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A cor da pobreza
Marcas profundas de racismo e discriminação precisam ser combatidas se o Brasil quiser superar suas desigualdades
IMMACULADA LOPEZ
Há cento e dez anos o Brasil abolia a escravatura. Mas mesmo depois de mais de um século de liberdade ainda é muito difícil para o negro alcançar condições mínimas de cidadania. Não é uma afirmação gratuita. O último censo demográfico do IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), de 1991, analisado sob o ponto de vista racial, demonstra: entre os brancos que nesse ano tinham mais de 15 anos, 12% eram analfabetos. Entre os negros e pardos, esse índice subia para 22%. Mais: apenas 13% dos negros e 14% dos pardos tinham mais de sete anos de estudo. O percentual dos brancos com essa escolaridade atingia 29%, enquanto os amarelos alcançavam 52%. Dados mais sinistros, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada também pelo IBGE, referem-se à mortalidade infantil: em 1996, em cada grupo de mil crianças negras ou pardas, 62 não sobreviviam. Entre as brancas, as mortes atingiam um número bem menor, embora ainda assustador: 37.
Segundo Hélio Santos, coordenador do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) para Valorização da População Negra, de Brasília, a pobreza brasileira tem cor. Há um "abismo entre dois brasis - um de ponta e outro miserável -, que vai continuar se não tocarmos na questão racial". Santos, juntamente com outras lideranças do movimento negro e membros de organismos governamentais, clama por políticas públicas específicas para garantir a cidadania de negros e seus descendentes. "O objetivo não é beneficiar a população negra, mas garantir a igualdade de oportunidades a todos", afirma. Pois sem enfrentar o racismo e a discriminação, explica Santos, o Brasil não vai superar suas desigualdades.
"Não basta afirmar que o Brasil é injusto, desigual, sem considerar a dimensão étnico-racial de sua exclusão social", diz a historiadora Wania SantíAnna, pesquisadora da Fase (Fundação de îrgãos para Assistência Social e Educacional), no Rio de Janeiro. Um grande problema, na sua opinião, é ainda não haver um diagnóstico abrangente da questão. "O próprio Estado, na figura do IBGE, por exemplo, resiste a levantar indicadores sociais com segmentação racial." A historiadora explica que as pesquisas costumavam olhar a realidade dividindo-a entre urbana e rural. Num momento seguinte, foram admitidas as diferenças regionais. Apenas um ou outro levantamento isolado confirma o peso da condição étnico-racial. Em paralelo, alguns pesquisadores tentam fazer eles próprios um corte racial dos dados já existentes. "Agora precisamos ir além, detectar outras diferenças e fazer intervenções específicas."
"O Brasil se permite ignorar a população negra", diz Edna Roland, presidente da Fala Preta - Organização de Mulheres Negras, que desenvolve projetos principalmente na área de saúde. "Não temos, por exemplo, dados sistemáticos sobre as razões de morte e doença dos diferentes grupos da população." O quesito cor só foi incluído na declaração de nascimento e de óbito em 1997, e os primeiros dados ainda não foram processados. "Seria essencial que o quesito também fosse incluído nos prontuários médicos. Pois só podemos combater os problemas se os conhecermos."
Pergunta difícil
Qual é sua origem? Incluída nas primeiras provas piloto do Censo 2000, realizadas no ano passado pelo IBGE, essa é uma pergunta que se revelou difícil para os brasileiros, que em boa parte não reconhecem claramente sua origem étnico-racial. Até o último levantamento do IBGE, apenas se perguntava: "Qual a sua cor?" As opções: branca, preta, parda, amarela ou indígena. Na tentativa de completar o perfil étnico-racial do país, técnicos da instituição e representantes do governo e do movimento negro estão discutindo mudanças no questionário.
A decisão ainda não foi tomada, e as opiniões certamente se dividem. "Seria muito oportuno incluirmos uma pergunta sobre a origem", defende Dulce Maria Pereira, presidente da Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura. "Dessa forma, somaríamos ao levantamento de cor uma referência histórica", completa Wania Sant'Anna, da Fase, no Rio de Janeiro.
Mas para outros representantes do movimento negro, uma mudança neste momento parece precipitada. "Precisamos de uma metodologia mais bem testada e recenseadores mais preparados para fazer uma mudança", argumenta o sociólogo João Carlos Nogueira, do Núcleo de Estudos Negros (NEN), de Florianópolis. Na sua opinião, o Censo 2000 devia ser aproveitado para lançar uma grande campanha de conscientização: Quem somos nós? Quem é o povo brasileiro? Além de refletir sobre a origem, a idéia é discutir a própria questão racial, muitas vezes assumida de forma contraditória pela sociedade.
Em São Luís do Maranhão, Magno Cruz, do Centro de Cultura Negra, concorda que um trabalho prévio de discussão pode ajudar as pessoas a se olhar de forma diferente. "Numa realidade racista, muitos descendentes se apegam à idéia de embranquecimento. Em 97, depois de uma palestra em que se discutiu a questão racial, fizemos uma pesquisa incluindo o quesito cor. Quase 80% das pessoas admitiram ser negras."
Num terreno tão movediço, em que as pessoas tendem a escamotear sua origem, Hélio Santos, do GTI, também teme que mudanças dificultem ainda mais a definição do perfil nacional. Para ele, os resultados dos testes não são muito convincentes.
Segundo a coordenadora do comitê Censo 2000, a demógrafa Alícia Bercovich, as categorias usadas até agora (branca, preta, parda, amarela e indígena) realmente apresentam limites tênues. "O problema é que ainda não encontramos alternativas melhores." Em relação à pergunta sobre a origem, Alícia concorda que é importante, mas questiona se convém incluí-la no censo ou se seria melhor colocá-la numa pesquisa por amostragem. "Cada nova pergunta tem um custo muito elevado, devemos avaliar se realmente o ganho será compatível", explica.
Autonegação
A dificuldade que o brasileiro sente em identificar a própria cor ou raça revela, na verdade, mais uma face do racismo e da discriminação. "Oficialmente, o Brasil é declarado um país europeu", diz Hélio Santos, "mas não pode continuar negando o componente indígena e negro." Aliás, essa diversidade é até muito valorizada, cantada em prosa e verso, mas nunca reconhecida de fato. E acentua: o país é a segunda maior nação negra do mundo, recebeu 4 milhões de escravos e foi o último a abolir a escravidão.
"Ao olhar para o Brasil negro, não estamos falando de uma minoria", completa o etnólogo Guilherme Barboza Santos, membro da Subcomissão de Prevenção de Discriminações e Proteção das Minorias, da Comissão de Direitos Humanos da ONU. Em sua opinião, a negritude não diz respeito apenas aos negros e seus descendentes, pois todo o complexo cultural brasileiro "tem uma base afro". A conclusão é amarga: "Por isso, nosso racismo é um dos mais sérios do mundo, pois é a negação de si próprio".
Para Dulce Pereira, da Fundação Palmares, a forma como o Brasil lida com a população negra é na verdade a mesma como lida consigo mesmo: desperdiçando a riqueza humana e cultural. "Ao perder a memória negra, o país perde sua própria memória, pois o negro brasileiro é antes de tudo brasileiro."
Barboza é da mesma opinião e afirma que o caminho para o futuro está no "envolvimento". "Precisamos de um projeto de país que reforce as culturas e envolva as diferenças." Mas ele reconhece que assumir e valorizar a pluralidade é um enorme desafio - e não só para o Brasil. "Olhando para o mundo, vemos o preconceito e a discriminação geral contra o negro. E não é uma discriminação social que se dissipa com a conquista de novas condições socioeconômicas. É uma discriminação de cor." De todas as populações que já foram escravizadas na história da humanidade, o negro é o único que continua carregando esse estigma. "O racismo se faz presente até na hora de dimensionar os massacres. Barbaridades como o holocausto judeu foram reconhecidas pelo mundo como crimes contra a humanidade, o que nunca aconteceu em relação ao tráfico de escravos africanos."
Recontar a história, ou talvez contá-la pela primeira vez, revela-se essencial para a construção de um novo olhar. "Afinal, a história cria identidades", garante a pesquisadora Célia de Azevedo, do Departamento de História da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Ela conta que, nas décadas de 30 e 40, os historiadores brasileiros aceitaram a ilusão do paraíso racial, onde a casa- grande e a senzala teriam vivido em harmonia. Na década de 70, o mito foi desfeito e os estudiosos revelaram uma escravidão violenta - mas se ativeram à idéia de submissão e incapacidade histórica dos negros de reagir. A partir dos anos 80, um novo pensamento contestou a passividade do escravo, recuperando os episódios de ação e resistência. Mas, segundo Célia, ainda estamos no começo. "Muita coisa não foi contada. Parece que os negros sumiram da nossa história depois da abolição." Uma negação que foi adotada por brancos e negros. "A criança branca aprende que o imigrante foi corajoso, se integrou e ajudou a construir o país. Assim, ela sente que tem um lugar nesse mundo. É o contrário do que acontece com a criança negra. Não se trata, portanto, de um novo olhar do branco sobre o negro, mas também do negro sobre si mesmo", diz Célia.
Seis leões
"Historicamente, o negro escutou que é feio, sujo, incapaz, inferior. Claro que sua auto-estima ficou abalada", diz a psicóloga Ana Maria Silva, do grupo Amma - Psique e Negritude. Muitos valores negros foram negados, e negar a própria origem causa conflitos e sofrimento. "Ao entrar na escola, a criança não encontra nenhum herói negro, o desenvolvimento do país nunca é atribuído a essa parte da população, a única identificação do povo é com a dor e a servidão." Segundo a psicóloga, essa ausência de referências positivas certamente causa um impacto emocional negativo. A auto-estima fica rebaixada: a pessoa parece não ter direito a êxito na vida. Os poucos negros que pertencem à classe média impõem a si mesmos uma exigência absurda. "O visual deve estar impecável. Profissionalmente, em vez de dois leões por dia, deve matar seis. Enfrentar o racismo dessa forma causa um grande desgaste psicológico."
A solução, diz Ana Maria, é um novo caminho: conhecer as próprias potencialidades mas também os limites, e a partir daí reagir, colocando o outro diante de suas limitações. "Os não-negros que discriminam precisam rever sua dificuldade em lidar com a diferença, pois a desvalorização e negação do negro é também a negação do brasileiro. Portanto, a busca de auto-estima do negro é também do brasileiro por si mesmo."
Na opinião de pesquisadores e militantes, um tema tão importante para a identidade do país exige que o alcance do debate seja urgentemente ampliado. "A questão racial não pode ser mais um assunto só dos negros. Todos os que pensam o Brasil devem pensar no assunto", diz Nogueira, do NEN, em Florianópolis.
Em alguns setores da sociedade, esse posicionamento revela-se crucial. "Se o Brasil continuar excluindo a população negra, vai perder capacidade de consumo, potencial produtivo e econômico", diz Dulce Pereira, da Fundação Palmares. Em sua opinião, a importância econômica da população negra foi desprezada durante muito tempo. A recente "descoberta" do consumidor negro comprova esse descaso.
O reconhecimento das preferências e necessidades de consumo dessa população é visto, sem dúvida, como uma conquista do movimento negro. Mas não faltam ressalvas. "Em primeiro lugar, é bom dizer que o negro sempre consumiu", diz Hélio Santos, do GTI. Demanda e consumo sempre houve, embora ficassem invisíveis.
Além disso, o reconhecimento de uma classe média negra não indica que o racismo brasileiro tornou-se mais brando, lembra Luiza Helena de Bairros, pesquisadora do Centro de Recursos Humanos da Universidade Federal da Bahia, em Salvador. "Pelo contrário", reforça Hélio Santos, "com a conquista de poder aquisitivo, a discriminação se evidencia", manifestando-se mais claramente quando o negro começa a morar em condomínios fechados, a freqüentar clubes, melhores hotéis e restaurantes etc. "Não queremos só isso", diz a historiadora Maria Aparecida da Silva, do Geledés - Instituto da Mulher Negra, em São Paulo. "Mais que consumidores, devemos ser reconhecidos como cidadãos", afirma ela.
Normalidade racista
No Brasil, segundo Dulce Pereira, a normalidade praticamente exclui o negro de vários espaços sociais. Parece normal ver apenas uma família negra almoçando em um shopping center da capital. Ou apenas dois ou três alunos negros estudando em um colégio renomado. Ou ainda o fato de não haver nenhum diretor negro na empresa.
Muito mais que uma atitude pessoal, a discriminação aparece como um traço marcante das instituições, especialmente o Estado. "O Estado brasileiro assumiu o racismo como estratégia para manter a divisão de poder", avalia a presidente da Fundação Palmares. Décadas atrás, o sistema eleitoral e a política imigrantista foram exemplos de mecanismos governamentais de exclusão da população negra. Um exemplo ainda vigente, segundo Dulce Pereira, é a lei agrária, que continua a desfavorecer as comunidades rurais negras.
E o que faz até agora o governo brasileiro para mudar essa realidade? Nogueira, do NEN, arrisca uma resposta: "O atual governo avançou ao assumir o racismo e criar o GTI, mas ainda não concretizou nenhuma mudança". Para Hélio Santos, o mérito do atual governo é manter-se aberto à discussão. É muito pouco, mas mostra que o tema ganhou visibilidade e entrou na agenda nacional, embora o ritmo das ações deixe muito a desejar. "O próximo passo é avançar nas políticas específicas, sobretudo na capacitação profissional e inserção dos negros no mercado de trabalho."
A lista de propostas do GTI inclui iniciativas na área de educação, trabalho, saúde e comunicação que vão da criação de cursos noturnos nas escolas e do desenvolvimento de novo material didático à visibilidade positiva dos negros nos meios de comunicação e sua presença obrigatória na publicidade oficial. Apesar dessas várias propostas, a única experiência bem-sucedida no país até o momento, segundo Wania, não partiu do governo: são os cursinhos pré-vestibulares comunitários (ver texto abaixo).
O engenheiro Magno Cruz, militante do Centro de Cultura Negra do Maranhão, enumera outras necessidades específicas dessa parcela da população. Num estado onde a maioria dos negros mora no campo ou na periferia das cidades, três são as áreas prioritárias para políticas públicas: educação, segurança e terra.
Terras de preto
A escola, diz o engenheiro, é a chave para novas oportunidades de vida e construção de auto-estima da população negra. A segurança merece especial atenção, pois a população negra, mais do que qualquer outra, é repetidamente agredida e desrespeitada pela própria força policial das cidades. Finalmente deve ser considerada a questão fundiária, pois as mais de 400 comunidades remanescentes de quilombos do estado, no Maranhão chamadas de terras de preto, continuam sujeitas a um ritmo lentíssimo de demarcação e titulação (direito reconhecido pela Constituição Federal). E quando finalmente isso acontece, não se respeitam as particularidades das comunidades.
Os exemplos do Maranhão podem ser estendidos a outras regiões. Na área da saúde, a preocupação mais gritante é a anemia falciforme, uma alteração provocada nos glóbulos vermelhos do sangue (ver texto abaixo). As entidades do movimento negro aplaudem a iniciativa do governo federal em reconhecer o problema e ter chamado especialistas para participar da elaboração do Programa de Anemia Falciforme, em 1996. Mas ele ainda não foi formalizado e não tem previsão orçamentária própria. "Certamente, uma das razões é o contexto estrutural: é difícil criar uma ilha que funcione no mar de desorganização da nossa saúde pública", aponta Edna Roland, da Fala Preta, em São Paulo.
Além da anemia falciforme, chamam a atenção as doenças com componente genético que se manifestam mais intensamente entre os negros, como a hipertensão ou diabete. Sem falar das doenças agravadas pelas condições socioeconômicas, bastante desfavoráveis para a grande maioria da população negra. Especialistas e governo concordam, porém, que não é o caso de criar um programa especial para essa parcela da população em relação a cada doença. A saída é considerar as características étnico-raciais, comportamentais e culturais no momento de diagnosticar ou tratar qualquer doença, bem como nos programas de prevenção.
"A população negra deve saber quais as doenças a que está mais sujeita, quais são os riscos e o que fazer para evitar os problemas", diz Amaro Luiz Alves, representante do Ministério da Saúde no Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra. Ele reconhece, porém, que esses avanços não estão ocorrendo. A razão é clara: apesar da urgência, o debate da questão racial ainda não é tratado como prioridade no país.
Cursinho fura o cerco
Ir mal na escola, não entrar na universidade, ficar de fora do mercado de trabalho, ver o filho com dificuldades de aprendizagem... Para romper esse círculo vicioso, estão se multiplicando no país cursinhos pré-vestibulares para negros e carentes. O primeiro surgiu na Baixada Fluminense em 1992, inspirado em um projeto de Salvador (Bahia) criado no ano anterior. Hoje, já são mais de 200 núcleos espalhados pelos estados do Rio de Janeiro, Bahia, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Maranhão e Mato Grosso, entre outros.
Instalados em diferentes espaços, como sindicatos, igrejas, terreiros ou escolas de samba, e contando com o trabalho de professores voluntários, os cursinhos acolhem mais de 12 mil alunos por ano. Pagando apenas o preço de custo e assistindo a aulas intensivas aos sábados ou à noite, mais de 1,5 mil já conseguiram entrar na faculdade. "Nosso primeiro objetivo são as universidades públicas", diz frei David Santos, que coordena o projeto. "Como segunda opção, buscamos bolsas de estudos em cursos particulares."
Apesar das dificuldades, o projeto tem dado certo, graças à dedicação dos professores voluntários - que há tempo estavam angustiados com a realidade brasileira e agora encontraram a chance de fazer algo de concreto - e à inovação do conteúdo das aulas. A disciplina Cidadania, por exemplo, discute questões como raça e violência, levantando o tema da auto-estima. Outro motivo de êxito, segundo o coordenador, é o estímulo provocado por cada um que entra na universidade. "Ao voltar para o bairro, os jovens universitários causam muita alegria."
A sombra da foice
Doença genética mais comum no país, a anemia falciforme continua rodeada de muita desinformação e inércia. Ela é causada por uma alteração nos glóbulos sangüíneos vermelhos que, em vez de apresentarem a forma normal, redonda, ganham o formato de foice. Isso faz com que se aglomerem, obstruindo os vasos, dificultando a circulação sangüínea e provocando crises de dor. A anemia ocorre pela destruição precoce desses glóbulos, o que exige, em compensação, um aumento do esforço cardíaco. O baço, que filtra o sangue, também é afetado, favorecendo infecções. Outras complicações comuns são as renais, cardíacas, ósseas, além dos acidentes vasculares cerebrais. Essas manifestações clínicas variam de pessoa para pessoa, e sua evolução depende das condições socioeconômicas e da qualidade de vida do paciente.
A doença afeta especialmente a população negra, e a estimativa oficial é de 8 mil doentes e 2 milhões de portadores do traço falcêmico (uma característica genética que, quando é simples, não provoca a doença, mas pode ser transmitida de pai para filho). As entidades do movimento negro, porém, chegam a apontar 50 mil doentes e 10 milhões de portadores. Segundo o Ministério da Saúde, estima-se que 80% dos doentes morrem antes dos 30 anos de idade e que 85% das mortes por anemia falciforme não são registradas como tal.
Desconhecida por quase toda a população e pelos próprios profissionais de saúde, a doença ainda não conseguiu mobilizar a atenção das autoridades. Apesar de já em 1996 o governo federal ter anunciado o Programa de Anemia Falciforme, ele ainda não foi formalizado e não tem previsão orçamentária própria.
"A medida mais urgente é o diagnóstico precoce da doença, que pode se manifestar a partir dos seis meses de idade", explica a médica Sara Saad, coordenadora do Comitê Assessor de Hemoglobinopatias, do Ministério da Saúde. Segundo a especialista, as complicações mais graves podem ser fatais, mas são estáveis. E, quanto mais precoce o diagnóstico, maior a chance de prevenção.
Volta às origens
Ilê Aiyê significa "casa dos vivos", na língua iorubá. Nesse "terreiro do nosso mundo", a cultura negra ganha vida constante. Há 25 anos, o Ilê surgiu em Salvador, em pleno bairro da Liberdade, onde ainda hoje a maioria dos moradores é negra. "Nascemos como associação carnavalesca e já no segundo ano colocamos na rua a temática africana", conta Jonatas da Conceição, diretor do grupo. "Desde então, temos recontado uma história que sempre foi omitida ou distorcida. Lembramos a Revolta dos Búzios, o Quilombo dos Palmares... trazendo esse mundo para a realidade do negro baiano."
O trabalho com a cultura afro-brasileira veio se firmando também em outros momentos do ano, como a Festa da Beleza Negra e a Semana da Mãe Preta. A partir de 95, toda a produção cultural foi reunida no Projeto de Extensão Pedagógica e começou a ser trabalhada com os professores das escolas públicas do bairro e do próprio Ilê. Graças ao projeto, o Ilê leva esse conhecimento aos professores através de cursos de reciclagem, que, segundo Jonatas, já estão mostrando mudanças de postura. "Eles já perderam o medo, por exemplo, de conhecer as religiões de origem africana e identificar-se com elas."
Além da religião, o maior dos pilares de toda a cultura afro, há a música, a dança, a culinária e a transmissão oral dos valores e tradições. Coisas que sobreviveram nos quilombos e resistiram à repressão deste século, marcando forte presença na vida atual de muitos brasileiros. Mas, segundo Jonatas, apesar de tanta importância, a cultura afro-brasileira ainda continua vista de forma folclorizada. "Na verdade, o que se conhece e se divulga passa por um filtro muito racista. Basta reparar na música baiana que está na mídia. Está longe de ser o melhor da nossa cultura.".
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