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O mestre das selvas

Depois de 45 anos em defesa dos índios, Orlando Villas Bôas estuda novos projetos e prepara o filho para continuar sua obra

RODRIGO ARCO E FLEXA

Floresta do Xingu, uma manhã quente na aldeia camaiurá. Centenas de índios agitam-se com a aproximação de um jatinho da Funai. Mais algumas manobras, e o avião desce no pátio da aldeia. A expectativa cresce, até que surge o rosto de Orlando Villas Bôas.
Assim que põe os pés no Xingu, o sertanista é cercado pela multidão. Todos querem ver e tocar Orlando, muitos choram. "Meu pai, meu pai", exclama o cacique Kanato, para logo em seguida trocar um abraço emocionado com Villas Bôas. Orlando pisa novamente na aldeia, depois de 15 anos afastado. Sua volta tem uma razão especial: ele vai participar de uma cerimônia do Quarup em homenagem a seu irmão Cláudio, morto há poucos meses.
Essa cena aconteceu em julho do ano passado. A emoção dos índios era natural. Os mais velhos, como Kanato, conheciam os irmãos Villas Bôas desde a década de 1940. Orlando, Cláudio e Leonardo (que morreu em 1961) são protagonistas de uma saga de 45 anos pelo Brasil central. Líderes da expedição Roncador-Xingu, eles travaram o primeiro contato com dezenas de tribos indígenas, empreitada que resultou na criação do Parque Nacional do Xingu - área de mais de 3 milhões de hectares onde vivem atualmente cerca de 4 mil índios de 16 diferentes etnias.
Mistura de mito com realidade, tantos são os seus contornos épicos, essa história será agora transformada em filme. O projeto, um antigo sonho de Orlando, foi assumido pela produtora de cinema Beta Filmes.
Trata-se de um documentário sobre a trajetória dos irmãos Villas Bôas. As filmagens foram iniciadas em abril de 1998 e devem ser concluídas ainda no primeiro semestre deste ano. Entre as imagens já produzidas, estão as cenas do ritual do Quarup (além de Cláudio, o cerimonial homenageou outro irmão de Orlando, Álvaro, morto em 1996, assim como o índio Mariká, um antigo amigo dos Villas Bôas). Também foi gravado um depoimento exclusivo de Orlando com mais de 20 horas.
"A produtora quer me levar agora para a região onde começou a expedição Roncador-Xingu", conta Orlando. Ainda serão entrevistadas pessoas que testemunharam o desenrolar da saga, como os sertanejos que participaram da expedição e agora vivem em algumas das mais de três dezenas de cidades e centenas de vilas que nasceram ao longo das trilhas abertas pelos Villas Bôas.
Aos 85 anos (completados em 12 de janeiro), Orlando está empolgado com o projeto. "O Brasil é um país sem história", diz ele, lembrando a oportunidade que o filme trará aos mais jovens de conhecerem a sua aventura. "Nós tivemos a oportunidade de atravessar os limites do Brasil civilizado. Entramos em contato com o índio em estado de cultura pura, o que era uma incógnita naquele tempo", conta.
A expedição dos irmãos Villas Bôas serviu para desfazer mitos. "Pensava-se que o indígena era um bicho que andava pela mata destruindo tudo. Mostramos como a sua sociedade é organizada. O índio pode nos ensinar muito", afirma Orlando. "Moramos 45 anos na mata, mas nunca vi um índio dar um tapa em outro."
Brasil desconhecido
A expedição Roncador-Xingu foi promovida pelo governo Getúlio Vargas, no início dos anos 40, com o objetivo de desbravar as regiões desconhecidas do Brasil central e da Amazônia. "Nessa época, Uberlândia era conhecida como a boca do sertão. Do Araguaia em diante, só existia o Brasil desconhecido", lembra.
Sonhando com terras distantes, enquanto atravessavam noites debruçados sobre mapas, Orlando, Cláudio e Leonardo fizeram de tudo para entrar na expedição. Acabaram líderes do grupo, um punhado de sertanejos e garimpeiros.
"Eles eram considerados os homens sem lei do Brasil central", conta. "Alguns já tinham matado mais de 20 vezes." A missão do grupo era penetrar no interior do país, limpando o terreno. "Limpar o caminho significava enfrentar os índios a tiro." Mas os Villas Bôas pensavam diferente.
"O nosso grande feito foi convencer aqueles homens de que nós é que éramos os invasores da terra do índio", conta. "Toda noite a gente se reunia em volta da fogueira e ficava contando história para os sertanejos. Eram histórias para doutrinar, despertar um sentimento de respeito e de ética. O que não sabíamos é que eles já tinham isso incutido. O garimpeiro que matava fazia isso por causa das contingências do meio dele, onde um sujeito elimina o outro porque suas almas não se dão bem."
Orlando e Cláudio ficaram no Xingu até meados da década de 1980. Sua maior criação, o Parque do Xingu, constituído em 1961, despertou a atenção do mundo. Cientistas e intelectuais correram à região para conhecer o cotidiano de uma cultura indígena praticamente intocada. Nomes como o antropólogo Claude Lévi-Strauss e o escritor Aldous Huxley estiveram no parque. Sem falar em personalidades como o rei da Bélgica, além de jornalistas de todos os continentes.
Arte dos pajés
Depois de viver mais de quatro décadas no meio da floresta, em 1984 Orlando voltou para São Paulo. Os filhos precisavam ir para a escola, sem falar que o corpo dava sinais de cansaço. Atualmente, vive num agradável sobrado no Alto da Lapa, repleto de artefatos e recordações do Xingu. Além do documentário, Orlando alimenta outros projetos. O primeiro deles está praticamente concluído. Trata-se do livro A arte dos pajés, que será lançado pela editora Globo no primeiro semestre.
A obra reúne inúmeras histórias da cultura não material dos índios, como os seus rituais e pajelanças. Vivenciadas pelos irmãos Villas Bôas, todas elas transitam pelo terreno do fantástico.
Parte do material foi recuperado por Orlando dos arquivos pessoais de Cláudio, algumas semanas depois de sua morte. "Ele tinha um conhecimento extraordinário da vida espiritual dos índios", lembra Orlando, que teve o apoio dos filhos para a produção do livro. "Eles passam os textos para o computador", diz Villas Bôas, apontando sua inseparável máquina de escrever.
Uma das histórias que Orlando mais gosta de contar, dentre as narrativas de A arte dos pajés, foi vivida na companhia de Cláudio. "Certa vez, ficamos isolados na mata. Não tínhamos nada para caçar nem comer. Foi então que vimos uma mancha marrom a uma distância de 80 metros. Corremos para lá e descobrimos um veado com o casco machucado. Falei para Cláudio que a gente podia matar o animal para comer. Mas ele disse que tinha dó. Resolvemos cuidar do veado, fizemos uma padiola e o levamos até o rio. Demos água e deixamos o animal descansando. Quando voltamos, ele tinha sumido", conta Orlando, criando suspense.
"Não entendemos o que tinha acontecido. Talvez uma onça tivesse matado o veado. O tempo passou, até que cinco meses depois conhecemos um pajé de olhos esbugalhados. Ele nos encarou e disse que os crenacarores (conhecidos como índios gigantes) nunca iriam nos matar. Perguntamos por que, e o pajé nos falou que a criatura cuja vida os brancos haviam poupado não era um veado, mas sim um pajé crenacarore."
Orlando não tem uma explicação racional para o episódio. "Mas como duvidar disso?", indaga. "Para o índio, mito e realidade se confundem numa mesma coisa, o sobrenatural participa de seu cotidiano", diz.
Villas Bôas ainda está preparando mais um livro. Sua idéia é publicar um álbum de fotos sobre crianças indígenas. "Esse livro não terá texto, só legendas para as fotos, que são fantásticas", afirma. Mais do que um registro da infância vivida em meio ao mato, Orlando pretende mostrar com esse trabalho como funciona a sociedade dos povos da floresta. "Para o índio, a criança é a figura mais importante da aldeia", diz. "Ela é uma espécie de dona da tribo, um ser cuja responsabilidade é da Providência. Jamais um pai bate em seu filho", afirma.
Futuro incerto
Projetos não faltam para Orlando. Nos últimos meses, porém, sua saúde tem lhe exigido mais atenção. Em dezembro, ele foi internado por dez dias, vítima de uma anemia causada por uma hemorragia no estômago. O problema acabou afastando-o temporariamente do trabalho. "São coisas de velho", brinca. Em face de tudo o que enfrentou - durante sua vida no Xingu, Orlando sofreu dezenas de vezes de malária, a ponto de perder a conta do mal -, ele mostra uma força incomum.
Villas Bôas recebeu a reportagem de Problemas Brasileiros no início de janeiro, quando ainda se recuperava dos recentes distúrbios de saúde. Embora demonstre empolgação pelos novos trabalhos, fala com dor sobre o progressivo desaparecimento da cultura indígena. "Os índios, dentro da sua sociedade e dos seus valores, vivem fantasticamente bem. Mas em contato com o mundo exterior são submetidos ao tacão das condições econômicas. O resultado disso é que o índio começa a passar fome e sofrer", afirma.
Orlando sabe, no entanto, que posturas paternalistas não são a solução. "Se o índio não quiser, ninguém pode obrigá-lo a permanecer dentro das suas reservas. Toda criatura tem o direito de escolher o seu destino, mesmo que nós saibamos que esse caminho leve ao seu fim."
Ainda assim, Orlando alimenta alguma esperança ao notar a postura de algumas das novas lideranças indígenas. Como exemplo, ele fala de Aritana. "Cuidei dele quando criança, ensinando o respeito às tradições. Ao mesmo tempo, ele estudou, sabe ler, escrever e se comunicar, o que é muito importante na luta pela preservação da sua cultura", diz.
O sucessor
Orlando também acredita num trabalho solidário, que envolva índios e brancos conscientes. Embora não exerça pressão, ele garante que dará todo o apoio possível caso seus filhos decidam continuar a grande missão que começou.
Essa possibilidade amadureceu durante o Quarup do ano passado, quando os índios do Xingu apontaram seu filho Noel (cujo nome homenageia o médico Noel Nutels, que trabalhou anos com Orlando no Xingu) como seu sucessor. "Ele é muito parecido comigo. Os índios me viram nele, como se fosse eu no tempo em que cheguei ao Xingu", conta Orlando.
Estudante de filosofia e lingüística, Noel é um admirador do mundo indígena. Com 23 anos, no entanto, ele ainda não tem certeza da escolha. Uma escolha da qual não teria mais volta. Caso decida assumir a tarefa, Orlando gostaria que ele tivesse o apoio do outro filho, Villas Bôas Filho, o Vilinha, 27 anos, que é formado em direito. "Um poderia ajudar o outro." Da mesma maneira, eles poderiam trabalhar com as novas lideranças indígenas do Xingu, como Aritana.
Orlando apenas acompanha com atenção o movimento dos filhos. É como a serenidade do velho pajé, que medita sobre o destino de sua aldeia.
Sua tranqüilidade, no entanto, não significa uma atitude passiva diante dos acontecimentos. Orlando é também o guerreiro que jamais se cala na defesa dos povos da floresta. Para ele, nunca é demais repetir: "Se houve um povo injustiçado no Brasil, foi o indígena. Os índios nos deram um continente para que o transformássemos numa nação. Esta é uma dívida do Brasil para com os índios, uma dívida que não foi paga".

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