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ONGs: não é fácil separar joio de trigo
Sociedade debate transparência e controle das organizações não-governamentais
CARLOS JULIANO BARROS
Creche mantida por ONG em Pernambuco
Em novembro do ano passado, após analisar 28 convênios firmados entre o governo federal e dez organizações não-governamentais (ONGs), o Tribunal de Contas da União (TCU) divulgou um relatório que se tornou manchete dos principais jornais do país: mais da metade dos R$ 150 milhões desembolsados pelo Estado destinou-se a entidades incapazes de executar os serviços contratados, como a prestação de assistência médica a populações indígenas.
Ainda naquele mês, o senador Heráclito Fortes (PFL/PI) chegou a reunir assinaturas de colegas que apoiavam a instalação de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) para investigar supostas irregularidades nos contratos feitos entre algumas ONGs e o poder público. Adiada para 2007, a idéia tomou corpo depois do envolvimento de Jorge Lorenzetti no escândalo da compra de um dossiê, às vésperas da eleição. Ele era colaborador da Unitrabalho, organização que recebeu cerca de R$ 18,5 milhões para, entre outras coisas, capacitar jovens atendidos pelo Programa Primeiro Emprego.
Para fechar o ano, na primeira quinzena de dezembro, a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo apontou desvio de dinheiro público por parte de ONGs encarregadas da gestão de 16 presídios. Até uma funcionária ligada ao Primeiro Comando da Capital (PCC) teria sido contratada para facilitar a vida dos detentos em uma das cadeias.
A avalanche de denúncias que vieram à tona no apagar das luzes de 2006 abalou de forma generalizada – e até injusta – a reputação de milhares de ONGs brasileiras, e provocou discursos inflamados de políticos que defendiam um controle mais rigoroso da atuação dessas entidades. "Vejo com bons olhos essa crise, porque é uma oportunidade de separar o joio do trigo. É importante que se faça uma fiscalização, pois isso vai beneficiar aquelas que fazem um trabalho sério, que não usam recursos públicos para fins privados, e que não estão fazendo convênios fraudulentos", afirma João Sucupira, coordenador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), fundado no início da década de 1980 pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho.
Assim como o Ibase, outras entidades representativas da chamada sociedade civil organizada defendem o aprimoramento da legislação que regula a atuação das ONGs no Brasil. Alguns projetos até já circularam pelo Congresso, mas o assunto está longe de ser esgotado. "É claro que há instituições que desviam recursos, mas é preciso lembrar que algumas empresas também fazem isso, assim como o próprio governo – e, para coibir essas irregularidades, existem leis. No entanto, o que se vê no debate sobre marco legal é um desejo de controlá-las. Defendemos o máximo de transparência e temos muito que avançar nessa direção, mas mecanismos de controle ferem o preceito constitucional da liberdade de associação. E muitas propostas na Câmara atacam esse direito", alerta Antonio Eleilson Leite, diretor da regional paulista da Associação Brasileira de ONGs (Abong).
Para começo de conversa, qualquer proposta de regulação desse setor vai esbarrar em uma pergunta espinhosa: afinal de contas, o que é exatamente uma ONG? Juridicamente, o termo não existe, o que torna o questionamento ainda mais complexo. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgada em 2004, apontou a existência de 276 mil fundações privadas e associações sem fins lucrativos (Fasfil) em todo o país. Mas essa categoria não é suficiente para definir o conceito de ONG, já que também engloba federações esportivas e instituições de ensino, por exemplo. Em comum, todas elas têm cinco atributos básicos: não fazem parte do aparelho do Estado, são legalmente constituídas, gerenciam suas próprias atividades, não têm fins lucrativos e se constituem voluntariamente por um grupo determinado de pessoas. De acordo com o estudo, a Santa Casa, a Pontifícia Universidade Católica (PUC), o Instituto Itaú Cultural e o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, para citar nomes conhecidos, são considerados Fasfil.
Não seria acertado, como se vê, chamar todas as Fasfil de ONGs. Mais propriamente, esta sigla designa apenas aquelas que se dedicam à defesa do meio ambiente, à garantia dos direitos básicos do cidadão e à luta por democracia política e social. De 1996 a 2002, período abarcado pela pesquisa feita pelo IBGE e pelo Ipea, o número de entidades que trabalham justamente com esse universo quadruplicou, enquanto a variação das Fasfil como um todo ficou em 163% – saltaram de 105 mil para 276 mil. "Com a democratização do país, os problemas sociais começaram a entrar na agenda dos debates políticos. A sociedade percebeu que precisava dar sua contribuição e passou a se organizar mais", explica Anna Peliano, pesquisadora do Ipea. E é cada vez mais visível a participação de ONGs na formulação e execução de políticas públicas voltadas para áreas como educação e saúde. "Por isso mesmo, elas precisam ser transparentes, sobretudo aquelas que usam dinheiro público. Serviço bem prestado pressupõe boa qualidade e transparência", conclui Anna.
Histórico
Instituições preocupadas em atender os direitos básicos dos seres humanos existem há tempos imemoriais. "A Igreja e as religiões em geral sempre foram fomentadoras dessa consciência, da idéia de ajudar o próximo", afirma Simone de Castro Tavares Coelho, autora do livro Terceiro Setor, da Editora Senac. Já as primeiras referências ao termo ONG remetem ao fim da 2ª Guerra Mundial. "Ele aparece na Organização das Nações Unidas (ONU) para definir organizações espontâneas da sociedade civil que tratavam de assuntos de interesse público", explica Paulo Haus Martins, advogado da Rede de Informações para o Terceiro Setor (Rits).
No Brasil, a gênese das ONGs se confunde com o recente capítulo de redemocratização do país, a partir dos anos 1980. Elas passaram a funcionar como um novo canal de diálogo entre o Estado e a sociedade civil, que antes só se manifestava por meio de movimentos sociais e de partidos. "Com a abertura política, houve a possibilidade de fazer parcerias. E essa relação obrigou os movimentos a se institucionalizar. Muitos deles se transformaram em ONGs", conta Simone Coelho.
Na década seguinte, com os fantasmas da ditadura devidamente exorcizados, ocorreu um boom no surgimento de associações civis e fundações privadas por todo o país. Fonte de inspiração importante foi a realização da Eco 92 no Rio de Janeiro, conferência que reuniu dirigentes de nações do mundo inteiro, além de ONGs de peso, a fim de debater medidas para promover o desenvolvimento sustentável do planeta. Com a eleição de Fernando Henrique Cardoso e o processo de abertura para o mercado e de reforma do Estado brasileiro, essas instituições encontraram um ambiente propício para se desenvolver.
Logo no primeiro ano de gestão, a então primeira-dama, Ruth Cardoso, capitaneou a criação do programa Comunidade Solidária, que mobilizou entidades da sociedade civil para tentar sanar problemas crônicos do país por meio de ações que não se limitassem ao mero assistencialismo. É nessa época que surgem projetos que se mantêm atuantes até hoje, como o Alfabetização Solidária.
Uma das críticas mais comuns à proliferação das ONGs diz respeito à desobrigação do poder público para com a área social, ao transferir suas responsabilidades para a sociedade civil. Mas, na opinião de Anna Peliano, a crítica não procede. "De 1995 a 2005, período em que houve uma explosão de crescimento do terceiro setor, o orçamento social no âmbito do governo federal aumentou 72%. Portanto, trata-se de um movimento conjunto", avalia.
Mudanças na legislação também reestruturaram esse setor, ao longo dos dois mandatos de Fernando Henrique. A Lei do Voluntariado, de 1998, estabeleceu uma nova relação de trabalho ao criar o "Termo de Adesão", que disciplina a prestação de serviços sociais sem remuneração. "A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) era muito perversa com as ONGs. Qualquer voluntário que deixasse uma entidade e acionasse a Justiça contra ela, reivindicando direitos não quitados, acabava ganhando", explica Simone Coelho. No ano seguinte, foi promulgada a lei que criava a figura da organização da sociedade civil de interesse público (Oscip). Na verdade, trata-se de um título concedido pelo Ministério da Justiça a ONGs cujo estatuto explicite essa vocação para o "interesse público". Com esse status, ao contrário do que acontece em uma associação civil comum, seus dirigentes podem ser remunerados. "A figura da Oscip surgiu também para profissionalizar as ONGs e diluir o caráter assistencialista", afirma Mauricio Mirra, coordenador do núcleo de planejamento de projetos do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social.
Outro fenômeno bastante significativo a que se assistiu na última década foi o incremento das ações sociais promovidas por empresas. A segunda edição da pesquisa "A iniciativa privada e o espírito público" – feita pelo Ipea e lançada no ano passado com dados relativos a 2004 – mostra que quase 70% delas desenvolvem algum tipo de atividade desse tipo. "Quando se analisa o conjunto das empresas no Brasil, em que a grande maioria é de micro e pequeno porte, verifica-se que predominam ações na área de alimentação e assistência, ou seja, o atendimento a demandas emergenciais de comunidades vizinhas. Já quando se observam as grandes, nota-se o crescimento da participação em ações de educação", destaca Anna Peliano. Na opinião de Eduardo Pannunzio, advogado do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), que reúne as maiores corporações que investem na área social no país, "esse é o padrão da evolução do investimento social privado. Em geral, quando uma empresa começa a investir socialmente, ela atua de forma local e assistencialista. Depois, chega uma fase em que se profissionaliza, e passa a trabalhar mais com causas e menos com sintomas dos problemas sociais, associando-se a políticas públicas na área".
A pesquisa do Ipea traz ainda duas informações curiosas. A primeira é que algumas empresas ainda temem divulgar suas ações sociais por receio de estimular a procura por aqueles que precisam de auxílio. "Essa mentalidade, no entanto, está mudando. Elas estão percebendo que isso pode ser um diferencial de marca", explica Anna. Além disso, quando se compara a primeira – com dados do ano 2000 – com a segunda edição do estudo, nota-se uma redução do volume de recursos empregados na área social, de R$ 6,9 bilhões para R$ 4,7 bilhões. Porém, isso se deve mais à retração econômica do país do que a um esfriamento do espírito público dos empresários. "Quando se pergunta que fatores os levariam a atuar mais, um dos primeiros itens levantados é justamente o crescimento econômico", acrescenta Anna.
Transparência
Por que acusações de desvio de dinheiro envolvendo ONGs aparecem com freqüência no noticiário? O que poderia ser feito para combater as irregularidades? De acordo com Pannunzio, essas organizações lidam com uma legislação "esquizofrênica". Se por um lado existem instrumentos avançados, como as Oscips, por outro ainda há brechas que podem ser um verdadeiro convite à corrupção. É o caso dos chamados convênios.
"Eles são pouco transparentes e permitem pouca divulgação. Há uma doutrina pacífica na legislação brasileira segundo a qual, nesse caso, não é preciso fazer licitação ou qualquer tipo de seleção pública. Quem faz convênio, em geral, tem proximidade com o gestor público", explica Pannunzio. Além disso, a prestação de contas se resume a um balanço contábil apresentado ao final das atividades. Isso quer dizer que basta reunir um monte de notas fiscais para comprovar os gastos. "Se o projeto aconteceu, se o público-alvo foi atingido, se os resultados foram alcançados, a administração pública pouco se preocupa", critica.
Com a lei das Oscips, surgiu uma alternativa concreta aos convênios para as entidades que obtenham esse título no Ministério da Justiça (MJ): o termo de parceria. Além de simplificar a burocracia para o estabelecimento da relação entre uma ONG e o Estado, ele também permite um acompanhamento mais criterioso dos serviços prestados pela Oscip contratada. Isso porque ela é obrigada a fazer relatórios periódicos de suas ações a uma comissão avaliadora e a detalhar o orçamento necessário para a realização de seu trabalho. Para sair do papel, o termo de parceria necessita ainda da aprovação de um conselho especializado no debate de políticas públicas.
Mesmo com todas essas vantagens, o número de termos de parceria atualmente em vigor não chega a uma dezena, embora haja cerca de 4 mil entidades qualificadas como Oscip em todo o país. Uma das explicações para essa discrepância é justamente a força do hábito dos convênios, arraigado na máquina pública. "Trata-se de um instrumento muito conveniente para o Estado, que pode escolher com quem se relacionar", observa Pannunzio. Segundo José Eduardo Romão, diretor do Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação do Ministério da Justiça, ampliar o uso dos termos de parceria pode ser uma boa saída para contornar as limitações impostas pelos convênios.
O governo também vem tomando outras medidas para garantir o bom uso de recursos públicos pelas ONGs. Até abril, todas as Oscips e instituições que possuam o título de utilidade pública, a exemplo dos centros de saúde comunitários e de assistência social, deverão fazer parte do Cadastro Nacional de Entidades Qualificadas pelo Ministério da Justiça (CNEs/MJ), em que tornarão pública a prestação de contas de suas atividades. A lista já está disponível na página do ministério na internet. "Isso vai viabilizar a fiscalização por parte do Tribunal de Contas da União (TCU) e da Receita Federal, além da própria sociedade civil", diz Romão. Quem não cumprir essa exigência será descredenciado e, com isso, não mais poderá receber recursos por meio de emendas parlamentares, por exemplo.
Existe ainda outra ferramenta, assimilada da iniciativa privada, para dar mais transparência ao trabalho das ONGs: o balanço social. O Ibase é um dos pioneiros na divulgação, e há três anos publica em seu site e em outros veículos de comunicação uma declaração de todas as suas fontes financeiras e do que foi feito com o dinheiro. "Não basta ficar só defendendo causas, é preciso mostrar a cara. Acho que as entidades sem fins lucrativos deveriam ser obrigadas a publicar seu balanço social de uma forma determinada", defende Sucupira.
Independência
Dentre os desafios enfrentados por aqueles que trabalham em uma ONG, captar recursos para viabilizar suas atividades é um dos maiores, senão o maior. Na opinião de Paulo Haus Martins, mudanças feitas na legislação tributária na gestão de Fernando Henrique engessaram uma das fontes de financiamento mais significativas para as entidades do terceiro setor: a contribuição de pessoas físicas. "No Brasil, são elas que doam, basta ver as igrejas. Como entramos num período de desincentivo a essa prática, grande parte das ONGs tornaram-se na realidade ODGs, organizações dependentes do governo, já que precisam loucamente dos recursos que recebem do Estado por convênios", afirma. Hoje, apenas pessoas jurídicas que declaram seu IR com base em lucro real – instrumento usado pelas grandes corporações, que correspondem a menos de 3% do total de empresas no país – têm o direito de deduzir de seu imposto as contribuições repassadas a Oscips e instituições com certificado de utilidade pública federal.
Para Martins, uma base expressiva de doadores constituída por pessoas físicas também pode garantir autonomia às ONGs. "É por isso que o Greenpeace enfrenta governos e empresas no mundo inteiro", justifica. Entretanto, como nem todas as instituições têm o apelo e a estrutura de um Greenpeace para atrair simpatizantes planeta afora, diversificar as fontes de financiamento torna-se a chave para driblar os problemas financeiros. E aí também entra o dinheiro do Estado. "O problema não está na origem dos recursos, mas no que se faz com eles. Criou-se uma mentalidade de que as ONGs não podem utilizar fundos públicos. No entanto, quantas atividades de luta contra o analfabetismo e serviços de saúde são oferecidos por boas entidades no país todo, através de convênios? Se não fossem elas, estaríamos numa situação bem pior", rebate Sucupira.
É difícil acreditar que o crescimento do número de ONGs no Brasil não seja saudável. Afinal, quanto mais organizada, mais democrática é uma sociedade. Qualquer discussão com o intuito de regular esse setor deve dar ênfase à transparência no uso dos recursos destinados a amenizar as mazelas do país. O discurso, porém, não pode ficar apenas no campo da repressão. Há entidades sérias – a maioria, diga-se de passagem –, que necessitam de estímulo e de liberdade para atuar.
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