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Em Pauta

Revista E - Abril 2006

 

 

Quantidade X qualidade


Dados apresentados pelos convidados do Em Pauta desta edição comprovam que o número de vagas tanto no ciclo fundamental quanto no superior aumentou na última década. Isso fez com que o foco da discussão sobre
a educação no Brasil se voltasse para a qualidade do ensino oferecido. Em artigos exclusivos a educadora Eunice R. Durham, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP)e diretora científica do Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior (NUPES) (leia o artigo), e o ex-reitor da USP Roberto Leal Lobo e Silva Filho (leia o artigo) discutem a relação entre o aumento de escolas e universidades e a boa educação.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Há que se escolher entre expansão e qualidade na educação?

por Roberto Leal Lobo e Silva Filho

Uma questão sempre recorrente quando se trata do ensino em qualquer nível é a oposição qualidade X quantidade. Qualquer esforço do governo no sentido de ampliar vagas públicas, ou reduzir as restrições para a criação de vagas no setor privado, ajuda a reavivar a polêmica.



É claro que um aumento indiscriminado de vagas em qualquer setor, sem que haja um investimento proporcional na infra-estrutura e na capacitação de professores, pode levar a um declínio da qualidade média do ensino. No entanto, mesmo que se reconheça essa possibilidade, dois pontos merecem uma reflexão equilibrada.



A melhoria da infra-estrutura e da qualificação docente deve ser feita conjuntamente com o crescimento, ou seja, investimentos e ampliação correndo paralelamente. Grande parte dos problemas com a educação em todo o mundo, e no Brasil não foi diferente, decorreu da necessidade de uma decisão política de universalizar o ensino básico, que se acentuou após a Segunda Guerra Mundial. Essa política, implantada também em muitos países em desenvolvimento, foi prejudicada pela crise econômica mundial da década de 80, o que fez com que a ampliação não fosse acompanhada dos necessários investimentos, gerando uma crise na educação mundial, que vem sendo, aos poucos, revertida.



Mesmo quando a ampliação reduz a qualidade média do ensino, é preciso verificar se a educação média do povo aumentou ou diminuiu. Por exemplo, se um país mantém o mesmo número de escolas de qualidade, mas cria outras escolas com qualidade um pouco inferior, embora a educação média possa ter decrescido, a educação global da população aumentou porque mais gente tem acesso a ela, mesmo que não seja de excelência. É importante lembrar, aliás, que educação uniforme não existe em nenhuma parte. É natural haver escolas melhores e piores - o péssimo é não haver escola, o ruim é não existir nenhum segmento da educação como referência de qualidade e o injusto é discriminar o estudante pelo poder econômico.



O Brasil, até a década de 90, apresentava péssimos indicadores de escolaridade. Pouca gente atingia o segundo grau [atual ensino médio], eram altos os índices de repetência e evasão. A partir de então, esses índices foram se tornado mais satisfatórios. De 1999 para cá, o perfil das instituições de ensino mudou, principalmente no ensino médio, no qual as públicas cresceram 30% e as privadas somente 12%, as escolas públicas correspondendo a 71% do total e 88% das matrículas (em 1999 eram 83%). Houve, portanto, o aumento da presença do ensino público na educação de nível médio brasileira, um fator que vai ao encontro das responsabilidades constitucionais do Estado.
Voltamos então à questão inicial: esse crescimento do setor público absoluto e relativo, muitas vezes sem o devido investimento, pode estar piorando a qualidade de nosso ensino básico? Com era e como é essa qualidade? Como defini-la?



O Brasil tem na educação indicadores semelhantes ao que tem no tênis e não no futebol. O desempenho médio do estudante brasileiro é, como sempre foi, extremamente medíocre se comparado com o de outros países.



Nos exames aplicados pela OECD (Organization for Economic Cooperation and Development), em estudantes do ensino fundamental, o Brasil se situa entre as dez piores nações, tanto na compreensão e elaboração de textos quanto na capacidade de resolver problemas. Em alguns exames ficamos em último lugar dentre 40 países, incluindo vários ainda em desenvolvimento. No entanto, temos alguns estudantes que obtêm sucesso nas Olimpíadas Internacionais de Matemática. São os nossos Gugas. Por isso, tirando as exceções, podemos dizer que nosso ensino é, como sempre foi, bastante medíocre, e não se deve temer nenhuma mudança, pois para pior é difícil mudar.



Nosso ensino sempre passou ao estudante uma visão formalista e abstraída da realidade que contaminou o ensinobrasileiro ao longo do tempo. Uma análise que, infelizmente, até hoje permanece verdadeira, foi feita pelo físico americano Richard Feynman, que esteve no Brasil nas décadas de 50 e 60, e ganhou o Prêmio Nobel de Física por suas magníficas contribuições para o desenvolvimento da mecânica quântica. Feynman descobriu que, quando perguntava sobre a teoria de um determinado assunto, os alunos brasileiros respondiam com rapidez, mas se o mesmo assunto era tratado de outra maneira, saindo do formal para a experiência objetiva, esses estudantes se perdiam completamente. Eles só eram capazes de reproduzir, por simples memorização, o que os professores lhes haviam ditado em aula. Eram, portanto, incapazes de ver a realidade por detrás das palavras e de aplicar aqueles conhecimentos aos fenômenos cotidianos. As palavras definiam palavras. Não se aprendia física no Brasil, segundo ele.



Mais cruel, Feynman afirmava: "Um erudito grego descobre que os alunos de outro país são capazes de recitar em perfeito grego desde pequenos. Ao questionar os alunos, percebe que esses estudantes aprendem a pronunciar as letras, depois as palavras e finalmente frases e parágrafos - mas sem compreender que aquelas palavras gregas têm um significado. Para os alunos elas são sons artificiais. É isso que me parece ser o ensino de ciências no Brasil".



Por isso, não nos preocupemos com o passado. Não há muito a perder, em um país onde o ensino era, no geral, ruim e elitizado.



Olhemos, portanto, para a frente. Os programas de apoio ao ensino básico têm procurado reverter o quadro de penúria do ensino público. O Fundef [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério] e agora o Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica] são exemplos importantes, como financiamento que estimula os professores e induz os governos estaduais e municipais a ampliar a oferta de vagas.



Em São Paulo, a Secretaria Municipal de Educação lançou um programa, Ler e Escrever - Prioridade da Escola Municipal, em que merecem destaque a preocupação permanente com o sucesso do estudante e a atenção especial aos estudantes do 1º ano. São esforços que tentam reverter o quadro de desânimo e aceitação do insucesso que tomou conta do ensino brasileiro e que é refletido na citação corriqueira: "O professor ganha mal e o aluno não tem formação, por isso não há nada a fazer, nem o professor precisa ensinar bem nem o aluno estudar". Esse pacto de mediocridade em nada ajudou, ou ajudará, nosso ensino.



Não podemos dizer que há um real movimento da sociedade no sentido de lutar pela qualidade da educação. Ainda é um setor em que a questão político-ideológica prepondera, as avaliações, quando existem, não têm conseqüências e não se aproveitam experiências bem-sucedidas em outros lugares


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Resumindo, é muito importante ampliar o acesso aos níveis fundamental e médio de ensino, sabendo que haverá problemas que precisam ser enfrentados. A eventual queda de qualidade não deve ser motivo para abandonar essa política, porque a busca de qualidade se fazia necessária muito antes da atual expansão. Havia mais qualidade, mas para muito poucos. A mesma lógica vale para o ensino superior.



Não há muito a perder, porque nosso ensino nunca primou pela excelência. O mais importante é que se saia da posição defensiva da queixa e da tolerância com o insucesso. É fundamental que diretores, professores, pais e alunos passem a ter obsessão pelo sucesso acadêmico para que o país possa vir a ter um crescimento compatível com seu potencial, o que sem educação é impossível. Se a educação não é suficiente para o desenvolvimento, ela é certamente necessária.



Roberto Leal Lobo e Silva Filho é ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), ex-reitor da Universidade de Mogi das Cruzes e diretor da Lobo & Associados Consultoria


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A qualidade de ensino no Brasil hoje

por Eunice R. Durham

Presenciamos no Brasil, durante toda a última década, um enorme aumento de número de crianças matriculadas no ensino fundamental de forma a praticamente universalizar o acesso a esse nível de ensino: cerca de 97% das crianças de 7 a 14 anos ou quase 35,3 milhões de alunos em 2002.O ensino médio teve uma aceleração do crescimento surpreendente a partir de 1995, dobrando o número de matrículas, que chegou, em 2002, a 8,4 milhões de estudantes.



Finalmente, no ensino superior também houve uma grande expansão a partir da década de 90, depois de dez anos de estagnação: assim, de 1,54 milhão de alunos em 1990, passamos para mais de 3 milhões em 2001, o que significa um crescimento de quase 100%.



Não se pode subestimar o tamanho desse esforço, especialmente no que diz respeito ao ensino básico. É preciso lembrar que, em 1950, mais da metade da população do país era analfabeta (50,6%) e, na faixa etária de 7 a 14 anos, apenas pouco mais de um terço freqüentava a escola (38,2%). Essa enorme expansão se deu, basicamente, no ensino público e gratuito.



Era de esperar que uma expansão tão acelerada provocasse uma queda na qualidade de ensino. Mas o decréscimo da qualidade tem sido excessivo.



Existem alguns problemas estruturais que só podem ser resolvidos a médio e a longo prazo. Em primeiro lugar existe, em todos os lugares do mundo, uma associação entre desempenho escolar das crianças e nível de escolaridade dos pais. No Brasil, essa associação é exacerbada em virtude de o sistema ter incluído parcelas crescentes de filhos de pais analfabetos ou com menos de quatro anos de escolarização, ao passo que, nos países desenvolvidos, a universalização da educação básica já havia ocorrido no século 19. O outro diferencial, altamente associado ao anterior, é o nível de renda. Sabemos todos que o Brasil apresenta um dos maiores índices de desigualdade econômica.



Crianças pobres, com pais pouco escolarizados, encontram grande dificuldade de adaptação ao ambiente escolar dominado pela escrita. Muitas delas provêm de lares nos quais não há nem papel, nem lápis para escrever ou desenhar, nem livros, nem revistas, nem jornais. Os pais não têm como orientar os filhos para superar as dificuldades escolares, e a escola não se equipou para suprir as dificuldades de familiarização com a linguagem escrita.



A escola não está equipada para ajudar esses alunos. Raramente há bibliotecas, de tal forma que o único contato da criança com os livros é com o livro didático, distribuído gratuitamente pelo governo - mas isso é muito pouco, especialmente quando nos damos conta de que o horário escolar é muito reduzido, chegando a menos de três horas diárias. Nos países desenvolvidos, o horário é de cinco a seis horas/dia e os alunos contam com apoio na escola para as tarefas fora da sala de aula (a lição de casa). As deficiências da escola constituem, portanto, outro fator importante na baixa qualidade média do ensino e no baixo desempenho dos alunos.



Além disso, a expansão se deu sem que houvesse um esforço de formação adequada de um número suficiente de professores capacitados. Antes dos anos 70, quando o ensino obrigatório passou de quatro para oito anos, o Brasil possuía um sistema organizado de formação de professores (ou, melhor, de professoras) primários em nível médio: eram as escolas normais, que ofereciam um curso de três anos, após o ginásio, que havia logrado integrar uma formação aprofundada em nível médio com uma formação profissional.



Com a reforma, o curso normal foi abandonado e precariamente substituído por uma mera habilitação no nível médio comum, que não se integrava com ele. Passou-se a privilegiar uma formação de nível superior, favorecendo os cursos de pedagogia, que não tinham (e ainda em grande parte não têm) a tradição da formação de professores para as séries iniciais, e nos quais, apesar de todos os discursos em contrário, não se logrou conciliar e integrar uma boa formação geral, para promover o domínio das matérias a ser ensinadas, com a formação para o exercício da profissão e a prática pedagógica.

Criou-se um círculo vicioso que envolve o professor pobremente habilitado, o horário reduzido, a escola desequipada, círculo esse que se completa com os baixos salários.



A questão dos baixos salários é complexa - ela não se resolve com um simples aumento salarial, pois este precisa estar associado a uma melhor preparação e um melhor desempenho dos professores. É necessário também resolver, simultaneamente, as deformações da carreira, pois não há estímulos monetários para desempenho diferencial.



Como conseqüência da estrutura da carreira, os salários iniciais são insuficientes para atrair pessoal com melhor desempenho escolar. As vantagens salariais se acumulam no fim da carreira e são incorporadas à aposentadoria. Nesse sistema, o salário médio dos professores aposentados é substancialmente superior ao dos docentes da ativa, onerando pesadamente a folha de pagamento. Qualquer aumento no salário dos docentes em início de carreira promove uma cascata de aumentos proporcionais em todos os níveis, dificultando enormemente uma remuneração mais justa para os iniciantes, capaz de atrair pessoal mais qualificado.



O resultado do conjunto desses fatores é documentado pelo Sistema de Avaliação do Ensino Básico (Saeb), que testa as competências e o desempenho dos alunos na 4ª e 8ª série do ensino fundamental e na 3ª série do ensino médio. O exame mostra os efeitos das deficiências da formação inicial nas séries subseqüentes. Nos três níveis de ensino, a maioria dos alunos está abaixo dos padrões considerados satisfatórios para o nível em questão. Mas a proporção de alunos com bom desempenho diminui da 4ª para a 8ª série e desta para a 3ª série do ensino médio. Este último nível é particularmente sacrificado e é aquele no qual há maior porcentagem de evasão. O fato de que a maioria desses alunos cursa o período noturno e está regularmente empregada certamente dificulta, e muito, o aproveitamento escolar. Esses resultados influem no acesso ao ensino superior, uma vez que apenas uma minoria dos egressos do ensino médio apresenta formação anterior suficiente para cursar com proveito a universidade.


A melhoria da qualidade do ensino básico depende de algumas alterações de longo prazo, como o aumento do nível de escolarização das famílias, que é um fator fortemente associado ao desempenho escolar.
O segundo fator estrutural é a desigualdade econômica. Esse fator, entretanto, não depende de ações diretamente sobre o sistema escolar.


Há, entretanto, políticas educacionais que podem a curto e médio prazo melhorar a qualidade do ensino e o desempenho dos alunos do curso básico.

A principal delas é a formação dos professores, especialmente os que trabalham nas séries iniciais, das quais depende o desempenho posterior. Para tanto, precisamos de uma reforma do sistema salarial nesse nível de ensino, que crie benefícios para os docentes mais dedicados, mais bem preparados e que trabalhem nas escolas que atendem as crianças mais pobres.

Para melhorar a qualidade do ensino e o aproveitamento dos alunos dever-se-á também, a curto prazo, aumentar o número de horas de permanência dos alunos na escola, de modo a atingir, rapidamente, pelo menos quatro horas de trabalho efetivo em sala de aula, num total de cinco horas de permanência, o que deveria estar associado a uma melhoria salarial para os docentes em virtude do prolongamento da jornada.



Também a curto prazo é necessário acelerar o processo de melhoria das escolas, equipando-as gradualmente com bibliotecas, computadores e recursos audiovisuais, estabelecendo horários de leitura e mantendo um ambiente limpo e organizado.


Programas já existentes que têm um grande alcance social e beneficiam diretamente os alunos mais pobres precisam ser mantidos: consistem no fornecimento gratuito de material didático e alimentação.


As deficiências do ensino público de nível básico influem no ensino superior. O sistema público em geral é de boa qualidade e, selecionando pelo vestibular, absorve um terço das matrículas. Isso corresponde à quase totalidade dos egressos do ensino médio que obtiveram um desempenho acima de satisfatório. De fato, a qualidade do ensino depende tanto de bons professores como de alunos com boa formação básica. Os demais dois terços, mal preparados, ingressam nas faculdades e universidades privadas de pior desempenho. A questão destas últimas (que constituem a maioria, mas não a totalidade do setor privado) é que, voltadas para o lucro, se preocupam muito pouco com a preparação dos alunos que recebem e com a qualidade do ensino que ministram. Um sistema de avaliação e recredenciamento dessas instituições seria uma solução viável.

Eunice R. Durham é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP)

 

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