. À psicofarmacologia devem ser creditados resultados que têm permitido a um número enorme de pessoas estudar, trabalhar e conviver socialmente.
A tuberculose, a hanseníase, a sífilis e doenças contraídas em relações sexuais dispõem de tratamentos eficazes. A evolução aprimoradora da quimioterapia do câncer oferece êxitos cada vez melhores. A neurocirurgia chega a áreas encefálicas e intervém em afecções antes inatingíveis. A cirurgia e outros procedimentos cardiovasculares, atuando sobre válvulas e septos, rede coronariana, o próprio músculo cardíaco e a mecânica circulatória, fundamentam a confiança generalizada que inspiram. As técnicas microcirúrgicas, dentre tantos domínios orgânicos em que atuam, recanalizam trompas de mulheres e condutos deferentes de homens – geralmente obstruídos voluntariamente – que desejam voltar a ter filhos. Haveria muito mais, para demonstrar quão rápida e seguramente tem evoluído a medicina, proporcionando vida cada vez mais longa e de melhor qualidade.
Todas as inovações médicas, depois de esgotadas as várias etapas de estudos, chegam à fase de aplicação, inevitavelmente caracterizada, para seu início, como experimentação no ser humano, pois, pela primeira vez, serão nele conhecidos e estudados seus efeitos.
A norma editada pela Associação Médica Mundial há mais de 40 anos, em Helsinki, cuja adoção é generalizada, tem sido revista e acrescida de deveres e recomendações, acompanhando-se, com isso, a expansão dos conhecimentos. Sem entrar em suas numerosas particularidades, registre-se que o emprego inicial de novos meios, isto é, a experimentação no próprio homem, deve ter como base a certeza de que os estudos precedentes mostram haver possibilidade de bom resultado, quando os recursos disponíveis tenham sido infrutíferos, e que haja a concordância do paciente ou de seus responsáveis, se for o caso, depois de plenamente esclarecidos. Seria dispensável acrescentar que o acompanhamento do estado do paciente, por todos os meios necessários, deve ser previamente planejado e controlado, para modificações que sejam recomendáveis e, se preciso, para a decisão de manter ou suspender o procedimento.
Compreenda-se a delicadeza dessa questão, diante da intenção de estabelecer maior poder de cura ou de melhores condições de vida, a que se antepõe o dever de dar máxima proteção ao paciente. Evoque-se, para melhor avaliar esse dilema e as obrigações que impõe, o início dos transplantes de órgãos, que já salvaram e prolongaram tantas vidas. Como é natural e sabido, a proporção de sucessos aumentou, à medida que a observação dos casos indicou aperfeiçoamentos possíveis, na preparação e execução do ato cirúrgico e acompanhamento meticuloso das condições do paciente após a intervenção.
Todas as realizações médicas, acumuladas incessantemente, não impressionaram o celebrado Ivan Illich, que em sua obra A Expropriação da Saúde –Nêmesis da Medicina negou mérito à medicina, quanto à maior duração da vida e com mais saúde. Essa não foi a primeira manifestação do gênero. Decênios antes, Bernard Shaw incitava à desconfiança contra a medicina, com afirmações até injuriosas. A pior de suas invectivas foi, provavelmente, seu ardoroso combate à vacinação antivariólica, em que não acreditava mas não tinha saber para não crer; há cerca de 30 anos não se tem notícia de casos de varíola no mundo. São então lembradas todas as pessoas atingidas pela terrível infecção por não terem sido vacinadas. Com certa indulgência, podem ser recordados os que, como Molière, caricaturizaram o médico, com o objetivo de provocar o riso. Admiramos o palhaço, que ridiculariza a si próprio com seu humorismo heróico.
O desenvolvimento dos transplantes, acrescentando-se ao debate sobre os limites à reanimação, suscitou a necessidade de conceituar procedimentos para comprovação da morte. Como ocorre até hoje, discutia-se até que ponto o médico tem o dever e o direito de recorrer a meios extraordinários para manter respiração e circulação, que proporcionam a oxigenação das células, ao lado de nutrir o paciente mediante técnicas especiais. Além disso, é necessário definir o momento da morte, a partir do qual é admissível a retirada de órgãos para transplantes. Ambas as coisas implicam a caracterização da irreversibilidade da morte do eventual doador.
Isso conduziu a assembléia anual da Associação Médica Mundial de 1968, em Sydney, à adoção de uma "Declaração sobre a Morte", a ser entendida como orientação para o médico, pois o requisito primordial e insubstituível é a tradicional observação dos sinais clínicos, de que não se pode prescindir. Como é sabido, em grande parte das vezes, o médico não está presente no momento da morte e, em muitas regiões, nem há médico radicado; para a constatação formal do óbito, ele é então chamado ou o cadáver transportado para local em que existe serviço, e essa verificação, em certas áreas, nem chega a ser feita. Recomenda-se, se preciso – e falamos focalizando, especialmente, a cessação de meios especiais para reanimação ou manutenção de funções vitais e, também, a eventual retirada de órgãos –, a utilização de outros recursos para comprovar o falecimento, sendo o mais relevante a eletroencefalografia. O ponto essencial é a irreversibilidade da cessação da vida da pessoa, pois não existe a morte simultânea de todas as células do corpo. Quando há o objetivo de retirada de órgãos legalmente permitida e devidamente consentida, a morte deve ser atestada por dois ou mais médicos, que não sejam participantes dos transplantes e do tratamento do paciente em que serão utilizados os órgãos, nem diretamente interessados na sua realização.
Aguardando doação de órgão de pessoa viva ou retirado de cadáver, e mesmo sem essa perspectiva, os pacientes mantêm-se sob cuidados que lhes são necessários, se disponíveis e acessíveis. Essa questão é especialmente importante nos casos de insuficiência renal, pois necessitam do tratamento adequado, a hemodiálise, nem sempre fácil de obter. Há casos peculiares, mesmo em nações de maior desenvolvimento, de problemas delicados quanto à definição – sempre penosa para o médico – de quem deve ser atendido prioritariamente e quem possivelmente morrerá.
Embora na imensa maioria dos casos não haja dificuldades relacionadas com a certeza da morte, a situação não é a mesma quando há correlação com a decisão de continuar ou de interromper o uso de meios extraordinários para manter funções vitais, a intenção de retirar órgãos para transplantação ou ambas as ações.
Por outro lado, quanto ao extremo oposto da vida, a propósito da reprodução, há procedimentos específicos para superação de infertilidade e, portanto, para serem geradas outras vidas, concretizando aspirações de pessoas e famílias, como acima apontamos ao mencionar exemplos de intervenções microcirúrgicas para restabelecer fertilidade.
A inseminação artificial, tratando-se de cônjuges, não é habitualmente motivo de dúvidas e divergências fundamentadas.
Não se passa o mesmo a respeito da fertilização in vitro, especialmente quanto a embriões gerados e não implantados. Respeitado o conceito do início da vida com a concepção, isto é, a partir da fecundação, que se faz com a penetração do espermatozóide no óvulo, conclui-se que a vida desses novos seres é suprimida se não são implantados, ou seja, há abortamento. Essa questão moral existe e ultrapassa a da legalidade do abortamento, autorizada em muitas nações com variações do período dentro do qual é aceita. A orientação do médico, com base em consciência bem formada e consistentes convicções, leva-o a resolver cada caso considerando todas as conseqüências de seus atos. Ainda que se procure compreender a situação de mulheres que resolvem interromper a gravidez, não se pode omitir que são freqüentes as motivações não relevantes, e até fúteis, causadoras dessa decisão.
Mesmo onde o abortamento voluntário esteja legalizado, ao médico deve ser reconhecido o direito de não o praticar, por razões de sua consciência. Isso não impediu, lastimavelmente, que em uma grande cidade da Europa, com milhares de médicos, um dos profissionais fosse processado – e, paradoxalmente, por omissão de socorro – por ter-se recusado a interromper uma gestação normal, tendo invocado cláusula de consciência para sua conduta. Relembre-se, também, que fetos vivos, extraídos durante a gravidez, foram usados como animais de laboratório para pesquisas farmacológicas e histológicas.
É sugestiva, a respeito desse problema, a diferença de definições legais, no mundo, quanto ao limite do período de gestação em que o abortamento pode ser provocado. Dir-se-ia que, tendo todos em comum a recusa de que a vida começa no ato da concepção, para uns, por exemplo, ela somente se inicia após três meses de gravidez e, para outros, depois de seis meses. Como se isso não bastasse, já houve cientista, anteriormente laureado com o Prêmio Nobel, que preconizou que o início da vida só fosse reconhecido dois dias após o que chamamos nascimento, para que se realizassem exames que demonstrassem ausência de problemas na criança. Não há como encontrar diferenças entre tais idéias e as aberrações eugênicas a que o mundo assistiu, como as que foram motivadas pela pretensão da superioridade ariana. Também não se teria como diferenciar essa conduta da outra, já mencionada, que tenha pretendido eliminar pessoas portadoras de males físicos e mentais considerados incuráveis ou que incomodassem a vida dos outros, tidos como normais. Nessa linha, o passo seguinte, para a suposta felicidade dos que estão bem, viria a acrescentar o sacrifício daqueles que muitos dizem ser "um peso" para a sociedade, por já estarem fora da atividade produtiva e "apenas" consumirem.
Essas manifestações em favor do próprio conforto, de sabor epicurista ou hedonista, chegam bem perto da afirmação de piedade que inspira defensores da eutanásia ativa, para que "não sofra mais" o paciente em estado grave, que sente dores e outros sintomas dados como insanáveis, que o fazem padecer. Para essa morte provocada, haveria o uso de meios, notadamente farmacológicos, ao mesmo tempo em que cessariam os recursos empregados para o esforço de tentar salvar a vida. A presunção de irreversibilidade, ou seja, de morte inevitável, acompanhada de sofrimentos – distanásia – não necessita desse gênero de suposta solidariedade humana. O médico é formado para defender a vida, não para destruí-la. Além disso, há medicação para suprimir ou amenizar a dor e outros sintomas, enquanto é feito o tratamento da doença, e que pode ser mantida quando este é interrompido ou suspenso. Reitere-se que o médico procura curar e aliviar o sofrimento ou, pelo menos, confortar. Reforça essa conduta contrária à eutanásia a disponibilidade de recursos terapêuticos que amenizam ou podem eliminar a dor, dos que conduzem ao sono, dos que anestesiam. O argumento de que podem ter o efeito de abreviar a vida é admissível, conforme o caso, mas não difere essencialmente do risco presente em certos tratamentos, medicamentosos, cirúrgicos e outros, corretamente aplicados por haver probabilidade significativa ou possibilidade de bom resultado, que não deve ser menosprezada. É relevante observar que essas terapêuticas são realizadas e acrescidas de fármacos contra a dor, náuseas, vômitos e outros sofrimentos. Na chamada eutanásia passiva, com a desistência do tratamento direcionado contra a doença, não devem ser excluídos esses agentes amenizadores e eliminadores de sintomas. A missão do médico – reitere-se mais uma vez – é curar, se possível, aliviar o sofrimento ou, pelo menos, confortar. A respeito da eutanásia, e principalmente quando o paciente está inconsciente ou não capacitado a tomar decisões, o médico há de ter a consciência preparada para não estar subalternizado a interesses pessoais de sucessão política, patrimonial e outros de cunho familial, do trabalho, social ou de outra natureza.
Em situação bem diversa encontram-se os esforços contra o envelhecimento e as doenças degenerativas e até para recuperação da vida. Extrapola-se, falando-se mesmo em obtenção de outra vida, mediante procedimento que nada tem de ressuscitação nem sequer de reanimação.
Há muita esperança, plenamente justificável, de que se venha a desenvolver o implante de células que sejam supletivas ou substitutivas daquelas que são deficientes ou insuficientes para a fisiologia e preservação da vida. A par de transplantes, intensificam-se as pesquisas com células-tronco, que ensejem evolução, como a embrionária, para dar origem aos tecidos desejados. Enfatiza o valor desses estudos a busca de células, como as das ilhotas de Langherans, do pâncreas, que produzem a insulina, de que são carentes os diabéticos; das que cumpram o papel da substância negra, do encéfalo, onde é produzida a dopamina, neurotransmissor que falta aos que sofrem do mal de Parkinson; de células encefálicas ou substâncias que detenham o mal de Alzheimer. Espera-se que a medicina chegue a esses feitos sem que se matem fetos para utilizar suas células, tecidos e órgãos. As clonagens de espécies animais podem oferecer conhecimentos de grande importância para esses objetivos.
Não é aceitável a clonagem de seres humanos, nem como fonte desses elementos para pesquisas e matéria-prima terapêutica. Menos ainda para vir ao encontro da aspiração de "continuar" vivendo ou de "viver" mais; registre-se ser absurda essa pretensão, não só em si mesma mas também na idéia de a clonagem voltar a gerar a mesma pessoa.
Um de nossos professores da fase colegial, falando sobre a história da química e a alquimia, introduziu-nos no tema da "pedra filosofal" e de um de seus objetivos, o "elixir da longa vida".
De certo modo, a ciência já o conseguiu e, com certeza, irá ainda mais adiante nessa conquista de "longa vida" e, o que é essencial, com possibilidades físicas e psíquicas cada vez melhores. Basta que se comparem não só as atuais expectativas de vida ao nascer e seu rápido aumento, mas, como prova concreta, quanto se vivia, e em que condições, à época dos alquimistas e hoje.
Contrariamente ao que afirmam algumas pessoas, a ciência tem limites. Ciência é o saber e tem fundamento moral obrigatório nesse saber. Está muito longe da verdadeira sabedoria quem afronta essa sua coluna mestra.
Ao longo dos séculos, sempre houve aqueles que teciam a cada momento, sobre a medicina, a falsa imagem de ter chegado ao máximo de conhecimentos. Os médicos sábios, os conscientes, nunca animaram essa veleidade, de que se revestiram charlatões, além de curandeiros. Ao contrário, à medida que mais aprenderam e mais praticaram, nossos maiores da medicina sempre puderam concluir que existia – como há – muito mais a saber e a fazer. A seriedade e a paciência com que construíram e continuam edificando a medicina têm, dentre suas raízes, a humildade e não a arrogância da corporação dos que menos sabem, menos estudam e menos fazem bem.
Pela vida e para a saúde, deve-se esperar uma medicina exercida, como afirmamos acima, com consciência, competência e dedicação, com a liberdade de o profissional escolher os meios que utilizará, dentre os que estejam cientificamente comprovados, para a assistência à saúde de seu paciente, e sempre responsável por seus atos, realizados com a solidariedade humana que o paciente possa sentir e que motiva a indispensável e insubstituível confiança no seu médico.
A medicina, por sua vez, tem o direito de esperar que a legislação assegure as condições para que os médicos possam assim proceder, proporcionando assistência à saúde compatível com o saber da época, e não servindo a mistificações baseadas em duvidosos dados coletivos; e, de modo especial, o direito de esperar que a lei positiva não se afaste do direito natural.
Não é demais repetirmos que uma sociedade não pode ser considerada feliz à custa da conhecida e tolerada infelicidade de uma sua parcela, no caso, constituída por aqueles que não têm recursos nem relacionamento pessoal que lhes permitam acesso oportuno e confiante ao médico.
Debate
ISAAC JARDANOVSKI – Fiquei emocionado com sua palestra porque me lembrei de dois antigos companheiros que desprezaram a medicina e morreram prematuramente. Um deles era Aristides Lobo, hipertenso em alto grau, que aderiu à talassoterapia e morreu uns 15 dias depois de iniciar o regime. O outro foi Constantino Ianni, que, com diagnóstico de doença coronariana severa, disse que jamais alguém abriria seu peito.
MARISA MORAES – Quero aproveitar a oportunidade para falar sobre uma coisa que o senhor mencionou algumas vezes. Sou cardiologista e exerço a profissão há quase 30 anos, período em que pude observar toda a evolução tecnológica que o senhor relatou. A cardiologia foi uma das áreas que se privilegiou bastante de toda essa informação. O senhor falou em dois aspectos: a mudança de hábitos que poderia evitar a Aids e a educação sanitária que existia antigamente e hoje está perdida. Dentro da cardiologia, esses dois aspectos têm importância muito grande. Porque apesar da tecnologia ainda temos doenças que poderiam ser evitadas única e exclusivamente pela mudança de hábitos.
LENINA POMERANZ – Realmente é muito importante o papel da educação. Penso que a falta de controle na alimentação, especialmente entre as crianças, tem muito a ver com a propaganda que é feita na televisão, do McDonald’s, por exemplo. Temos de fazer alguma coisa, mas, além da escola, algo vinculado com a publicidade.
KASSAB – Pessoalmente, atribuo também à televisão um relevante papel que pode exercer na educação em massa, pois a população é muito sensível a essa programação. De fato, a publicidade muitas vezes conduz a hábitos indesejáveis. Mas acredito que existem dois pilares fundamentais para a saúde: educação sanitária e vacinação. Com isso se reduz muito a incidência de doenças. A educação sanitária, iniciada juntamente com a vida escolar, tem grande eficiência, pois a criança é naturalmente ávida de saber sobre a saúde, o que é muito natural, é até um incentivo.
ADIB JATENE – Só quero dizer que hoje a profissão médica não é comandada pelos médicos, mas pela indústria de equipamentos, de medicamentos, pelos planos de pré-pagamento e pelo governo, que impõem condições em que não se consegue exercer adequadamente a profissão.
NEY PRADO – Em 1967, tive oportunidade de conhecer a Academia Soviética de Medicina, não sem antes visitar alguns hospitais para aferir a qualidade de tratamento. Perguntei a eles como é que um país, que naquela época tinha uma potencialidade militar muito grande, podia apresentar aqueles precários atendimentos médicos e hospitalares. A resposta que nunca mais esqueci: "Somos países comunistas, não capitalistas. Damos o tratamento disponível aqui". Digo isso porque a Constituição de 1988, ignorando os meios e as condições brasileiras, universalizou o atendimento à saúde. Nos direitos fundamentais, o cidadão foi contemplado com o direito à saúde. E o que se verifica é que os laboratórios, interessados em vender medicamentos, procuram as sociedades beneficentes, instigando-as para que orientem os pacientes a entrar com ações judiciais para obter o que precisam para seus problemas de saúde. A autoridade é obrigada, independentemente do valor do medicamento, a oferecê-lo prontamente. Como vamos compatibilizar essa dialética?
KASSAB – O pior é a atitude humana em relação ao doente, quer dizer, seu abandono pela perspectiva de não produzir mais. É o que de maneira sub-reptícia, talvez tácita também, quase inconsciente, pode estar sendo praticado com o sistema de previdência social. Um sistema que faz com que as pessoas, mesmo doentes, se agarrem ao emprego para conseguir sobreviver, pois o que a previdência paga não é suficiente. Houve uma grande fraude. Em primeiro lugar, nossa previdência social foi um ato de fascismo, copiou Mussolini de ponta a ponta, criando os sindicatos do lado de quem tinha o poder econômico e do lado dos que trabalhavam. A ineficiência dos sistemas estatais de assistência médica no Brasil, excluídas as instituições universitárias e os centros de pesquisa de qualidade, é brutal. Não se pode fazer saneamento básico, lembrado aqui por Mussalém, de forma rudimentar, é preciso fazer corretamente. Isso exige muitos recursos que têm sido dedicados geralmente a obras que seriam perfeitamente dispensáveis.
EDUARDO SILVA – Ouvi recentemente de um publicitário algo que me deixou surpreso. Ele disse que o candidato à presidência Geraldo Alckmin não deveria declarar na campanha que é médico, porque o povo mais simples, diferentemente do que eu imaginava, não recebe atenção adequada dos médicos, mas apenas consultas muito rápidas.
ISAAC – É a questão da imagem do médico diante da população.
KASSAB – Não estou aqui para defender, de uma maneira difusa e ilimitada, todos os médicos do mundo. Embora tenha presidido por muitos anos a Associação Médica Brasileira (AMB), sempre fiz questão de enfatizar que uma entidade como essa não deve ser uma espécie de guarda pretoriana. O médico tem de ser solidário com o paciente sempre. Esse tipo de decepção existe mesmo. Não sei em que proporção atinge a população, mas indiscutivelmente as camadas mais modestas, que não têm meios próprios para se fazer assistir, nem relacionamento que lhes permita uma espécie de tráfico de influência para ser atendidas logo e bem, têm razão de se queixar quanto à rapidez do atendimento. Essa, no entanto, não deve ser a imagem da medicina. Louis Portes, que foi presidente do Conselho Nacional da Ordem dos Médicos da França, definiu de maneira magistral o ato médico como o encontro entre uma confiança e uma consciência. São palavras que dizem tudo. Quando não se pode ter a confiança do paciente que escolhe seu médico, não se pode esperar que o atendimento seja satisfatório, porque em sua base existe um fator de natureza psíquica, psicológica. A causa disso tudo é, se me permitem a expressão, certa prostituição que houve na medicina e na sua origem, não pelos médicos, mas principalmente pela política e também por pessoas, médicos ou não, que se preocuparam mais em tratar a medicina como mercadoria do que como um serviço de significação transcendente. O poder de distribuir medicina sempre seduziu os políticos, e a ineficiência estatal acabou por abrir espaço a outras iniciativas. O médico, consciente de sua missão, que faz o melhor possível, fica premido pelos dois lados. A medicina não deve ser objeto de transação por intermediários com objetivo de lucro, diz o estatizante. O outro lado, que procura organizar os serviços médicos como atividade econômica rentável, diz com toda a razão que a medicina estatal não cumpre sua missão.
De modo que sua observação, Eduardo, é muito pertinente. Apenas não creio que se deva fazer a crítica a Geraldo Alckmin, como esse publicitário fez. Não acredito que um candidato à presidência da República deva ocultar o que é para os eleitores. Deve dizer, e se possível informar como exerce ou exerceu o seu papel de médico.
JOSÉ FARAH – Como é que um médico se sente quando seu paciente, de repente, morre?
KASSAB – O que José Farah suscita é uma questão muito profunda, que é a compreensão da morte. A morte, mesmo quando se passa dentro de casa, entre os parentes mais chegados, pode ser enfrentada com resignação pela própria pessoa. Há indivíduos que têm condições psicológicas para aceitar a morte e outros que não, que guardam uma espécie de sentimento de que a morte acontece com os outros, não vai acontecer com eles. Nunca me impressionei com isso, mas sempre senti muito, porque a solidariedade, que deve ser inerente a todos, no médico tem de ser uma característica até profissional, porque ele está enfrentando um desafio. O médico tem que ser bem preparado.
JATENE – O médico nunca se acostuma a perder o doente, só que ele aprende que não é onipotente, tem limites. Nunca se deve indicar um tratamento que é mais perigoso que a doença. Somente se recomenda uma cirurgia quando a situação clínica do doente oferece maior risco que o ato cirúrgico. Isso precisa ficar absolutamente claro para a família. Digo sempre para os residentes: "O médico sabe que tratou bem um doente quando imaginar que ele morreu e tem condição de ir ao velório". Ou seja, todas as limitações do tratamento foram informadas para a família, e ela está ciente de que o indivíduo pode morrer, mas precisa ter a certeza de que foi feito tudo. No momento em que se tem a convicção de que se fez tudo, não há nenhum sentimento de culpa.
MÔNICA CALAZANS – O que impressiona também é a questão do direito à vida. Se o médico tem a missão de preservá-la, cada um de nós tem o direito a ela. É direito humano fundamental. Na visão do médico, isso implica um direito de decidir sobre a própria morte, a eutanásia?
KASSAB – Implica. É uma responsabilidade que o médico deve assumir e ele deve também socorrer-se de outras competências, de outras pessoas que eventualmente disponham de experiência maior. Isso é muito sério na profissão médica, e a decisão do médico é sempre solitária, a responsabilidade nunca é coletiva. Não é do hospital ou do diretor clínico, mas do médico que presta assistência. A respeito disso relato um caso sugestivo. Quando se discutia na Associação Médica Mundial a questão do abortamento, eufemisticamente chamado de interrupção voluntária da gravidez, um dos assistentes jurídicos da associação médica americana, jovem, mas muito culto, fez uma afirmação que no fundo corresponde à influência das culturas sobre o que vem a ser o direito na lei positiva. Ele disse o seguinte: "Nos Estados Unidos tudo o que é legal é ético". É o reinado da lei positiva. Os homens fazem um contrato, uma Constituição, uma lei, e o que está ali é incontestável do ponto de vista moral. Eu lhe disse: "Permito-me discordar. Você talvez não tenha lido sobre o Tribunal de Nuremberg, no pós-guerra. Naquele tribunal, muita gente foi condenada e os Estados Unidos tiveram um papel relevante nisso. No entanto, o médico alemão que torturou e matou estava rigorosamente dentro da lei alemã vigente, do nazismo, que era apregoada por Alfred Rosenberg, que dizia: ‘Legal é tudo o que atende aos interesses do Terceiro Reich’. Mas o Tribunal de Nuremberg foi essencialmente ético, pois não obedeceu nem à lei da Alemanha, nem à dos Estados Unidos, nem à da Inglaterra, nem à de país algum. Portanto, nem no seu país tudo o que é legal é ético". Ele acabou concordando. Então, para mim, Mônica, o que você suscita é uma questão essencial filosoficamente, de aproximar os contratos que os homens realizam, para promover harmonia na sociedade, uma vida melhor possível, sem se afastarem do direito natural. Tenho muita convicção disso, embora reconhecendo as dificuldades. Quando se discutem questões de ética médica, há sempre pessoas que dizem que antigamente, por exemplo, não era ético alguém nadar nu, e hoje as pessoas freqüentam praias de nudismo. Isso não é uma questão ética, mas de superficialidade de costumes na vida cotidiana. As questões relativas à ética emanam todas da natureza do ser humano. Se não emanarem da natureza do ser humano e do reconhecimento que se tenha dos direitos do ser humano, a situação de conflito será inevitável, porque sempre se adaptarão as leis e constituições de acordo com a conveniência das pessoas que mandam.
Não devemos adaptar a legislação a uma distorção que existe na sociedade. As leis devem cumprir regras que respeitem os direitos humanos. A União Soviética, por exemplo, foi o primeiro país a admitir um abortamento provocado. Foi um dos primeiros atos da revolução de outubro de 1917. Quando começou a despontar no mundo o fantasma da guerra mundial, a União Soviética, em 1936 ou 1937, suprimiu o direito ao abortamento, já que ia morrer muita gente. Ou seja, não era o caso de considerar o direito da mulher de dispor do próprio corpo, ela foi tratada simplesmente como um ente procriador e mais nada. Acredito em existência da vida desde o momento da concepção. Alguém dirá que isso é porque sou católico apostólico. Não é por causa disso. A vida humana é algo que se cria a partir do momento em que o espermatozóide penetra no óvulo. Que sentido existe, por exemplo, em dizer-se que até o segundo ou terceiro mês não é ainda um ente? Os critérios variam de um lugar para outro, num evidente artificialismo que procura justificativa em razões que não são coerentes entre si. Não acredito tampouco que outras experiências mostrem coisas diferentes. Por exemplo, a Romênia, creio que no fim dos anos 1940, admitiu legalmente o abortamento. Depois de poucos anos a permissão foi suprimida, porque havia mais abortamentos do que nascimentos e, em segundo lugar, ocorreram doenças pélvicas nas mulheres que abortavam num índice muitíssimo mais elevado do que nas outras. Tudo isso porque o abortamento provocado não é um fato natural da vida. É um ato agressivo, não só àquela vida que se extingue como à da mãe.
MÁRIO AMATO – Tenho muito respeito pela medicina porque tenho parentes médicos e eu mesmo pretendia estudar medicina, mas não tive oportunidade. Gostaria de ouvir, não sobre a parte médica, mas a propósito da espiritualidade que o senhor nos trouxe.
KASSAB – Charles Richet era um grande médico do início do século passado e houve quem procurasse identificá-lo com a imagem de uma pessoa praticante do espiritismo, não apenas no sentido de espiritualidade mas também da capacidade de fazer coisas que não chegam a ser compreendidas. Isso ocorreu principalmente porque ele levantou uma documentação sobre algo que existia em torno do corpo humano, que foi chamado de aura. À medida que os conhecimentos progridem, coisas que eram inimagináveis se revelam. Há um campo magnético no corpo humano. Todos os fenômenos da vida, todos eles, são acompanhados de reações químicas, e sabemos que todas elas decorrem de um fenômeno físico, seja do tipo eletrostático ou eletromagnético. Por quê? Porque se criaram procedimentos como o eletrocardiograma, o registro das alterações elétricas que comandam os movimentos do coração, e o eletroencefalograma, que registra as alterações que se processam no cérebro durante o seu funcionamento. Então vejo com muito respeito qualquer coisa que nos pareça sobrenatural. Eu creio em Deus. E acho que ninguém tem como explicar racionalmente a fé na existência de Deus. Ou há fé ou não há fé, então isso está fora do domínio da busca da ciência.
Há conquistas que progressivamente vão ampliando as fronteiras do conhecimento. Com isso ampliam-se também as possibilidades de qualidade de vida e da medicina como contribuição para essa qualidade de vida. Mas é sempre possível manter respeito por coisas que se demonstrem, embora ainda não tenham a explicação científica respectiva. Por outro lado, é mais fácil compreender ou sentir a existência de algo que nos transcende quando existe uma fé religiosa. Isso não pode se impor a ninguém e muito menos se pode pretender explicar através de mecanismos científicos racionais. A fé escapa a isso tudo. É como dizia um professor admirável que tive, Heraldo Barbuy, a divindade é o motor imobilis, quer dizer, o criador que não foi criado. Que explicação se pode buscar para isso? Quem é capaz de nos dizer por que existe o universo, como surgiu, até onde se estende, até quando se vai estender? A gente começa a raciocinar em termos de energia, matéria, então vem a história do Big Bang. É claro que não são simples curiosos os que dizem que o mundo começou com o Big Bang, é gente de elevadíssimo nível de conhecimento. Mas ninguém vai dizer que, se houve essa explosão, tudo começou com ela, seria ridículo até. A ciência é tanto mais sábia quanto mais humilde, porque as pessoas que pouco sabem imaginam já saber tudo e as pessoas que muito sabem percebem quanto mais pode ser sabido e que ainda não é conhecido.
ZEVI GHIVELDER – Professor Kassab, há dias tive de fazer uma ultra-sonografia do abdômen. Enquanto a médica passava aquele aparelhinho, lembrei-me de que há 50 anos o médico palpava minha barriga e não tinha esse instrumento. Pergunto-lhe qual tem sido o impacto da tecnologia na prática médica e o que ainda se pode esperar. E até onde entra a intuição médica, como a daquele antigo profissional que palpava a barriga e freqüentemente chegava a um diagnóstico correto.
KASSAB – Havia um professor na Faculdade de Medicina, Antônio de Almeida Prado, que dizia: "Vocês hoje não olham o doente, apenas pegam um monte de papel para saber o que ele tem". Entre os casos que me contou, lembro o de um grande professor de pediatria que atendeu uma criança cuja respiração apresentava sibilos. Ela tinha passado por vários pediatras e ninguém chegou a uma conclusão sobre a origem do problema. O professor colocou um lenço nas costas da criança – não usava estetoscópio –, encostou o ouvido e disse: "Este menino tem um apito". Realmente o garoto havia aspirado um desses apitinhos que há em pequenos bonecos. Com uma endoscopia, que na época ainda era muito primitiva, conseguiram retirar o apito. A anamnese – a conversa com o paciente, que permite conhecer antecedentes, problemas de família, hábitos, alimentação, etc. – tem sido muito descuidada e substituída pela tecnologia. Há coisas que os aparelhos abreviam muito bem, mas nem sempre isso acontece. O problema crucial na assistência a um paciente é o diagnóstico. Quando é bem feito, abre-se o caminho para aplicar aquilo que se conhece e até para eventualmente encaminhar o paciente. E, para o diagnóstico, a anamnese, o exame físico da palpação e a escuta dos ruídos são realmente vitais.
A industrialização da assistência à saúde é horrível, e identifico isso com a entronização do ente Estado como uma divindade, esse artifício que é especialmente utilizado por certas correntes políticas. O Estado está cansado de fazer barbaridades, monstruosidades, conforme os poderes de que estejam investidas as pessoas. Quanto mais falam, menos fazem no sentido real.
O treinamento abusivo de atletas, por exemplo, como faz a China, é uma verdadeira traição aos direitos naturais, porque criam-se autênticos robôs para demonstração de que o poder constituído é bom. Isso tudo tem como origem a divinização do ente Estado, como se todos fôssemos escravos. Exemplo de maior porte disso foi a União Soviética, que de 1917 até 1988 não criou quase nada de significativo para a medicina, apesar do grande desenvolvimento tecnológico que fez com que fosse ao espaço antes dos americanos. Não criou nada, e nos anos 1970 ainda tratava sífilis com penicilina, ainda usava bismuto, apesar das lesões que causa aos rins, ainda utilizava ventosas e, dizem, não tenho certeza, até sanguessugas. Não se deve procurar a divinização do Estado, deve-se fugir dela.
JATENE – Na década de 1950 havia, em todas as cidades brasileiras, um total de 8 milhões de habitantes. No campo eram 33 milhões. Não havia desemprego na cidade e o médico trabalhava de graça por um período e no outro tinha clientes que pagavam, e assim fazia a socialização. Quem comandava a profissão era o médico, que fazia o diagnóstico com palpação e tal, errava muito, mas ninguém tinha como provar o erro, porque não existia modo de checar. Hoje somos 150 milhões nas cidades e a grande maioria não tem capacidade contributiva. Entraram na área médica outros atores – o governo e os planos de saúde – e quem faz o diagnóstico são os aparelhos, os exames de laboratório. Isso transformou a atividade médica em um grande negócio, mas não para o médico, nem para o doente, mas para esses atores novos. Tanto que hoje os hospitais fazem sua propaganda com base nos aparelhos que adquirem e não nos médicos que neles trabalham.
Por outro lado, ocorreu um aumento enorme de escolas médicas no Brasil. Até 1996 eram 82. Atualmente são 157. De 1996 para hoje criaram-se 76 faculdades de medicina, enquanto de 1808 a 1996 surgiram apenas 82. E a grande maioria desses profissionais são mal treinados, porque as escolas não têm condições de treiná-los. Por isso se socorrem dos exames. As vítimas dessa conturbação no exercício profissional são o médico e o doente.
JOÃO THOMAZ DO AMARAL – Em 1990 perdi um filho por erro médico. Passado algum tempo, voltei a me encontrar com o responsável, após ter lido o código de ética médica. Procurei mostrar que todos os procedimentos adotados por ele estavam fora do preconizado pelo Conselho Regional de Medicina. Ele me disse que não teria condições de trabalhar segundo aqueles parâmetros. Conversamos por um período relativamente longo e por fim ele conseguiu escapar da conversa, dizendo que iria a um congresso em Águas de Lindóia. Encontrei depois no jornal "O Estado de S. Paulo" uma nota sobre esse encontro, informando que um dos assuntos discutidos era a necessidade da inclusão de duas disciplinas no curso médico: a ontologia – a discussão do homem pelo homem – e uma cadeira de legislação profissional. Muitos médicos entram no mercado desconhecendo a legislação referente a sua área, o que acarreta desvios e transtornos muito grandes. Gostaria de ouvir sua opinião sobre isso.
KASSAB – É lastimável a situação de erro médico. Como outros erros, ele é classificado em três categorias: por imperícia, por imprudência e por negligência. Freqüentemente, quando ocorre, há pelo menos duas dessas condições associadas. Infelizmente, o médico é um ser humano que também falha. A preparação de natureza moral do médico é muito descuidada, ele é muito preparado sobre o como fazer, no sentido de praticar os atos sem cometer erro, mas é mal preparado quanto ao para fazer ou por que fazer, isto é, falta um pouco de base filosófica. Uma vez me convidaram para um debate na TV Cultura, há anos, a respeito de eutanásia. Havia vários colegas bem mais jovens que representavam entidades ou órgãos. Fiquei surpreso ao sentir que não tinham argumentos de natureza filosófica e moral quanto à questão. O debate se assemelhava muito à defesa de posições pró e contra, mais ou menos como na preferência por um candidato ou outro para a presidência da República, ou por um clube de futebol ou outro. Não havia nenhuma argumentação bem fundamentada a respeito da eventualidade de deixar de prestar socorros diante de uma possibilidade de salvar a vida. Então creio que sua observação está coberta de razão quanto à idéia de preparar melhor o médico para compreender aquilo que faz, por que faz.
Quanto ao número de faculdades de medicina, logo que assumi a presidência da Associação Médica Brasileira, havia dezenas de pedidos à espera de autorização para criação de novas escolas. Tinha havido uma recente multiplicação. O Brasil durante muitos anos teve só três faculdades de medicina, a da Bahia, a do Rio de Janeiro e a de Porto Alegre. A da Bahia e a do Rio mais ou menos contemporâneas e a de Porto Alegre já de época mais recente. No estado de São Paulo a Universidade de São Paulo foi criada em 1913. Ocorreu depois esse salto a que Adib Jatene se referiu e atribuiu-se a responsabilidade disso a Jarbas Passarinho, o que não é correto. A multiplicação de escolas ocorreu em fase precedente, quando foi ministro Tarso Dutra. Na AMB a comissão de educação médica fez uma análise que levei a Jarbas Passarinho, com três sugestões. A primeira, que se instituísse uma comissão do próprio ministério para analisar essa explosão, perniciosa para os pacientes. A segunda, que se estabelecesse um determinado rigorismo na apreciação de novos casos de criação de escolas, é claro que não as proibindo, mas fixando parâmetros que assegurassem qualidade. E a terceira, que se instituísse o exame de Estado – em outras palavras, que o médico graduado, para poder praticar, se licenciasse depois, como se faz na Ordem dos Advogados. Jarbas Passarinho constituiu uma comissão de alto nível e sustou o surgimento de novas escolas. Criaram-se só mais duas que já tinham parecer favorável do Conselho Federal de Educação, uma no estado do Rio e uma no interior de São Paulo. Mas o exame de Estado ele disse que não aprovaria, e até acreditava que deveria ser extinto o da OAB, porque, se é o poder público que autoriza a escola a funcionar, não tem cabimento examinar depois o profissional. Argumentei que não há possibilidade de confundir a graduação com a preparação para o exercício. Mas ele cumpriu a palavra e a manteve durante toda a sua gestão. Quando foi sucedido por Ney Braga, recomendou-me que conversasse com o novo ministro. Fiz isso e ele manteve a orientação e o número de escolas. Mas simultaneamente ocorreram dois fatos, coincidindo com nossa saída desse cenário. Um foi certa licenciosidade, mais do que liberalidade, no funcionamento de entidades intermediárias na prestação de serviços médicos. Conseqüentemente, houve necessidade de um abastecimento de mão-de-obra para assumir responsabilidades por atos médicos. E ao mesmo tempo voltou a tramitação de processos para criação de escolas médicas. Publiquei um número muito grande de textos sobre isso, um dos quais me valeu o recebimento de muitas injúrias, especialmente de políticos do interior.