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O milagre do Padim Ciço
Centro de atração religiosa, a cidade de Juazeiro do Norte deve tudo a um padre amigo dos pobres e idolatrado pelos nordestinos
Juazeiro do Norte é uma cidade com cerca de 250 mil habitantes, situada no vale do Cariri, a pouco mais de 500 quilômetros de Fortaleza, no estado do Ceará. O nome vem de uma conhecida e resistente árvore da região, que produz o juá, uma pequena fruta comestível de cor amarela. A história do município começa com algumas dessas árvores, em cuja sombra viajantes e tropeiros costumavam descansar, o que deu origem a uma tosca pousada e logo depois a pequenas moradias. Em 1827 surgiu no local uma capela, em honra de Nossa Senhora das Dores.
Foi essa pequena aldeia que o jovem padre Cícero Romão Batista visitou no natal de 1871 para celebrar a missa do galo. No ano seguinte, o sacerdote fixava residência na vila, iniciando um trabalho evangelizador e sobretudo moralizador, já que ali a miséria convivia com prostituição e bebedeira.
A história conta que o desenvolvimento da cidade começou mesmo foi com um milagre. Um fato extraordinário que por si só transformou o lugarejo. O acontecimento teria ocorrido em 1889, numa missa oficiada pelo padre Cícero. Maria de Araújo, uma senhora muito piedosa, ao receber a comunhão percebeu que a hóstia se transformava em sangue na sua boca. O milagre repetiu-se dezenas de vezes e chamou a atenção de toda a região, atraindo uma infinidade de curiosos que queriam ver o "sangue de Jesus", que era colhido em pequenas toalhas diretamente da boca da beata.
Foi o início das romarias que ano após ano se intensificaram, transformando Juazeiro do Norte. O padre Cícero era o centro das atenções, e sua presença foi tão marcante que se tornou o primeiro intendente (cargo correspondente ao de prefeito), quando a cidade se tornou município, em 1911. Hoje, os visitantes chegam a cerca de 2 milhões por ano, segundo cálculos da prefeitura municipal. Todos movidos pela confiança cega no "Padim Ciço" e pela esperança sem fim de dias melhores.
Povo sofrido, castigado pela miséria, vítima de condições climáticas muitas vezes adversas, quase sempre analfabeto, o nordestino elegeu o vigário de Juazeiro do Norte como o depositário de suas atenções e esperanças. Mais que isso, o padre Cícero ganhou fama de milagreiro, e sua simples presença irradiava, para aquela gente, um poder inigualável de redenção. O romeiro não podia assim passar muito tempo sem voltar àquela terra sagrada, valendo-se para isso de todo tipo de transporte. O mais comum, o pau-de-arara, um simples caminhão cuja carroceria recebia como complementos algumas tábuas duras que serviam de assento e uma lona velha à guisa de cobertura. A fé de cada um garantia a segurança da viagem e a energia necessária para agüentar os solavancos do caminho.
Carregando pedras
Quatro vezes por ano Juazeiro do Norte recebe um grande número de romeiros. Em fevereiro é a festa de Nossa Senhora das Candeias. Em julho, o aniversário da morte do padre Cícero. Em setembro acontece a festa da padroeira, Nossa Senhora das Dores. E em novembro, no dia de Finados, a maior festa. Nessas datas, a população se multiplica e a cidade se transforma. São eventos inesquecíveis e indescritíveis. Há um encontro de multidões, quando a miséria confraterniza com a esperança, revelando um profundo sentido de religiosidade. É hora de pedir ajuda. Ou de pagar promessas, honrando pedidos anteriores já atendidos.
A sala dos milagres, junto ao Memorial do Padre Cícero, é a prova concreta da devoção. Não é uma sala comum. À primeira vista, parece um depósito de horrores: pernas, braços, cabeças de cera ou de madeira, reproduções de partes do corpo, feitas com qualquer tipo de matéria-prima, roupas usadas e milhares de fotos, desenhos e rabiscos. Na verdade, é um monumento à religiosidade daquela gente simples, à sua fé profunda e sobretudo a seu espírito de gratidão.
Mas há outras formas de pagar as promessas. Uma delas é o sacrifício físico. É comum ver filas de romeiros carregando pedras até o alto da colina do Horto, onde fica a gigantesca estátua do padre Cícero, com 25 metros de altura (a terceira maior do mundo, orgulha-se a cidade). Ou espremendo-se por fendas estreitas que o tempo rasgou em meio às pedras. Sem falar no sofrimento da própria viagem, nas dificuldades para arranjar comida e um cantinho para passar a noite, no calor intenso e na sujeira que fica pelas ruas.
A memória do padre Cícero está em toda parte. Mas é mais forte quando se entra na capela de Nossa Senhora do Socorro, onde fica o túmulo do padre Cícero, e que por sinal foi construída como resultado da promessa de uma devota. Ou quando se visita o Memorial, inaugurado em 1988, uma obra-prima da arquitetura moderna, com auditório, salão de convenções, biblioteca e um museu com todo o acervo político, cultural e religioso da cidade. Os romeiros desfilam pelos corredores, procurando espaço para demonstrar sua fé, ansiosos para tocar na imagem do patriarca do nordeste. É hora de agradecer. E de pedir novos favores, pois a bondade do padroeiro é infinita.
De volta a suas casas, nos longínquos rincões do sertão, ou na periferia sofrida das cidades, os romeiros sentem-se felizes, realizados, prontos para enfrentar um novo período de uma dura realidade. É o verdadeiro milagre do padre Cícero.
Todos irmãos
Juazeiro do Norte é um campo de concentração de pobres famintos em busca de Deus. Ali eles buscam sentido e esperança para continuar vivendo, apesar da fome e miséria da região.
É assim que o padre Josenildo Tavares Ferreira, de Recife, descreve o que acontece naquela cidade.
"Passam noites sem dormir, ao som dos benditos, os hinos em louvor a Nossa Senhora das Dores e ao padre Cícero. No caminho, todos se tornam irmãos e irmãs e partilham o que cada um trouxe. É sonho? Não, é aquilo que os Apóstolos de Jesus faziam", diz o padre.
Juazeiro do Norte é para os romeiros um pedacinho do céu, continua o sacerdote. E não são poucos os que sonham em morrer na terra do padre Cícero. Para eles, a romaria, a cidade, as velas, pedras, chapéus de palha, etc., tudo é a expressão da fé. É a exclusão da ordem presente, a aproximação com o sagrado, que traz sempre uma perspectiva de esperança. Segundo o padre Josenildo, "uma virtude teologal, porque tem Deus como objeto e referência".
É dessa "esperança teologal", diz ele, que deriva a crença inabalável em uma vida melhor.
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