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Brinde à cachaça
Governo e representantes do setor procuram valorizar nossa velha aguardente
EVANILDO DA SILVEIRA
Foto: ACI / Unesp
Surgida praticamente junto com o país, no início a cachaça não tinha quase nenhuma importância. Aos poucos, no entanto, ela entrou na casa-grande e nas bodegas, e foi recebida nos salões. Atingiu o ápice do prestígio no século 19, quando se transformou em símbolo da brasilidade e não bebê-la era visto como uma atitude antipatriótica. Na época o país vivia as lutas da Independência, como a Revolução Pernambucana de 1817, e erguer brindes com vinho ou outra bebida qualquer era considerado um alinhamento com os portugueses. Verdadeira personagem da história brasileira, a cachaça vem há cerca de dez anos recebendo atenção especial dos produtores, que se empenham em melhorar sua qualidade e dar a ela uma imagem de sofisticação.
Hoje o Brasil produz oficialmente 1,3 bilhão de litros de aguardente de cana por ano. É a segunda bebida mais consumida do país – cerca de 7 litros per capita por ano –, só perdendo para a cerveja, e o terceiro destilado mais bebido do mundo, atrás apenas da vodca e do soju, uma bebida coreana à base de arroz, batata-doce e trigo, muito consumida na Ásia. Do total comercializado, cerca de 1 bilhão de litros são provenientes das indústrias e o restante é produzido de maneira artesanal em alambiques.
De acordo com dados da Agência de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil), uma entidade autônoma, existem cerca de 30 mil produtores de cachaça no país, os quais produzem mais de 5 mil marcas e faturam aproximadamente US$ 600 milhões ao ano. Cerca de 450 mil pessoas são empregadas diretamente pelo setor, número que chega a 1,3 milhão em toda a cadeia produtiva. O estado de São Paulo é o maior produtor (44%), seguido por Pernambuco (12%), Ceará (12%), Minas Gerais (8%) e Paraíba (8%).
Além de ser uma das bebidas mais consumidas no país, a cachaça faz parte da vida do brasileiro de outras formas. É personagem do folclore, da música e da literatura, por exemplo. Apesar disso, atualmente ela está longe de ter a importância econômica da época do Brasil Colônia. Sua participação na pauta de exportações é insignificante. Menos de 1% do total produzido é comercializado para outros países. "As vendas externas estão em torno de 12 milhões de litros por ano", diz Marcos Soares, gestor de projetos da Apex-Brasil. De acordo com ele, considerando a média de preço de saída, isso significa algo em torno de US$ 12 milhões por ano.
Percebe-se, por esses números, que há espaço a ser ocupado pela pinga no mercado externo. Esse era justamente o objetivo do Programa Brasileiro de Desenvolvimento da Aguardente de Cana, Caninha ou Cachaça (PBDAC), criado em 1997 pela Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe), entidade representativa do setor de bebidas alcoólicas e importadores do produto. Extinto em 31 de dezembro de 2006, o PBDAC deu lugar ao Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac). Enquanto existiu, o PBDAC congregou representantes de empresas que, no conjunto, são responsáveis por 80% da produção nacional da bebida.
Novos mercados
O PBDAC foi criado para analisar os principais problemas do setor aguardenteiro e propor soluções para eles. O programa tinha, ainda, o objetivo de capacitar tecnologicamente os produtores, principalmente pequenos, e organizá-los com vistas a melhorar a qualidade da bebida e abrir novos mercados. "Os resultados em termos de valorização da imagem da cachaça dentro do Brasil foram absolutamente fantásticos", diz Soares. Segundo ele, isso pode ser constatado pelo aparecimento de dezenas de marcas de alto valor agregado nos pontos de consumo das classes de maior poder aquisitivo, coisa que inexistia antes dessa promoção institucional.
Para que isso também ocorra no exterior, a Apex-Brasil vem contribuindo desde 2000 com apoio técnico e financeiro, em parceria com entidades e associações do setor, como a Abrabe. No total, já foram investidos mais de R$ 21 milhões. "Os recursos possibilitaram a presença de empresas nacionais em feiras do setor de bebidas e rodadas de negócios internacionais, além da participação em eventos institucionais do governo brasileiro no exterior e da realização de inúmeras outras ações de promoção comercial", explica Soares.
Um exemplo foi a vinda ao país de importadores e jornalistas especializados estrangeiros para participar de eventos do setor e de rodadas de negócios com produtores e exportadores brasileiros, além de visitar empresas de vários estados. "Outra ação importante foi a realização na Alemanha da campanha ‘We do it different’, durante a Copa do Mundo de 2006, incluindo materiais de divulgação, sessões de degustação e treinamento de garçons de bares locais e de outros países da Europa", acrescenta Soares.
O resultado desse trabalho se traduziu em algumas conquistas. Hoje a bebida tem imagem muito boa no exterior e começa a ser mais conhecida pelos consumidores em bares e restaurantes. Alguns dados mostram isso. "Durante o período em que existiu o PBDAC, o número de empresas exportadoras passou de 19 para 114 – com vendas para mais de 50 países –, e o volume de cachaça comercializado no exterior saltou de 5 milhões para 12 milhões de litros", conta Maria das Vitórias Cavalcanti, diretora de Relações Externas da empresa Engarrafamento Pitú, que foi presidente do PBDAC de 1997 a 2004 e agora ocupa o mesmo cargo no Ibrac. Ela reconhece que os números ainda são modestos, mas considera esse crescimento um grande avanço.
Maria das Vitórias contabiliza outros resultados positivos da ação do PBDAC. "Um dos mais importantes foi a promulgação do decreto presidencial 4.062 de 2001, que declarou o termo ‘cachaça’ indicação geográfica, de uso exclusivo dos produtores sediados no Brasil, desde que atendam às normas de fabricação e comercialização definidas na Lei de Bebidas", diz. A lei a que a presidente do Ibrac se refere é na verdade o decreto 2.314, de setembro de 1997, segundo a qual a cachaça é uma bebida obtida pela destilação do caldo de cana fermentado e não do melaço, o que a torna distinta do rum. Com isso, pretendeu-se acabar com a confusão que existe com este último, principalmente nos Estados Unidos.
Rum brasileiro
Nos Estados Unidos, o código alfandegário para a cachaça e o rum é o mesmo. Na prática, para os norte-americanos não há diferença entre as duas bebidas. Por isso, para entrar naquele país, a aguardente brasileira deve trazer especificado no rótulo que se trata de um tipo de rum e pagar a mesma tarifa dessa bebida típica de Cuba. Daí o esforço do governo federal e das empresas brasileiras produtoras de cachaça para acabar com essa confusão.
Aos poucos estão surgindo alguns avanços rumo a esse objetivo. Uma vitória recente foi a obtenção do reconhecimento, desde janeiro, pela Organização Mundial de Aduanas (OMA), para fins de classificação aduaneira, da distinção entre aguardente de cana e rum. Agora, a cachaça tem um código alfandegário mundial próprio. Isso não significa, entretanto, que os Estados Unidos venham a aceitá-lo. "Em conversas com autoridades da aduana daquele país, elas me disseram que nada as obriga a reconhecer a cachaça como uma bebida diferente do rum", conta Maria das Vitórias.
Segundo ela, tentar resolver esse problema é uma das metas do Ibrac. "Outra é lutar pelo reconhecimento e pela tutela internacional das denominações de origem ‘cachaça’ e ‘caipirinha’, em prol da valorização mercadológica dos produtos e da ampliação das exportações", explica. No Brasil, a situação está mais adiantada. Além dos decretos 4.062/01 e 2.314/97, há outro, o 4.851/03, que especifica os padrões técnicos e a composição da cachaça, da caipirinha e do rum. "Agora, o Ibrac vai trabalhar para que outros países reconheçam e aceitem nossa legislação sobre o produto", diz Maria das Vitórias.
Para atingir seus objetivos, o instituto conta com um aliado de peso: a ciência. Pode parecer estranho para alguns, mas a cachaça já virou objeto de estudo nas universidades. Há 13 anos, o químico Douglas Wagner Franco criou o Laboratório de Desenvolvimento da Química da Aguardente (LDQA), no Instituto de Química de São Carlos (IQSC), da Universidade de São Paulo (USP). Desde então, ele coordena o laboratório e vem se dedicando à caracterização química da bebida. Para isso, já recebeu financiamentos no total de US$ 250 mil da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) – o que dá a medida da importância que a cachaça vem adquirindo para as autoridades brasileiras.
Um dos principais resultados do trabalho do LDQA foi justamente provar que quimicamente a cachaça e o rum são duas bebidas distintas. O estudo foi publicado em 2004, no Journal of Agricultural and Food Chemistry, conceituada publicação norte-americana da área de alimentos. "Além de processos de fabricação distintos, conseguimos demonstrar que, embora as duas bebidas tenham os mesmos componentes químicos, suas quantidades são diferentes em cada uma delas", explica Franco. É por isso, diz ele, que o rum e a cachaça têm propriedades organolépticas (ligadas aos órgãos dos sentidos), como cor, aroma e sabor, diferentes.
As pesquisas coordenadas por Franco não se limitam a esse feito, no entanto. "Nossos estudos traçam um perfil químico quantitativo e qualitativo médio da aguardente fabricada no país", diz ele. São trabalhos pioneiros e servem de referência para o conhecimento da composição e das reações químicas que ocorrem na cachaça. Foram estudadas mais de 150 amostras da bebida das principais regiões produtoras do país. "Procuramos compreender a química da aguardente com o objetivo de proteger a saúde do consumidor, agregar valor ao produto, melhorar a formação dos fabricantes e estimular o agronegócio", explica o pesquisador da USP.
São muitas as descobertas feitas durante esses 13 anos de estudos. Os pesquisadores constataram, por exemplo, que, além da água e do etanol, que correspondem a mais de 98% de sua composição, a cachaça contém um grande número de compostos químicos secundários. "Investigamos a presença de mais de 300 diferentes substâncias e já identificamos mais de cem compostos secundários que integram a cachaça brasileira", diz Franco. São esses componentes, encontrados em menor concentração, que conferem à aguardente as propriedades organolépticas que a caracterizam.
Com esses estudos, os pesquisadores conseguiram detectar as principais qualidades e defeitos das amostras analisadas e ter uma idéia geral de como anda a aguardente brasileira. Entre os aspectos positivos, está a constatação de que a concentração de aldeídos na aguardente é, em média, inferior à de alguns uísques importados. É um resultado importante, pois os aldeídos são considerados substâncias parcialmente responsáveis pela ressaca. Isso quer dizer que uma boa pinga dá menos ressaca que alguns uísques. Entre os defeitos, pode-se citar a presença de compostos sulfurados, flocos, hidrocarbonetos aromáticos e carbamatos, substâncias que comprometem a qualidade da bebida.
História antiga
Até chegar a essa busca científica pela qualidade, a cachaça percorreu um longo caminho. Ela surgiu com a colonização, mais precisamente com Martim Afonso de Sousa, donatário da capitania de São Vicente. "Nossas primeiras aguardentes foram obtidas a partir da borra de açúcar, o resíduo dos engenhos aqui instalados desde a primeira metade do século 16", conta o químico João Bosco Faria, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas do campus de Araraquara da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Após a fermentação desse resíduo, hoje denominado melaço, e a destilação em alambiques improvisados, os colonizadores portugueses, utilizando a técnica de produção da bagaceira, elaborada a partir do resíduo do vinho em Portugal, criaram a primeira aguardente brasileira.
O registro mais antigo da palavra "cachaça" no Brasil data, no entanto, da época em que Maurício de Nassau governou os domínios holandeses no nordeste (1637-1644) e deve-se ao naturalista alemão Jorge Marcgrave. Ao descrever a fabricação de açúcar em Pernambuco, ele escreve, em 1640: "A primeira caldeira é chamada pelos portugueses ‘caldeira de mear descumos’, na qual o caldo é sujeito à ação de um fogo lento, sempre movido e purgado por uma grande colher de cobre chamada ‘escumadeira’, até que fique bem escumado e purificado. A escuma é recebida numa canoa, posta embaixo, chamada ‘tanque’, e assim também a cachaça, a qual serve de bebida para os burros".
Quanto à origem do termo, há várias versões. Uma delas aponta em direção ao vocábulo ibérico cachazza, que nomeava um tipo de vinho barato muito consumido em Portugal e na Espanha. "Outra hipótese é que tivesse vindo da palavra que designava a fêmea do cachaço, um porco selvagem, cujas carnes duras eram amaciadas com a aguardente", diz Faria.
Independentemente da origem da denominação, o certo é que aos poucos a qualidade da cachaça foi sendo aprimorada. A bebida atraiu cada vez mais consumidores e passou a ter importância econômica para o Brasil Colônia, contrariando os interesses de Portugal, já que à corte convinha exportar os vinhos e a bagaceira lá fabricados. Os brasileiros e os colonizadores portugueses, por sua vez, queriam produzir e exportar a cachaça, o que resultou num tenso conflito de interesses entre a corte e a colônia, que perduraria por alguns séculos.
De acordo com a engenheira agrônoma Márcia Justino Mutton, da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias do campus de Jaboticabal da Unesp, nesse contexto a aguardente chegou até a ser empregada como instrumento de resistência nacional, contra a colonização e o imperialismo português. "Ela foi, por exemplo, a bebida da Revolução Pernambucana e da Inconfidência Mineira, contra o vinho importado da Europa", conta. O mesmo sentido é atribuído ao brinde feito com aguardente por dom Pedro após a Independência, numa época em que se valorizava tudo o que vinha de fora. O ritual se repetiu em 2000, por ocasião da comemoração dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, quando Fernando Henrique Cardoso brindou com o presidente de Portugal com uma taça de aguardente purinha e gelada.
Importância econômica
Voltando mais uma vez no tempo, a crescente importância econômica da cachaça para o Brasil levou a corte a buscar meios de impor seus interesses pela força, proibindo a produção e o comércio da bebida em seus territórios coloniais. Em 1635, por exemplo, vetou a venda da bebida na Bahia e em 1639 tentou pela primeira vez impedir até sua fabricação. Foram providências inúteis, e o fato é que, a partir daí, a aguardente passou a ser uma mercadoria de grande importância para o comércio externo. Ao lado do tabaco e dos tecidos, ela servia de moeda no comércio de escravos. Assim, quando a corte portuguesa transferiu-se para o Rio de Janeiro, em 1808, a cachaça já era considerada a bebida da terra e um dos principais produtos da economia brasileira.
Desde então, o que menos mudou foi seu processo de fabricação: o caldo de cana é acrescido de vários ingredientes, com o objetivo de corrigir os teores de açúcares e nutrientes, passando assim a constituir o mosto. "Nos pequenos engenhos, após esses acertos, costuma-se acrescentar fubá, farelo de arroz, quirera de milho cru ou torrado, bolacha esfarelada ou suco de limão, entre outras coisas", explica Márcia.
Uma série de microrganismos fermentam esse mosto, rico em açúcares, álcool, gás carbônico e outras substâncias (ésteres, aldeídos e ácidos), dando origem a um composto chamado vinho, que é então destilado em alambiques (grandes recipientes feitos de cobre). Para a realização desse processo, o vinho é aquecido a temperaturas que podem chegar a 300ºC, levando à volatilização de suas frações alcoólicas. "Em forma de vapor, elas passam por uma serpentina, onde se condensam, voltando à forma líquida, agora já como pinga, chamada assim porque, literalmente, pinga na saída do equipamento", conta Faria.
No caso das grandes indústrias, o método de produção é um pouco diferente. A destilação do vinho é feita em aparelhos denominados colunas ou troncos de destilação, que funcionam de modo contínuo e são aquecidos a vapor. "A aguardente assim obtida pode ser considerada tão boa ou de melhor qualidade que a produzida em aparelhos descontínuos, como os alambiques, dependendo do tipo de projeto e da condução do processo", garante Márcia. Segundo ela, é possível obter cachaças de boa qualidade tanto em pequenas quanto em médias e grandes unidades de produção.
Marketing mineiro
As empresas que usam destilação em coluna têm posição semelhante. Aline Telles, diretora comercial da Ypióca, indústria fundada em 1846 e hoje uma das maiores do setor, com uma produção de 80 milhões de litros por ano, afirma que a idéia de que a cachaça de alambique é melhor do que a de coluna surgiu por causa do marketing patrocinado pelo governo de Minas Gerais, no passado. "Na época havia interesse em valorizar as aguardentes mineiras, que não tinham representatividade nacional", explica.
Segundo Aline, a Ypióca, que detém há cinco gerações o segredo do sucesso que tornou suas aguardentes conhecidas e apreciadas em todo o mundo, já produziu cachaça em alambiques, inicialmente de cerâmica (1846) e posteriormente de cobre (1890). Com a expansão do mercado, no entanto, foi adotado o engenho com destilarias de coluna para atender a demanda. "Mas isso apenas enobreceu o produto, que agregou maior tecnologia, qualidade e controle sobre todos os processos", diz Aline.
Não é o que pensa o degustador e especialista na bebida Marcelo Câmara, autor do livro Cachaças: Bebendo e Aprendendo – Guia Prático de Degustação, o primeiro do mundo, segundo ele, sobre o assunto. "Cachaça destilada em coluna não é cachaça, é outra bebida", diz, taxativo. De acordo com ele, as grandes empresas fazem milhares de litros de uma só vez, com acréscimo de substâncias artificiais, que resultam numa "bebida horrorosa, nauseabunda". "As indústrias confundem estar dentro da lei, produzir a cachaça de acordo com as especificações, com fazer uma boa bebida", critica.
Jackson David, da Federação Nacional das Associações dos Produtores de Cachaça de Alambique (Fenaca), sediada em Belo Horizonte, é mais contido ao comparar os dois tipos de cachaça. Ressalvando que não cabe à Fenaca fazer juízo de valor sobre a qualidade do produto industrial, David diz que as empresas que adotam a destilação em coluna também dominam as tecnologias de produção, além de ter capacidade de investimento e marketing muito superior à dos alambiques. As diferenças estão no processo de fabricação. Uma das principais é que nos alambiques se faz a separação da fração inicial (cabeça) e da final (cauda), utilizando somente o "coração" do destilado. "Isso permite que a cachaça de alambique seja rica em componentes secundários favoráveis ao aroma e ao sabor, o que faz a diferença." A partir daí, diz ele, depende da preferência do consumidor.
Seja como for, é mais fácil convencer os estrangeiros do que os brasileiros de que a cachaça é uma bebida que merece respeito. Por ter sua origem ligada à escravidão, beber cachaça nunca foi um hábito bem-visto no Brasil. Entre os europeus, no entanto, nossa aguardente é uma bebida muito valorizada. "Na Alemanha, por exemplo, uma caipirinha chega a custar US$ 18", diz Márcia. Preço nada surpreendente quando se considera que, em pesquisa recente, feita com barmans do mundo inteiro, a brasileiríssima caipirinha foi eleita o oitavo drinque mais conhecido.
Talvez esteja ocorrendo com a aguardente algo semelhante ao que aconteceu com a tequila, no México. No início, era consumida apenas por índios. Graças a um programa desenvolvido com o propósito de divulgar e valorizar a bebida nacional, por meio de um amplo trabalho de marketing, informação e conscientização da população, hoje a tequila é motivo de orgulho para o povo mexicano. O mesmo se pode dizer do uísque para o escocês, do vinho para o francês e da grapa para o italiano. Pode ser que demore, mas os que lutam pela valorização da cachaça, essa bebida brasileira por excelência, têm a certeza de que chegará o dia em que dar um "taio" na "marvada" terá o mesmo prestígio que brindar com vinho Romanée-Conti ou degustar uísque Chivas Regal 12 anos.
Em busca de uma imagem destilada
Apesar do estigma de produto de baixo valor e de bebida de pobre com que a cachaça ainda convive no Brasil, aos poucos algumas marcas começam a conquistar consumidores de classes mais ricas. Gente que procura qualidade e está disposta a pagar pela aguardente mais do que por um bom uísque.
Dentre as chamadas cachaças premium, uma das mais caras é a Anísio Santiago, que até recentemente chamava-se Havana. Produzida em Salinas (MG), ela teve de trocar de nome devido a uma briga judicial. Seu criador, após perder o direito de usar a marca Havana, decidiu dar à cachaça o próprio nome. Hoje, embora a qualidade continue a mesma, a bebida com o rótulo original (Havana) e número de série continua a ser muito procurada, e chega a custar R$ 1 mil. Há outras cachaças finas e caras, como a GRM, de Araguari (MG), cuja dose no sofisticado Hotel Fasano, em São Paulo, custa R$ 25.
De acordo com Maria José Miranda, diretora da Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe), essas cachaças finas vivem um momento importante, devido ao trabalho de mudança de imagem pelo qual estão passando. "Se as classes AA, A e B demonstram interesse pela bebida, os pontos de consumo vão também buscar variedades para atender a esses novos consumidores", explica.
Segundo ela, estão sendo desenvolvidos nichos para a cachaça envelhecida, com batidas prontas e bebidas ice.
Essa diversificação está levando a uma melhor distribuição do consumo entre todas as classes sociais e faixas etárias, agregando valor ao produto e proporcionando uma melhoria da imagem de todo o setor. A cachaça está se beneficiando também do momento de renovação pelo qual passa o mercado mundial de destilados, em que pesa a favor da pinga brasileira o término do boom da tequila e da margarita.
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