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À procura de roteiro

Apesar dos ventos favoráveis, cineastas, produtores e
distribuidores ainda sentem falta de uma política cultural definitiva

MILU LEITE

Oito anos após a verdadeira implosão do setor cultural, promovida pelo governo Collor, pode-se afirmar que o cinema brasileiro vai de vento em popa. Basta ver o sucesso de alguns filmes, como o premiado Central do Brasil. O problema é que o vento que ain--da impulsiona o barco dos cineastas tem data marcada para transformar-se em calmaria. No ano de 2003 termina a validade da Lei do Audio-visual - e de outros dispositivos de incentivo fiscal -, que permite a pessoas físicas e jurídicas abater do Imposto de Renda gastos realizados com finalidade cultural.
Esse artifício veio em momento oportuno, pois a embarcação estava prestes a afundar. Mas a ameaça de sua extinção mantém vivo o debate de questões antigas e novas, ainda longe de uma solução permanente, e que envolvem governo, empresas, cineastas, distribuidores e o próprio público.
Nos últimos oito anos, tem se produzido uma média de 25 filmes por ano, e ao produto brasileiro corresponde 5% do mercado total de salas (a parcela maior é dos norte-americanos, com 88%), uma percentagem animadora, mas irrisória quando comparada à da virada dos anos 70 para os 80, época em que o mercado nacional de filmes era preenchido por 30% de produções brasileiras.
O próprio ministro da Cultura, Francisco Weffort, mostra-se satisfeito com a retomada, mas tem sa-lien-tado a necessidade de fazer crescer ainda mais a produção nacional. Para tanto, já estão sendo estudadas outras formas de captação de recursos (ver texto abaixo), a fim de incrementar as já existentes, enquanto não se define se a Lei do Audiovisual vai ser prorrogada ou se será criada outra, ou se não será feita nenhuma lei. Como se vê, a lei que estabelece cotas de exibição de longas brasileiros (que não é respeitada nem tem seu cumprimento fiscalizado) pode se tornar obsoleta por falta de produto. Há problemas de sobra, e eles não dizem respeito somente à captação de recursos e ao não cumprimento de leis.
A oferta de salas, por exemplo, tem se mostrado insuficiente mesmo para essa "irrisória" produção. Praticamente restrito às salas de cinema alternativas (uma metáfora para os Espaços Unibanco de Cinema e outras salas do gênero), o filme brasileiro não encontrou ainda seu público maior. Lançamentos são cuidadosamente estudados - principalmente depois do fracasso de títulos que vieram com artilharia de lançamento pesada (Tieta e Bela donna, por exemplo) - e muitas vezes cancelados por falta de espaço.
Diante dessa constatação, é fácil concluir que, se a produção aumentar um pouco mais, obviamente vai ocorrer uma saturação arrasadora.
Essa questão é uma das que constam do documento encaminhado no final do ano passado ao ministro Weffort e que estão sendo estudadas pelo governo.
O documento vem, em primeiro lugar, pedir ao governo que tome para si a responsabilidade de estabelecer uma política cultural para o setor. "Fornecer à atividade cinematográfica diretivas e meios necessários para sua continuidade torna-se vital neste momento em que a 'retomada do cinema brasileiro' começa a apresentar os mesmos sinais da endemia crônica da qual padece há pelo menos meio século: a falta de uma política pública", diz a carta assinada por cineastas, em setembro de 98.
Hoje o que acontece é que, através das leis de incentivo fiscal, o Estado acaba delegando ao empresariado a decisão de investir neste ou naquele filme. Mas essa prática não tem se mostrado muito boa em vários aspectos. Por exemplo, o próprio empresário, que não corre nenhum risco com sua contribuição, nem por isso está disposto a encarar uma produção, por receio de atrair a atenção do fisco ou por não ver num filme o melhor modo de divulgar sua empresa. Além disso, raros são aqueles que optam por participar de projetos mais autorais. Para piorar o panorama, em alguns casos criou-se a chance de deduzir do imposto de renda mais do que realmente se doou (por meio da recompra dos títulos da Comissão de Valores Mobiliários, num acordo com intermediários) e de produtores captarem recursos para filmes que não são feitos.
Mas o maior temor da classe cinematográfica relaciona-se à perda de investidores estatais devido às privatizações (algumas estatais têm sido as maiores parceiras das produções). A produtora Mariza Leão (Guerra de Canudos e Lamarca), que integra desde 96 uma comissão de cinema formada pelos produtores Luiz Carlos Barreto, Anibal Massaini e Roberto Farias, pelo distribuidor Rodrigo Saturnino Braga (da Columbia Tristar) e pelo exibidor Roberto Darze, encarregada de assessorar o ministério em assuntos audiovisuais, acrescenta mais um problema à lista: "Se formos observar o resultado da captação no conturbado ano de 1998, veremos que houve uma diminuição bruta dos recursos, o que será determinante no mercado no ano 2000". Em 97, 163 projetos foram registrados para tentar a captação, contra apenas 52 até setembro de 98, de acordo com dados forneci-dos durante seminário, no último Festival de Brasília. Atente-se, en-tretanto, para o fato de que dos projetos inscritos desde 95 apenas uma pequena parcela conseguiu ser concretizada. Em contrapartida, houve mais lançamentos - 22 em 98, contra 15 em 97, sendo que para este ano estão previstos mais 30 - e um conseqüente aumento de público (incluindo a numerosa platéia de filmes estrangeiros, a estimativa é de quase 4 milhões em 98, 225% mais que em 97).


Os multiplex

Enquanto cineastas brasileiros se dividem entre problemas e a busca por soluções, o mercado de filmes virou o ano em clima de festa. Não todo ele, entretanto. As comemorações se restringiram mais especificamente àquela parte do mercado alimentada pelos multiplex, conjuntos de oito a dez salas de projeção montadas inicialmente nos megashop-pings periféricos. Os proprietários de cinemas menores, ao contrário, devido à nova concorrência, estão com as barbas de molho.
Experiência importada dos Estados Unidos no final de 97, os multiplex oferecem filmes variados (desde que sejam do gosto popular) e boa dose de conforto e tecnologia. O custo operacional é mais baixo que o dos cinemas menores. Uma das razões para isso é que esses complexos operam em escala, sendo possível passar uma mesma cópia de filme em três salas com um intervalo de poucos minutos, e o custo do ingresso é mais baixo. "O preço do ingresso varia de acordo com o dia e o horário da sessão e a faixa etária do pagante - crianças e idosos têm até 50% de desconto. Essa política era um dos nossos principais pedidos aos exibidores nacionais, mas foi necessário esperar a chegada dos multiplex para que as empresas passassem a adotar políticas semelhantes", diz Saturnino Braga, da distribuidora Columbia Tristar.
Preços mais acessíveis e um apelo comercial forte têm deixado o público satisfeito (pelo menos uma parte dele). Por causa disso, as projeções de crescimento para 1999 são otimistas: 100 milhões de espectadores (em 98 o número total de espectadores, em todo o país, foi de cerca de 70 milhões, de acordo com dados do boletim "Filme B Informa", publicação especializada no setor). Diante de um prognóstico tão positivo, outros investidores estão de olho no mercado brasileiro, e especula-se que cerca de US$ 700 milhões serão injetados em mais 3 mil salas nos próximos três anos. Até o final de 98, haviam sido inauguradas 160 salas em multiplex, grande parte delas concentrada no estado de São Paulo (99) e nas cidades de Recife (18) e Rio de Janeiro (12). No Rio Grande do Sul, onde dos 469 municípios apenas 17 têm salas de cinema, serão inauguradas mais 19. Outras 289 serão abertas ao público até o ano 2000.
Aos apreciadores de cinema, restaria então comemorar a possibilidade de assistir a uma revitalização jamais imaginada num país que parecia ter jogado no lixo as poucas salas que existiam até há pouco tempo. Mas há problemas por trás dessa expansão, e eles não devem ser escamoteados.
Em primeiro lugar, embora haja mais cinemas, a oferta de títulos não tem crescido na mesma medida, principalmente porque os multiplex necessitam de grandes bilheterias. Desse modo, os lançamentos mais promissores têm mais salas num mesmo multiplex, em detrimento daqueles cuja bilheteria é pequena.


Falta promoção

Mas então, com tantas salas, o filme brasileiro finalmente conseguiu um lugar ao sol? De modo geral, ci-neastas e produtores têm apoiado com ressalvas o surgimento desses espaços, ainda que algumas salas estejam mesmo abrigando títulos brasileiros, em conformidade com a lei de cota de tela. Mariza Leão considera que o conceito multiplex não favorece a pluralidade da produção.
Os distribuidores do produto brasileiro têm também uma visão cautelosa do fenômeno. José Carlos Avellar, presidente da RioFilme, distribuidora de quase 90% dos filmes brasileiros, explicou em entrevista recente por que as salas múltiplas não podem ser encaradas como uma salvação: "O multiplex é um espaço organizado para abrigar filmes embalados em forte promoção e com grande número de cópias". Mariza Leão concorda: "Para competir é preciso ter uma publicidade compatível com os concorrentes. É preciso ter um bom filme e verba de comercialização para que o público tenha despertado o desejo por escolher aquele título dentre os dez que estão ali sendo exibidos. Por isso, a importância de termos o Programa de Apoio à Comercialização". Alia-se a esses fatores a característica de esse tipo de filme esgotar seu público em cerca de três semanas.
Filmes brasileiros que tenham tamanha linha de frente ainda são raros. Aqui, todos sabem que o método que tem se mostrado mais eficiente para ganhar o público é o boca-a-boca. Foi ele que fez crescer as bilheterias de Carlota Joaquina (com poucas cópias, o filme acabou tendo 1,286 milhão de espectadores) e Central do Brasil (1,2 milhão de espectadores, aproximadamente, até novembro de 98), só para citar dois exemplos. Mas para haver boca-a-boca o tempo tem que ser mais elástico, e eis aí o primeiro inconveniente dos multiplex para a produção nacional.
Para os filmes de autor, então, sem grande apelo popular, a situação é ainda pior. Sejam brasileiros ou estrangeiros, esses filmes não fazem parte de uma conta com resultados lucrativos. Mas são indispensáveis. Para eles, a solução é brigar por outras salas. "Os multiplex são cine--mas populares, onde, portanto, os filmes po-pulares são os que mais in-te-ressam. Os filmes de arte, que necessitam de tratamento diferenciado, continuarão a ser exibidos prioritariamente em cinemas como o Espaço Unibanco", afirma Saturnino Braga.
A principal dúvida é: quantas dessas salas sobreviverão aos multiplex?
Em Recife, com a chegada do formato múltiplo, foram fechados pelo menos três cinemas. Em outras praças, as bilheterias de salas de cinema de rua ou de shoppings nos arredores dos multiplex caíram, numa clara demonstração de que a situação pode se agravar.
Adhemar Oliveira, diretor do Espaço Unibanco de Cinema de São Paulo, vê com preocupação o que está ocorrendo, mas procura analisar o fenômeno sob outro ângulo. "Os multiplex não são uma ameaça, mas um fato de concorrência dentro do cinema. A longo prazo, pode-se caminhar para uma diversificação", diz. O que aconteceria, nesse caso, é o seguinte: as salas que competem diretamente com os multiplex (aquelas que exibem tradicionalmente o dito "cinemão") buscariam o público do cinema de arte ou independente, inaugurando uma concorrência salutar com os poucos espaços disponíveis para esses filmes atualmente. O problema maior é que essas salas precisariam ser adaptadas para atuar com esse novo tipo de produto - o que nem sempre parece lucrativo para os proprietários.
Pensando desse modo, o formato multiplex poderia trazer alguns benefícios até para um público que não é o seu. De certa maneira isso já vem acontecendo, pelo menos num aspecto. Com a chegada das salas múltiplas, houve a ruptura de uma prática que vinha aborrecendo exibido-res há muito tempo. A venda de filmes em pacotes (que quase sempre incluíam grande parte do lixo encalhado em outras praças como peças obrigatórias para se conseguir os lançamentos de sucesso) pouco a pouco está sendo substituída pelo comércio de títulos separados. Além disso, os acordos comerciais que davam exclusividade de fornecimento de filmes a determinados exibido-res em cada cidade também estão com os dias contados. Estão todos convidados ao enterro do truste cinematográfico que esteve por décadas entre nós.
Mas e o cinema lá do bairro? E aquela salinha simpática que recebe um público fiel todos os fins de semana? Bem, aí é esperar para ver. Não sem torcer, obviamente, pela vitória do mocinho num filme em que o bandido (que também não pode morrer) não é mau caráter, mas um sujeito gordo, cheio de si e com muito dinheiro no bolso.


De olho no Oscar

Com problemas no mercado interno, os cineastas brasileiros sonham mesmo é com o sucesso no exterior. Hoje, vender um filme a outros mercados significa não apenas divulgar produtores, diretores e atores como também fortalecer a imagem da cinematografia nacional. Isso só para ficar no âmbito da "imagem". Mas há outro fator de relevância nada descartável: o dinheiro. Contratos de venda com distribuidoras americanas podem alcançar quase a metade do orçamento de um filme. É retorno certo.
Prêmios em festivais de renome também são uma alavanca para relançamentos (O quatrilho só obteve êxito fora do Rio Grande do Sul quando foi escolhido para concorrer ao Oscar) e, obviamente, para lançamentos (Central do Brasil agradou de cara, mas as premiações no Festival de Berlim - de melhor atriz para Fernanda Montenegro e de melhor filme -, e o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, assim como as indicações para o Oscar, certamente fizeram crescer a vontade do público de vê-lo.
Enfim, reconhecimento externo significa boa mídia e... o resto todo mundo adivinha. Os cineastas sabem disso. No entanto, poucos têm tido a possibilidade de usufruir desses bons resultados. As dificuldades variam em número, gênero e grau, mas por trás de todas elas está a falta de uma política pública para o setor. Por isso, entre as reivindicações enviadas ao Ministério da Cultura há um tópico específico para a difusão do cinema brasileiro no mercado externo. Eis alguns pontos levantados no documento:
· Preparar mostras de filmes brasileiros para oferecimento ao mercado internacional com todo o suporte necessário.
· Editar anualmente catálogo de títulos brasileiros, incluindo curtas, médias e longas-metragens.
· Rever a legislação tributária e alfandegária que rege o envio de cópias de filmes para festivais internacionais.
· Atualizar os acordos internacionais de co-produção com vistas às novas tendências de integração supranacionais.


Script das reivindicações

Para captar mais recursos e aperfeiçoar a distribuição, os cineastas brasileiros apresentam inúmeras sugestões. Eis as principais:

· Recuperar as remessas de lucro das distribuidoras estrangeiras, tornando possível a prática o artigo 3o da Lei do Audiovisual (atualmente só a Sony-Columbia se enquadra nessa norma).
· Obter permissão para que a captação de recursos via Lei do Audiovisual possa se estender até o mês de abril (data em que ocorre o chamado ajuste do Imposto de Renda).
· Criar o Fundo de Investimento em Cinema, destinado a ampliar a base de investidores, incluindo entre estes pequenas e médias empresas, além de pessoas físicas.
· Dar andamento ao Programa de Apoio à Comercialização. Graças a ele, serão injetados recursos subsidiados na divulgação e promoção de filmes brasileiros, nos diversos veículos publicitários. A proposta já foi aceita pelo ministro Francisco Weffort, mas depende da alocação de verbas.
A pretensão é de que no ano 2000 esse programa passe a ser mantido com recursos vindos por meio do
mencionado artigo 3o da Lei do Audiovisual.
· Promover o crescimento das salas "alternativas", de modo a absorver a produção nacional que tem menor força de venda.

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