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Cerco ao contribuinte
Reforma poderá elevar carga tributária brasileira a 40% do PIB
Na reunião realizada em 9 de dezembro de 1998, o Conselho de Estudos Jurídicos (CEJ) da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (FCESP), presidido por Ives Gandra da Silva Martins, analisou o projeto de reforma tributária do governo. Estavam presentes à reunião os seguintes conselheiros: Hélio de Burgos-Cabal, Paulo Planet Buarque, Renato Ferrari, Ney Prado, Antonio Carlos Rodrigues do Amaral, Bernardo Ribeiro de Moraes, Antenor Cerello Júnior, Edvaldo Pereira de Brito, Elisabeth Libertuci, Fernando Passos, Felipe Ferreira Silva, Marco Aurélio Greco, Fátima Fernandes Rodrigues de Souza, Marilene Talarico Martins Rodrigues, Roberto Rosas e Celso Ribeiro Bastos.
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS - Na reforma que o governo propõe, se observarmos as alterações dos artigos 150 e 151 da Constituição, veremos que o objetivo é, de certa forma, reduzir o direito dos contribuintes e aumentar a liberdade, a flexibilidade legislativa do poder público e do Estado. Mas a grande inovação está no artigo 152, dedicado exclusivamente ao imposto da federação, que a princípio seria um imposto sobre valor agregado mas que incidirá sobre a circulação de mercadorias. Há, porém, uma novidade: foi acrescentada a expressão "bens". Então será um imposto relativo à circulação de bens e prestação de serviços de qualquer natureza. E a inclusão da expressão "bens" abre um campo impositivo brutal, porque a incidência poderá atingir até mesmo os chamados bens imateriais, além dos materiais, já que na Constituição não há distinção entre uns e outros. E o fato de o imposto da federação incidir sobre prestação de serviços de qualquer natureza significa que efetivamente teríamos um único imposto encampando IPI, ICMS e ISS. Mas, como os municípios que cobram ISS não querem abrir mão dessa arrecadação, o governo manteve esse imposto, que continuará a ser cobrado. Então, como o ICMS será sempre muito superior ao ISS - e, qualquer que seja o ISS, este poderá ser descontado do ICMS -, os contribuintes do Imposto sobre Serviços passarão a ter dupla fiscalização, já que estarão sujeitos a dois impostos: sobre prestação de serviços e sobre circulação de bens e mercadorias e prestação de serviços, lembrando que, para não prejudicar o regime jurídico, o ISS será admitido mas compensável. No caso das contribuições sociais do artigo 195, quase todas serão adicionais ao Imposto sobre Circulação de Bens e Mercadorias e Prestação de Serviços.
É interessante notar que o projeto elimina a necessidade de lei complementar para o Imposto sobre Consumos Especiais, o chamado seletivo, que poderá ser veiculado por legislação ordinária. O governo entende que esse imposto, que incidirá sobre operações relativas a derivados de petróleo, combustíveis, lubrificantes, energia elétrica, fumo, bebidas, veículos automotores, embarcações, aeronaves, bens e mercadorias supérfluas especificadas em lei complementar e sobre serviços de comunicação, será, de certa forma, utilizado pelos fundos compensatórios dos estados e dos municípios para regular as perdas de receita que a implantação da reforma venha a provocar. Mas o texto do projeto não esclarece se as operações relativas a derivados de petróleo, combustíveis e lubrificantes, uma vez que sofram a incidência do imposto seletivo, não ficariam também sujeitas ao ICMS. Isso vai depender de legislação infraconstitucional, mas é bem possível que sofram as duas incidências.
Outro ponto relevante é o dos fundos de compensação. Como a arrecadação será feita pelos estados, os municípios precisarão de compensação, pelo menos até que a implementação do regime de destino no ICMS tenha se completado, o que levará 12 anos. E como essa compensação virá do fundo que terá receita do imposto seletivo, pelos 12 anos de implementação do regime de destino fica assegurada, ou pelo menos garantida, a guerra fiscal. O governo entende que, depois de implementado o regime de destino no ICMS, deixaria de haver problemas nas operações interestaduais, uma vez que todo imposto seria recolhido no destino. Esse é um aspecto interessante do projeto, já que desde 1993, na Europa, discute-se o retorno ao regime de origem e não a manutenção do regime de destino, tendo em vista os problemas que dele decorrem.
Essa reforma que o governo está propondo tem pelo menos um aspecto positivo: a eliminação da tributação em cascata, exceção feita ao imposto sobre movimentação financeira. Em contrapartida, pelos cálculos de alguns economistas, se for aplicado o que está no projeto, tomando por base a alíquota mínima com que o governo está trabalhando, de 15%, a carga tributária brasileira poderá se elevar de 33% para 40% do PIB.
MARCO AURÉLIO GRECO - Meus comentários estão reunidos em três tópicos: o ICMS, o imposto seletivo, sobre o qual tenho profundas dúvidas, e alguns temas específicos pontuais. Quanto ao ICMS, a idéia de implantar o regime de destino me parece boa na feição que foi dada, porque não será o regime de destino sem tributação na origem. Pelo que entendi do projeto, apenas a parcela da alíquota estadual é que vai ser gradativamente alocada para o estado de destino. Ou seja, a tributação nas operações interestaduais será feita pela alíquota estadual cheia. Portanto, nesse aspecto, o regime é diferente do sistema europeu.
A uniformidade de alíquotas também me parece uma boa solução, independentemente de operação interna ou interestadual. A diferenciação tem que ser feita em termos de mercadorias e serviços, não por ser uma operação interna ou interestadual. Mas o que me chama a atenção no ICMS é que ele deveria ser um imposto amplo, abrangente. Nesse ponto, defendo a ampliação da incidência, para que superássemos as limitações que os conceitos de mercadorias e de serviços impõem. Acho que estamos hoje, mais do que nunca, vivendo um mundo em que os bens incorpóreos são negociados no mercado. Então acho que há necessidade de encontrar um caminho para a tributação das "mercadorias não tangíveis", assim como também acho que, em termos de serviços, a idéia clássica de serviços como atividade, hoje, é muito mais serviço como utilidade na ótica do consumidor do que na do produtor. Então, gostaria que se superassem essas limitações semânticas dos termos para incluir a tributação de incorpóreos e de utilidades. O texto, no entanto, se refere a bens, o que em princípio inclui qualquer tipo de bem, seja ele corpóreo ou incorpóreo. Mas, de qualquer forma, o ICMS só estará incidindo sobre aqueles que forem objeto de operação, relativamente à sua circulação, o que é uma restrição, na medida em que não atingirá a cessão de uso de bens, a utilização de bens patrimoniais e assim por diante. E a idéia de uma incidência ampla está frustrada, uma vez que o projeto, quando trata das contribuições, admite outras incidências sobre operações e prestações de serviços desde que não estejam sujeitas ao ICMS, o que para mim é a confissão de que não se pretende criar um tributo amplo.
Também me chama a atenção a idéia dos adicionais. Aqui há uma preocupação que faço questão de sublinhar: só na Constituição temos três adicionais, um para seguridade social, em substituição aos antigos PIS e Cofins, um para ensino fundamental, em substituição ao antigo salário-educação, e um para o Fundo de Equalização, na hipótese de eventuais quedas da arrecadação. Mas é preciso lembrar que onde não houver incidência do principal também não haverá dos adicionais. Portanto, se a idéia é agregar tudo sob uma única cobrança e uma única alíquota para agilizar a arrecadação, por outro lado eventualmente poderá haver perda de receita, porque a não incidência de ICMS deixará de fora também todas as incidências dos adicionais respectivos.
Quanto ao imposto seletivo, o tal excise tax, bem que eu gostaria que fosse um imposto sobre consumos especiais! Mas não é isso o que diz o texto do projeto. Historicamente, o excise tax tem duas funções: uma arrecadatória, muito nítida, e outra de regular o consumo. Ou seja, as razões para adotar um imposto seletivo seriam: conter consumos irra-cionais ou contrastar deseconomias. Em outras palavras, se o consumo de determinado produto gera um efeito ambiental nocivo, essa deseconomia ambiental será taxada. Ou se, por exemplo, existe uma demanda de energia que a oferta não pode atender, será preciso neutralizá-la através de uma tributação mais elevada. Ou, ainda, para atingir o consumo de produtos de luxo e supérfluos. E, tecnicamente, o excise tax pode assumir duas modalidades distintas: ou incide sobre a fabricação ou sobre o consumo de determinado produto. Nesse ponto há algo de curioso no projeto do governo, pois o texto diz: "O imposto será seletivo e incidirá uma única vez na cadeia produtiva". Então o ônus será apenas da produção, já que o imposto não incidirá sobre a circulação. Daí podem surgir conseqüências sérias, porque, se a Constituição qualifica a cadeia como "produtiva", deveria também existir uma cadeia "circulatória". Então a cadeia circulatória daqueles bens sobre os quais incidirá o seletivo não será alcançada pelo imposto, e aí está feita a confusão. Porque se houver uma diferença entre cadeia produtiva e cadeia circulatória, o produto pronto que for importado, no Brasil, só terá cadeia circulatória. Isso gerará uma discrepância de tratamento tributário entre o produto importado e o nacional, porque só o nacional estará sujeito ao seletivo. Além disso, não existe regra de desoneração na exportação para o imposto seletivo. É curioso, pois há regra de desoneração na exportação para o ICMS, para o ISS na exportação de serviços, para as contribuições do artigo 195, e não para o seletivo. Por quê? Será que isso foi consciente ou escapou?
Quero dizer também que considero um grande passo a substituição de PIS e Cofins por adicionais ao ICMS. Porém, em matéria de contribuições, tenho uma sugestão, a qual foi enviada à comissão de reforma da OAB, da qual faço parte. Minha proposta é que se inclua um dispositivo no artigo 149, impondo a exigência da proporcionalidade das contribuições. Não sou contra as contribuições; sou contra as vestimentas que certas exigências recebem com o nome de contribuição. Acho que a essência da contribuição está na proporção que ela deve ter em relação a determinada prestação de serviço pelo poder público a certo interesse que está sendo atendido. Portanto, acho que seria o momento de discutir a inclusão de um dispositivo com esse objetivo.
Para finalizar, quero manifestar minha preocupação em relação à sistemática do projeto. Se queremos um imposto de base ampla, que atinja todo tipo de operação, todas as manifestações de capacidade contributiva no mercado, tenho dificuldade de enquadrar o imposto seletivo dentro dessa perspectiva, com a feição que ele tem no projeto.
ANTONIO CARLOS RODRIGUES DO AMARAL - Diante desse projeto, minha indagação é: o que não estaria coberto pelo artigo 152? Potencialmente, acho que operações financeiras, as quais não estariam no conceito de bens, de mercadoria, nem no de serviços de qualquer natureza. Acho discutível se se trata de um serviço financeiro, ou se a operação financeira tem uma natureza diversa da do serviço.
IVES GANDRA - Como o sistema financeiro trabalha com bens, não com mercadorias, e o dinheiro é de qualquer forma um bem, então o artigo 152 abrangeria tudo.
ROBERTO ROSAS - O ICMS é partilhado entre União, estados e Distrito Federal, mas compete aos estados e ao Distrito Federal a arrecadação e a fiscalização. Há uma regra no artigo 152, parágrafo 5º, que diz que o Distrito Federal, nos processos judiciais referentes ao imposto, terá legitimidade processual ativa e passiva, o que significa, portanto, que qualquer demanda sobre o imposto será da alçada da justiça estadual, seja cobrando seja demandando em relação a ele. Mas quero chegar ao artigo 1º, que acrescenta ao artigo 152, que trata de competência da Justiça estadual, onde há uma redação que pode estar equivocada. Diz o seguinte: "O artigo 152 passa a vigorar com a seguinte alteração". Não é alteração, é apenas acrescentado o parágrafo 5º: "Compete à Justiça dos estados e do Distrito Federal investir na jurisdição federal em todas as instâncias, processar e julgar as causas referentes ao imposto". Na verdade, o artigo 152 já está dizendo que a Justiça é a estadual, ativa ou passivamente. No entanto há essa expressão intercalada, "investir na jurisdição federal", que naturalmente serve para dizer que a Justiça estadual passa a ter a jurisdição federal para aquilo que é de interesse da União, que também partilha o ICMS.
CELSO RIBEIRO BASTOS - Em minha opinião, um projeto dessa amplitude, com essa ambição de alteração do sistema tributário, não poderia ser feito sem uma modificação simultânea da federação. Quer dizer, está se deixando de lado a federação tal como ela se encontra, definida em termos de partido e de competência, para fazer uma adoção de critérios totalmente diferentes para efeito da implantação do projeto de alteração do sistema tributário. Ora, certamente isso vai levantar a discussão de se o projeto não é tendente a abolir a federação, o que já tornaria a cláusula pétrea modificável. Basta comprovar-se que, por essa fórmula, passam-se receitas municipais ou estaduais para as mãos da União, ou que os estados perdem a disponibilidade, ainda que chegue às suas mãos, sobre a fixação do seu quantum e a forma da sua arrecadação, porque tudo isso são prerrogativas estaduais. Então os estados terão que cumprir fielmente o papel que lhes é descrito pela União, arrecadando ou reforçando a arrecadação com a disposição que ela tiver. E não há nada mais contrário à noção de autonomia de uma pessoa do que ela depender inteiramente da receita que lhe passa uma outra, ainda que garantida pela Constituição. Quando comecei a lecionar, era absolutamente impensável alguém querer argumentar com o descumprimento de precatórios, por exemplo. Era algo sagrado, todos os precatórios eram absolutamente cumpridos. E vimos a que ponto chegamos com a confusão dos precatórios. Portanto, estar na Constituição não significa nada, essa é a verdade. Trata-se de um problema eminentemente federativo esse do destino ou da origem. É lógico que vai haver, por exemplo, uma deslocação de receita desfavorável para São Paulo pela substituição do critério da origem pelo do destino, já que é um estado mais exportador.
IVES GANDRA - Apenas um esclarecimento que acho importante: com o fundo de compensação, principalmente para o imposto seletivo, fica garantido, pelo menos na exposição de motivos, aos estados que venham a perder receita, um nível de compensação para restabelecê-la. Mas há aí um problema: tal estado recebia "x", e o fundo vai compensar a diferença quando a receita for menor. Acontece que o fundo vai partir de um número que daqui a dez anos continuará estável, embora vá haver um aumento de arrecadação. Portanto, esse diferencial o fundo não está prevendo. O governo do estado de São Paulo, cuja perda de receita foi calculada em 34%, fez essa observação. Então a compensação de receita tributária do estado de São Paulo será da ordem de 34% no momento em que a reforma for implantada.
FERNANDO PASSOS - O problema da compensação está na forma, que pode ter uma relevância muito grande para nossa discussão. Desde a exposição de motivos, o governo diz que é uma grande alteração a admissibilidade da compensação, mas não está dito "compensação obrigatória", embora concorde que da forma como está colocado isso possa ser estabelecido por lei complementar. Mas o grande lema dessa reforma, que é a desoneração da produção e o fim do efeito cascata, pode ficar comprometido se o contribuinte tiver que fazer dois pagamentos para depois ser compensado no final do ano ou no exercício posterior.
MARCO AURÉLIO - A solução é muito simples: bastaria dizer que o ISS pago é dedutível do ICMS devido. Assim não se precisaria falar em compensação.
RENATO FERRARI - O projeto de reforma do governo cria uma estrutura que mantém o mesmo número de impostos, elimina um mas acrescenta outro, além de ampliar enormemente a base tributária. Basta ver esse ICMS, que inclui bens e, sobretudo, serviços. Portanto, vejo nisso que o Estado brasileiro continua a ampliar sua imposição sobre a sociedade para ter como resolver os problemas pelos quais ele próprio é responsável. Quero registrar meu protesto contra essa estruturação que foi estabelecida e que não corresponde àquilo de que o país necessita.
De outro lado, quero dizer que continuamos no caminho completamente equivocado de não fazer a reforma política, tão necessária. Quero completar dizendo que aquilo que se tem que tratar como espinha dorsal do projeto, e que nunca se trata, nem por parte do governo nem do Congresso, é a figura do contribuinte. Jamais vejo em nenhum projeto, em nenhuma discussão, qualquer exame dos direitos e garantias do contribuinte. Não há no país um estatuto do contribuinte. Realmente estamos completamente expostos à sanha fiscal e sem ter como nos defender.
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