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O pesadelo do futuro advogado
Reprovação maciça nos exames da OAB indica despreparo dos bacharéis de direito
MIGUEL NÍTOLO
Ilustração: Rolando Maver
George Francisco de Almeida Antunes, 23 anos, fechou 2006 com chave de ouro. Depois de muita dedicação, segundo suas palavras, diplomou-se em direito, uma conquista que diz estar saboreando com desusado prazer porque, salienta, sempre sonhou em ser um defensor de causas. Passados os primeiros momentos de euforia, no entanto, Antunes colocou novamente os pés no chão. E por um simples e polêmico motivo. É que, ao contrário do que se dá com uma infinidade de tantas outras profissões liberais, o bacharel em direito só pode exercer a profissão se for aprovado no Exame de Ordem, uma espécie de sabatina conduzida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em todo o país. O "vestibular da OAB" – é assim que alguns se referem ao exame – pode não fazer tremer as pernas, mas é um pesadelo para os recém-formados. O quadro é semelhante ao experimentado pelo candidato ao ingresso na faculdade. A diferença é que, neste caso, o interessado já é senhor de um diploma, qualidade que, em tempos passados, habilitava-o ao exercício pleno da profissão, assim como se dá com o médico, o engenheiro e o dentista. "Freqüentei a faculdade durante cinco longos anos, visando atingir um objetivo. O jeito, agora, é estudar mais um pouco e encarar a prova da OAB", conforma-se Antunes.
Dezenas de milhares de formandos prestam o exame anualmente – em muitos casos, por mais de uma vez –, mas não passam, ficando impossibilitados, portanto, de ingressar nos quadros da Ordem. São várias tentativas anuais (em São Paulo são três), provas em que o bacharel se esforça para mostrar que conhece os fundamentos do direito, domina as etapas da postulação em juízo e está preparado para lutar pelos interesses do cliente. A prova tem duas fases: a primeira é composta de cem questões de múltipla escolha, com quatro opções cada, sobre as matérias que compõem o curso. A segunda (acessível apenas aos aprovados na primeira fase) é constituída de uma peça prática em que o candidato simula um problema real, devendo, ainda, responder a mais algumas questões. São considerados habilitados para a segunda fase os bacharéis que obtiveram, no mínimo, 50% de acerto nas questões da primeira fase. "O Exame de Ordem tem uma natureza que o distingue dos exames curriculares aplicados durante o curso de direito, pois procura detectar, além dos conhecimentos específicos sobre a matéria, a capacitação adquirida para o exercício profissional", esclarece Ivette Senise Ferreira, ex-presidente da Comissão de Estágio e Exame de Ordem da OAB-SP. Ou seja, além do acerto das questões há outros requisitos para o bom desempenho da função advocatícia, tais como o raciocínio jurídico, a adequada argumentação, a fundamentação legal, a técnica profissional e a correta linguagem e expressão gramatical. "Procura-se garantir um mínimo de padrão de qualidade para a devida proteção dos direitos e a garantia de distribuição da justiça que incumbe ao advogado patrocinar", ela diz.
Enfim, um funil de bico fino que anda deixando muita gente à margem da profissão.
Como não há limites para o número de tentativas, o bacharel tem a chance de prestar o exame quantas vezes quiser até ser finalmente aprovado. "Já tentei cinco vezes, mas ainda não deu", conta J. C. F., 31 anos, formado em 2004 e que, no momento, aguarda o início das aulas do cursinho que vai prepará-lo para o segundo Exame de Ordem a ser realizado em 2007 em São Paulo, provavelmente em meados do ano. "Não participei do primeiro porque quero estar bem afiado e assim poder fazer bonito." J. C. F. reside no interior do estado e trabalha no escritório do pai, um advogado que começou a atuar, anos atrás, assim que se aposentou como funcionário público. "A meu ver, o Exame de Ordem devia se limitar à segunda fase, que exige do candidato a redação de uma peça processual cujo tema é sorteado na hora. As questões, nesse caso, dizem respeito ao dia-a-dia do advogado, ao contrário do que acontece na primeira fase, que é um misto de nervosismo e sorte", opina o bacharel.
Índices negativos
Seja como for, o fato é que o cenário é melancólico. O terceiro exame de 2006, realizado em setembro pela OAB de São Paulo, a regional com maior número de candidatos, colheu – como nos testes anteriores – um resultado desabonador. Dos 19.644 inscritos foram aprovados apenas 3.016 candidatos. Na primeira fase somente 5.999 bacharéis (30,54%) receberam o cartão verde. O índice de reprovação geral foi, portanto, de 84,65%. Para a OAB, o resultado pode ser considerado positivo, quando comparado aos percentuais de exames anteriores. "É a melhor das últimas quatro provas", disse, em dezembro último, Márcia Regina Machado Melaré, vice-presidente da entidade. "Os participantes estavam mais bem preparados", explicou. O Exame de Ordem anterior, realizado em maio, aprovou somente 9,25% dos candidatos (do total de 22.207, apenas 2.053 ganharam o direito de se inscrever na Ordem). "O exame 126, de maio do ano passado, continua liderando o ranking de pior resultado, com a aprovação de apenas 7,16% dos bacharéis", relatou Márcia, destacando que o segundo pior resultado pertence ao exame 124, de setembro de 2004, com a aprovação de 8,57% dos candidatos.
Entre janeiro e fevereiro últimos, a OAB-SP fez o primeiro exame de 2007, o 131º da série. Estavam inscritos 28.185 bacharéis, 461 a mais do que em igual período do ano passado e 1.548 a menos do que em 2005. Até o encerramento desta reportagem, os resultados não haviam sido publicados, mas não há expectativa de grande mudança de panorama.
O sotaque do fiasco, entretanto, não é uma exclusividade paulista. O mau resultado tem espocado em quase todo o território nacional, colocando em suspeição o ensino do direito no país. O Exame de Ordem realizado em dezembro no Pará reprovou quase 85% dos participantes. A situação se repetiu em outros estados no decorrer de 2006, como no Maranhão, que amargou um índice de reprovação de cerca de 80,45%, assim como no Distrito Federal (79%), Rio Grande do Sul (71,6%), Goiás (66,42%), Rio Grande do Norte (64,08%), Mato Grosso do Sul (63,53%) e Paraíba (61,74%).
O Brasil abriga mais de mil cursos superiores de direito (eram 1.017 em dezembro de 2006), um número considerado francamente elevado diante das reais necessidades do país. Estamos caminhando para 550 mil advogados com inscrição na OAB e é certo que nem todos estão na ativa, mas isso não torna a situação menos desconfortável. Há 20 anos funcionavam em território brasileiro menos de 200 faculdades de direito e o número de formandos não excedia a 24 mil a cada período. Com a instalação desenfreada de novos cursos, podem estar chegando ao mercado, anualmente, de três a quatro vezes mais bacharéis. "O problema não está no número de faculdades, mas no nível do ensino", diz José Roberto de Castro Neves, professor de direito civil na Pontifícia Universidade Católica, no Rio de Janeiro. Sócio do escritório Ferro e Castro Neves Advogados, Neves sustenta que um advogado despreparado gera um prejuízo enorme ao seu representado. "Esses danos muitas vezes são incontornáveis", observa. De acordo com a OAB, boa parte das instituições dedicadas ao ensino do direito não está conseguindo tirar boas notas nesse quesito. "A má qualidade dos serviços jurídicos no país está diretamente relacionada à má qualidade dos cursos de direito, que formam não apenas advogados, mas todo o elenco que atua na cena judiciária, como magistrados, procuradores, delegados e promotores", destacou em dezembro último o então presidente nacional da OAB, Roberto Busato, durante solenidade de entrega de carteira a 130 novos advogados aprovados no último Exame de Ordem no estado de Tocantins. Em 31 de janeiro passado, Busato foi substituído pelo sergipano Cezar Britto no comando da entidade maior dos advogados brasileiros. "É uma realidade que tem de ser mudada, pois compromete o sonho de ascensão do cidadão pelo saber", frisou Britto logo após tomar posse.
Definitivamente, a luz vermelha acendeu no caminho das escolas de direito no Brasil. "Precisamos, urgentemente, de uma reforma na estrutura do ensino e mecanismos que barrem o crescimento das redes de escolas desprovidas de qualidade", considera Luiz Flávio Borges D’Urso, presidente da OAB paulista. "Esses cursos despontam em todos os rincões, muitos sem condições de funcionamento." D’Urso assevera que essa falta de qualidade não se comprova apenas no Exame de Ordem. "São baixíssimos também os índices de aprovação nos exames da magistratura e do Ministério Público." Ele diz que o bacharel em direito, em sua maioria, traz na bagagem as mazelas de um sistema público de ensino básico ineficaz, cujas imperfeições acabam refletidas na qualidade das instituições de ensino jurídico. "A conseqüência disso está nos resultados dos Exames de Ordem, que tem uma média nacional de reprovação de 70% a 80%", diz o dirigente.
O ex-presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo e titular do escritório Castelo Branco Advogados Associados, Tales Castelo Branco, tem o mesmo entendimento. Para ele, "se os alunos não aprendem ou aprendem mal, ou, principalmente, se não sabem escrever ou são incapazes de expor, com lógica e clareza, suas idéias, é porque o mal vem de longe, do ensino básico". Ele afirma que os cursos de direito, tanto nas escolas públicas quanto nas particulares, em geral, são ministrados por bons professores. "O ideal seria cuidar extensivamente, com extrema dedicação, do ensino desde a infância, desde as primeiras letras", sustenta.
Está aí uma verdade compartilhada por muita gente. "O sistema escolar brasileiro é um descalabro", lastima-se Josué Maranhão, jornalista e advogado aposentado e há 12 anos fora do Brasil. Ex-juiz de direito e autor do livro Jacarta, Indonésia, Maranhão diz ter conhecido em sua vida profissional advogados que não se relacionavam bem com a gramática. "Não sabiam falar e não tinham a menor capacidade para elaborar uma petição, uma carta ou qualquer coisa, por mais simples que fosse." Ele argumenta que a enxurrada de formandos inábeis transformou o Exame de Ordem em um mal necessário. "Deve ser extinto se e quando o nível de ensino, inclusive e principalmente nas escolas de direito, for aprimorado", prognostica.
Desafios
Fazer mudanças profundas e virar os números para cima. Essa é uma tarefa colossal, e tem o tamanho do Brasil. Enquanto o mais dito do que feito reina na seara da educação, o ensino do direito vai continuar caminhando sobre o fio da navalha. Mas não é apenas isso. D’Urso chama a atenção para o descompasso entre o que se ensina dentro das salas de aula e a realidade do lado de fora. "Meu pai se formou há 50 anos, eu há 25 e meus dois filhos estão cursando direito. A grade curricular nesse meio século não mudou, mas o mundo sofreu uma radical mudança de paradigmas. Os estudantes ainda aprendem como resolver o despejo da dona Maria, enquanto o mundo busca especialistas em direito internacional, direito digital, biodireito, etc." D’Urso diz que os alunos acabam sendo as grandes vítimas. "Muitos pagam com dificuldade a faculdade, mas jamais conseguirão reunir as mínimas condições para passar no Exame de Ordem, seja pela deficiência de formação, seja pela imperfeição do ensino ou por ambas."
Não está dito tudo. A abnegação do aluno também conta, premissa essa que vale para qualquer curso e não apenas para os bacharelados em direito. "Fiz o exame de cabeça fresca, primeiro porque sempre levei o estudo a sério, segundo porque não tinha a preocupação de passar, considerando que sou oficial de justiça e, como tal, estou impedido de advogar", diz Laurindo Begnardi Sedano, formado em 2004 e aprovado numa única tentativa, em 2005.
Seja como for, segundo o jurista Paulo José da Costa Jr., o Exame de Ordem é a melhor maneira de selecionar os melhores e segurar os menos preparados. "Ele se faz necessário para suprir as deficiências do ensino de direito no país, e ponto final", diz. O que pensam os alunos que ainda cursam a faculdade e terão um dia de passar pelo crivo do exame da OAB se quiserem advogar? Por questões óbvias, uma grande parte é contrária; outra parece que não enxerga razões para sobressaltos. "Não estou preocupado com o Exame de Ordem", garante Luiz Carlos da Silva, 41 anos, estudante do quarto ano de direito em São Paulo. "A vida jurídica em todos os aspectos sempre estará nos submetendo a diversos vestibulares. Defender com galhardia um representado corresponde, em outras palavras, a tirar uma nota alta e ser aprovado", compara Silva.
Como toda questão tem dois lados, o Exame de Ordem não tem sido alvo apenas de elogios. Tem recebido críticas de gente de dentro do mundo jurídico e de fora, pessoas que gostariam de vê-lo enterrado. Outra não é a razão do projeto de lei do senador Gilvam Borges, do PMDB do Amapá, que pugna pela abolição do "vestibular" da OAB. "Incomoda-me a angústia de jovens que sonham com o ingresso na faculdade de direito, mas, em razão do malsinado Exame de Ordem, acabam caindo num verdadeiro limbo: formam-se, mas não podem advogar", disse o senador à reportagem para justificar seu posicionamento contrário à exigência da OAB. "Estou me referindo a uma prova que jamais poderá substituir todas aquelas avaliações às quais os alunos se submeteram ao longo dos cinco anos de formação em escolas que funcionam graças à autorização formal do Ministério da Educação." O parlamentar foi mais além, dizendo que não aceita a maneira como os defensores do Exame de Ordem tratam de apresentá-lo como solução para a proliferação de cursos jurídicos. "O crescimento do número de faculdades de direito é um problema? Então, pergunto: é atribuição da OAB conter a expansão desses cursos?" Outros ainda dizem que a sabatina da OAB bate de frente com a Constituição. "As pessoas que taxam o Exame de Ordem de inconstitucional carecem de razão", sustenta Ivette Senise. "Alegam que a Constituição Federal dispõe que ‘é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão’, mas se esquecem de mencionar a parte final do artigo, que acrescenta: ‘atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer’. A ex-presidente da Comissão de Estágio e Exame de Ordem da OAB-SP lembra que o artigo 133 da Constituição preceitua que "o advogado é indispensável à administração da justiça", e que o exercício da advocacia e a atividade da OAB obedecem ao disposto na lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994.
Pelo sim, pelo não, outros segmentos começam a considerar seriamente a idéia de também submeter os formandos a um filtro semelhante ao utilizado pela OAB. É o caso do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), que há dois anos criou um exame profissional opcional para avaliar a aptidão de alunos do sexto ano de medicina e de médicos recém-formados. Foram realizadas até agora duas provas, em 2005 e 2006, que contaram com representantes de 23 faculdades de medicina do estado. "Fomos levados a isso em razão do aumento do número de denúncias contra médicos", relata Reinaldo Ayer de Oliveira, conselheiro do Cremesp e um dos coordenadores do exame. No ano passado, a entidade recebeu 3.660 denúncias, 150% a mais do que há dez anos. O estado de São Paulo tem 86.747 médicos (dados de 2006), quase 30 mil a mais do que em 1995. A categoria ganha, anualmente, 2,3 mil novos profissionais (total que deverá chegar a 3 mil brevemente). "Pretendemos trabalhar em parceria com outras entidades regionais e com o Conselho Federal de Medicina com o objetivo de estender o exame profissional para todo o Brasil", enfatiza Oliveira.
Em tempo: o Conselho Federal da OAB tornou públicos em janeiro deste ano os nomes de 87 escolas de direito que receberão o "OAB Recomenda", selo de qualidade criado para enaltecer os cursos jurídicos que vêm apresentando os melhores índices de qualidade nos últimos anos. "Foi examinado um total de 322 instituições de ensino em todo o país (31,66% das escolas de direito em funcionamento), 107 a mais do que o número da última edição do selo", informou a entidade. Na primeira avaliação, em 2001, foram recomendados 52 cursos, na segunda, em 2004, 60. "A abertura dos mercados, colocando nossos profissionais em concorrência direta com os formandos em faculdades do Primeiro Mundo, aumenta a exigência de apuro e especialização", destacou o Conselho Federal da OAB.
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