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Escolas inadimplentes

Quem responde pelo caos no ensino médico do Brasil?

IRANY NOVAH MORAES*

O caos em que se encontra a saúde no país tem feito com que o médico seja considerado o vilão da história. Ninguém se lembra, entretanto, de que ele próprio também é vítima de uma desvairada política educacional. Basta lembrar que nunca se fez projeção do futuro mercado de trabalho para o médico, não se preparou corpo docente para novas escolas e, nos pré-requisitos para criação de faculdades de medicina, não se exigiu que tivessem hospitais próprios. Um único dado evidencia as afirmações acima: em 1968 foram criadas 11 escolas médicas! Ninguém se lembrou de que um dia esses alunos concluiriam o curso e se tornariam médicos. Os próprios jovens custaram a perceber que, em hospital conveniado, eles eram apenas visita e que seus professores, embora médicos conceituados, não estavam academicamente capacitados a ensinar.
Despreparados, foram diplomados e lançados na vida profissional. Ganhando mal e obrigados, por esse motivo, a trabalhar duas ou três jornadas em locais diferentes, o que os leva a passar longas horas no trânsito, só lhes resta ser maus médicos e errar mais.
Nada disso, no entanto, exime a culpa pelos eventuais erros cometidos por esses médicos. Mas eles não são, obviamente, os únicos responsáveis. A escola que não os formou, mas os diplomou, também tem culpa. O governo, que "abriu as porteiras" e autorizou o funcionamento da instituição, sem impor condições fundamentais nem fazer controles, é tão responsável quanto ela, que se aproveita da situação para lançar-se na atividade ciente de que não reúne as condições fundamentais para isso.
As entidades médicas em geral e a Academia de Medicina de São Paulo, em particular, têm alertado a nação sobre o número excessivo de escolas médicas, a inconveniência da abertura de novas, a necessidade de corrigir muitas e a obrigação de fechar algumas. Entretanto, até agora, nada se fez, em caráter duradouro, para resolver o problema.
Como os caminhos adotados não estão levando a resultados satisfató-rios e subsiste a ameaça do surgi-mento de novas escolas, devem-se procurar outras alternativas. Para isso, talvez ajude observar o exemplo de outros países. Os americanos, quando se conscientizaram de que sua medicina estava "doente", fecharam metade das escolas médicas e investiram nas demais. Aliás, eles classificavam as escolas médicas em três padrões, de acordo com dois critérios: formar bons profissionais e ter pesquisa de alto nível. Eram "padrão A" as que preenchiam ambos os requisitos, "B" as que apenas formavam bons profissionais e "C" as que não tinham nenhuma das duas qualidades. Uma comissão de professores da Associação Médica Americana correu o mundo para estudar e classificar escolas e, em 1950, a única enquadrada no "padrão A" na América Latina foi a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Todas as demais no Brasil eram "C". Na época, havia 13 escolas médicas no país.
A situação, pelo menos no que se refere à quantidade, mudou muito. Hoje temos 85 escolas. Porém, adotando o critério referido, temos apenas algumas do "padrão A", poucas "padrão B" e muitas "padrão C". Estas são as chamadas inadimplentes - são devedoras da sociedade -, pois prometem formar o médico mas apenas o diplomam.
Considerando-se o fato de que se diplomam, anualmente, 8,2 mil médicos e de que existem apenas 4 mil vagas nos programas de residência médica, metade deles fica de fora. Sabendo-se que o mercado de trabalho absorve 5 mil médicos por ano, temos trabalhando, portanto, mil comprovadamente incompetentes, pois não conseguiram vaga para fazer a residência médica e estão na ativa. Esse quadro se agrava a cada ano.
Com o advento da Lei de Defesa do Consumidor, as coisas mudaram e, acredito, chegou a hora de as escolas médicas inadimplentes serem contidas. Na verdade, elas fazem propaganda enganosa, uma vez que conferem diploma de médico a indivíduos despreparados tecnicamente. Ora, sabe-se que a incompetência é classificada como imperícia, e como os professores dessas escolas não são capazes de ensinar, nem mesmo pelo exemplo, o comportamento no exercício profissional, seus alunos poderão, no futuro, ser enquadrados como imprudentes ou negligentes.
Em processos de erro médico tenho lido, com freqüência, a determinação do juiz de que o médico acusado junte seu "título de especialista". Em todos os casos, verificou-se que o médico não havia feito residência, muito menos tinha o título referido. E provinha de uma das escolas inadimplentes.
Essas escolas devem ser, também, responsabilizadas por conferirem diplomas a médicos que cometem erros crassos, porque não os ensinaram; prometeram mas não cumpriram. Assim, se cortará o mal pela raiz. Essa é a forma de inibir a abertura de novas escolas, de outras cuidarem da qualificação de seu corpo docente e de fomentarem a pesquisa, e de algumas serem fechadas.
Essa é nossa esperança de salvação: que se pare de formar maus médicos e se recuperem os despreparados, colocando, assim, o país no círculo virtuoso da saúde.

* Professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e membro do Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo.

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