Postado em 01/03/1999
Depois de 45 anos em defesa dos índios, Orlando Villas Bôas estuda novos projetos e prepara o filho para continuar sua obra
RODRIGO ARCO E FLEXA
Floresta do Xingu, uma manhã quente na aldeia camaiurá. Centenas de índios agitam-se com a aproximação de um jatinho da Funai. Mais algumas manobras, e o avião desce no pátio da aldeia. A expectativa cresce, até que surge o rosto de Orlando Villas Bôas.
Assim que põe os pés no Xingu, o sertanista é cercado pela multidão. Todos querem ver e tocar Orlando, muitos choram. "Meu pai, meu pai", exclama o cacique Kanato, para logo em seguida trocar um abraço emocionado com Villas Bôas. Orlando pisa novamente na aldeia, depois de 15 anos afastado. Sua volta tem uma razão especial: ele vai participar de uma cerimônia do Quarup em homenagem a seu irmão Cláudio, morto há poucos meses.
Essa cena aconteceu em julho do ano passado. A emoção dos índios era natural. Os mais velhos, como Kanato, conheciam os irmãos Villas Bôas desde a década de 1940. Orlando, Cláudio e Leonardo (que morreu em 1961) são protagonistas de uma saga de 45 anos pelo Brasil central. Líderes da expedição Roncador-Xingu, eles travaram o primeiro contato com dezenas de tribos indígenas, empreitada que resultou na criação do Parque Nacional do Xingu - área de mais de 3 milhões de hectares onde vivem atualmente cerca de 4 mil índios de 16 diferentes etnias.
Mistura de mito com realidade, tantos são os seus contornos épicos, essa história será agora transformada em filme. O projeto, um antigo sonho de Orlando, foi assumido pela produtora de cinema Beta Filmes.
Trata-se de um documentário sobre a trajetória dos irmãos Villas Bôas. As filmagens foram iniciadas em abril de 1998 e devem ser concluídas ainda no primeiro semestre deste ano. Entre as imagens já produzidas, estão as cenas do ritual do Quarup (além de Cláudio, o cerimonial homenageou outro irmão de Orlando, Álvaro, morto em 1996, assim como o índio Mariká, um antigo amigo dos Villas Bôas). Também foi gravado um depoimento exclusivo de Orlando com mais de 20 horas.
"A produtora quer me levar agora para a região onde começou a expedição Roncador-Xingu", conta Orlando. Ainda serão entrevistadas pessoas que testemunharam o desenrolar da saga, como os sertanejos que participaram da expedição e agora vivem em algumas das mais de três dezenas de cidades e centenas de vilas que nasceram ao longo das trilhas abertas pelos Villas Bôas.
Aos 85 anos (completados em 12 de janeiro), Orlando está empolgado com o projeto. "O Brasil é um país sem história", diz ele, lembrando a oportunidade que o filme trará aos mais jovens de conhecerem a sua aventura. "Nós tivemos a oportunidade de atravessar os limites do Brasil civilizado. Entramos em contato com o índio em estado de cultura pura, o que era uma incógnita naquele tempo", conta.
A expedição dos irmãos Villas Bôas serviu para desfazer mitos. "Pensava-se que o indígena era um bicho que andava pela mata destruindo tudo. Mostramos como a sua sociedade é organizada. O índio pode nos ensinar muito", afirma Orlando. "Moramos 45 anos na mata, mas nunca vi um índio dar um tapa em outro."
Brasil desconhecido
A expedição Roncador-Xingu foi promovida pelo governo Getúlio Vargas, no início dos anos 40, com o objetivo de desbravar as regiões desconhecidas do Brasil central e da Amazônia. "Nessa época, Uberlândia era conhecida como a boca do sertão. Do Araguaia em diante, só existia o Brasil desconhecido", lembra.
Sonhando com terras distantes, enquanto atravessavam noites debruçados sobre mapas, Orlando, Cláudio e Leonardo fizeram de tudo para entrar na expedição. Acabaram líderes do grupo, um punhado de sertanejos e garimpeiros.
"Eles eram considerados os homens sem lei do Brasil central", conta. "Alguns já tinham matado mais de 20 vezes." A missão do grupo era penetrar no interior do país, limpando o terreno. "Limpar o caminho significava enfrentar os índios a tiro." Mas os Villas Bôas pensavam diferente.
"O nosso grande feito foi convencer aqueles homens de que nós é que éramos os invasores da terra do índio", conta. "Toda noite a gente se reunia em volta da fogueira e ficava contando história para os sertanejos. Eram histórias para doutrinar, despertar um sentimento de respeito e de ética. O que não sabíamos é que eles já tinham isso incutido. O garimpeiro que matava fazia isso por causa das contingências do meio dele, onde um sujeito elimina o outro porque suas almas não se dão bem."
Orlando e Cláudio ficaram no Xingu até meados da década de 1980. Sua maior criação, o Parque do Xingu, constituído em 1961, despertou a atenção do mundo. Cientistas e intelectuais correram à região para conhecer o cotidiano de uma cultura indígena praticamente intocada. Nomes como o antropólogo Claude Lévi-Strauss e o escritor Aldous Huxley estiveram no parque. Sem falar em personalidades como o rei da Bélgica, além de jornalistas de todos os continentes.
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