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Fotografia

Revista E - Abril 2006

 

 


Olhar brasileiro


A fotografia retrata a trajetória sociocultural do país desde o Império, numa produção de qualidade, que garante destaque no cenário internacional



Em seu livro Formação da Literatura Brasileira (Editora Itatiaia, 1997), lançado em 1959, o crítico literário Antonio Candido inicia sua análise mostrando como a construção da identidade de uma determinada manifestação cultural - no caso, a literatura - tem como ponto de partida o estabelecimento de uma tradição nessa produção. Trata-se, segundo Candido, do início de uma sistematização na realização das obras, que formam uma rede. "Quando a atividade dos escritores de um dado período se integra em tal sistema", escreve o crítico, "ocorre outro elemento decisivo: a formação da continuidade literária, espécie de transmissão da tocha entre corredores, que assegura no tempo o movimento conjunto definindo os lineamentos de um todo". É detectando esse alicerce que se pode afirmar que um país possui lastro numa determinada produçãocultural. "Sem essa tradição não há literatura, como fenômeno da civilização", afirma.


É possível traçar um paralelo desse pensamento para explicar a solidez de outra faceta da cultura na qual o Brasil se destaca hoje: a fotografia. Se nomes como os de Sebastião Salgado, Cristiano Mascaro, Araquém Alcântara e Mario Cravo Neto, entre outros, são sinônimos de imagens aclamadas por críticos de vários países, é porque existe no país tradição nesse meio de expressão - um conjunto de obras que remonta a seus primórdios -, e não apenas alguns indivíduos talentosos. A trajetória teve início ainda no século 19. Por exemplo, no Brasil, mais precisamente na Vila de São Carlos, onde hoje fica a cidade de Campinas, interior de São Paulo, em 1833 o francês Hercules Florence (1804-1879) realizou tentativas pioneiras na área - "seis anos antes do anúncio oficial da descoberta da fotografia na França", como ressalta o livro Fotografia no Brasil: Um Olhar das Origens ao Contemporâneo (Funarte, 2004), de Angela Magalhães e Nadja Fonsêca Peregrino. O fato foi descoberto pelo fotógrafo e pesquisador Boris Kossoy e é explicado em seu livro Hercules Florence, a Descoberta Isolada da Fotografia no Brasil (Editora Duas Cidades, 1980) e que teve, em 2004, uma edição revista e ampliada lançada em espanhol pelo Instituto Nacional de Antropologia e História (INAH) do México. "Nas investigações que desenvolvi entre 1972 e 1976 foi possível comprovar histórica e tecnicamente a ocorrência de uma descoberta independente da fotografia no Brasil (e nas Américas) por Hercules Florence", conta Kossoy. "Florence era francês de Nice e aportou aqui em 1824 para participar como desenhista da famosa Expedição Langsdorff, que percorreu boa parte do território brasileiro".


Sete anos depois, o abade francês Louis Compte, de passagem pelo Rio de Janeiro, faz três daguerreótipos - imagens obtidas com um aparelho, de mesmo nome, capaz de fixá-las em placas de cobre cobertas com sais de prata -, acontecimento que viria a ser a primeira demonstração do funcionamento do processo na América Latina. Durante os anos de 1842 e 1843, o norte-americano Augustus Morand torna-se um dos "primeiros daguerreotipistas a exercer atividade fotográfica comercial no Brasil" - como relata o Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro (Instituto Moreira Salles, 2002), de Boris Kossoy -, retratando famílias no Rio de Janeiro em meados do século 19. Enfim, datas históricas não faltam. "A fotografia brasileira é importante e ponto. Historicamente, inclusive", enfatiza o professor, pesquisador e crítico de fotografia Rubens Fernandes Júnior. Segundo o crítico, esse arcabouço garantiu o apuro e o desenvolvimento do olhar do fotógrafo brasileiro - para ele, nosso grande diferencial. "O que destaca a nossa produção é principalmente o talento do nosso artista. Nós não temos no mercado brasileiro a gama de produtos que a Europa e os Estados Unidos têm, em termos de diversidade de papéis, químicas e equipamentos, nem temos fácil acesso ao que existe de importado. Por isso, o fotógrafo brasileiro tem de ser mais criativo na busca de suas soluções. Nesse sentido, o percurso é mais difícil, mas, ao mesmo tempo, muito mais vantajoso, afinal ele acaba se superando."


Veja a foto
O fato de a fotografia se aliar a outras linguagens também contribuiu para que, no Brasil, a produção fosse não só aprofundando suas raízes na vida social do país, mas também se alastrando por diversos campos - sobretudo, no jornalismo. Ao longo das décadas de 40, 50 e 60 revistas como O Cruzeiro (1942), Manchete (1952), Realidade (1967) - e também a Veja, criada em 1968 e existente até hoje - abriram espaço para o chamado fotojornalismo. O pesquisador Luís Humberto Martins Pereira, em seu livro Fotografia - Universos e Arrabaldes (Funarte, 1983), fala sobre esse momento em que a imagem passou a dividir espaço com o texto no noticiário: "O importante não era buscar mais espaço para a fotografia, mas evitar a atomização do elemento visual, (...) passando a considerar a fotografia como um item relevante e inteligente de informação e que, possuindo uma linguagem original, deveria carregar um conteúdo próprio e não ser apenas (...) um simples elemento gráfico de discutível importância".

Altos e baixos
Esses avanços, no entanto, não significam que a produção nacional esteja livre de dificuldades. Para o fotógrafo Thomaz Farkas a fotografia brasileira "tem qualidade internacional, sim, mas status não". Segundo ele, talentos não faltam em todo o país, mas ainda é preciso fazer muito em termos de divulgação desses trabalhos. "Nos EUA, por exemplo, há interesse, os museus compram fotografias, há as revistas de arte etc. Aqui ainda não", opina. O percurso tem muitos altos e baixos. Por exemplo, o baiano Mario Cravo Neto, que já expôs na Alemanha e nos EUA, teve uma foto comercializada por 30 mil dólares, segundo lembra o galerista Cliff Li, curador da filial brasileira da rede de galerias especializadas em fotografia Leica Gallery. O que é um valor considerável, se comparado ao cenário nacional. No entanto, o mercado internacional já chegou a pagar 700 mil dólares pelo trabalho do fotógrafo norte-americano Alfred Stieglitz (1864-1946). Como se pode ver, a perspectiva é outra.

Acervos importantes
Mercados à parte, é possível detectar, pelo crescimento e estruturação dos acervos fotográficos de algumas instituições culturais, e pela realização de exposições de fotografias brasileiras, que o interesse não está estagnado e que o valor dado à produção nacional tem crescido ao longo do tempo. Entre as principais coleções estão a do Instituto Moreira Salles (IMS), com 350 mil originais; a da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, que guarda as cerca de 25 mil fotos do tempo do Império, que pertenciam a dom Pedro II (veja boxe: Imperador bom de foto); a do acervo Pirelli-Masp, com aproximadamente 800 imagens; a da Fundação Pierre Verger, na Bahia, com 62 mil negativos; e a da própria Pinacoteca do Estado de São Paulo, que, embora possua apenas 250 obras, conta atualmente com uma curadoria exclusiva que visa justamente a organizar e explorar esse material da melhor forma possível.


No Instituto Moreira Salles, entre os 170 fotógrafos representados em suas coleções, pode-se encontrar trabalhos de precursores do século 19, como Augusto Stahl, Militão Augusto de Azevedo, Marc Ferrez, Guilherme Gaensly e Augusto Malta; nomes do século 20, caso de Hildegard Rosenthal, Alice Brill e Marcel Gautherot; e safras mais recentes, como Madalena Schwartz e Juca Martins.


Já a coleção que o Museu de Arte de São Paulo (Masp) e a Pirelli têm em comum, iniciada em 1991, aumenta o número de aquisições constantemente e uma vez por ano expõe recortes de seu acervo no próprio Masp. Entre os pontos positivos está um conselho consultivo experiente no assunto, formado por nomes como os do crítico Rubens Fernandes Júnior, do fotógrafo Thomaz Farkas e do fotógrafo e pesquisador Boris Kossoy, e 210 fotógrafos que representam, antes de tudo, a proficuidade da produção brasileira. "Esta é uma coleção de autores", explica Anna Carboncini, curadora e pesquisadora que coordena a coleção desde o lançamento. "O que nos interessa são os nomes fundamentais para compor um conjunto com o melhor da criação fotográfica contemporânea." E de fato estão lá, entre outros, German Lorca, representante da fotografia moderna paulistana, a pernambucana Alcir Lacerda, nome do estilo documental, e a gaúcha Adriana Vasquez, que tem como traço marcante de seu trabalho contar histórias.
Para compor o cenário, as imagens da Fundação Pierre Verger, criada pelo próprio em 1988, que funciona até hoje na mesma casa em que o francês viveu durante anos na Ladeira da Vila América, em Salvador, contam a história, não só do estrangeiro que se apaixonou pelo Brasil, mas também a do próprio país, que ele registrou em detalhes. Parte desse acervo, mais precisamente 800 imagens, pôde ser vista recentemente pelos paulistanos na exposição O Brasil de Pierre Verger, que ficou até o fim de março em cartaz no Museu de Arte Moderna de São Paulo. A mostra é composta de fotos que retratam o Brasil dos anos 40 e 50, sobretudo a partir de 1946, ano em que Verger chegou à Bahia. Ela poderá ser vista no Rio de Janeiro, de 30 de maio a 17 de julho, e em Salvador, de 5 de agosto - data em que Verger chegou à Baía de Todos os Santos - a 5 de outubro.




Produção atual
Acervos, museus, coleções. Iniciativas de preservação que contam a história da fotografia no Brasil e registram o passado. Mas há muito trabalho em curso. Novos nomes que estão garantindo a continuidade dessa tradição. "A produção atual ocupa lugar de destaque nas manifestações das artes visuais no Brasil e no mundo", conta Rubens Fernandes Júnior. "Ela é bem-vista tanto na Europa quanto nos EUA." Aliás, ainda segundo o crítico, pesquisas realizadas por revistas estrangeiras tradicionais no assunto, como a belga Cliché e a francesa Photo, no início dos anos 2000, colocam a produção brasileira em fotografia entre as cinco melhores do mundo. Mapear a atual produção é trabalho para pesquisador, mas alguns exemplos servem para dar idéia do que se tem feito de mais relevante na área. Parte dessa novidade vem da cidade de Crato, no Ceará, onde nasceu o fotógrafo Tiago Santana. Seu trabalho já pôde ser visto em duas ocasiões em São Paulo, ambas no Sesc Pompéia(veja boxe: Imagens e mais imagens): na exposição individual Benditos, em 2001, e nas fotos que fizeram parte do projeto O Chão de Graciliano, em 2003, evento que lembrou os 50 anos de morte do autor de Vidas Secas. Nos dois trabalhos, variações do mesmo enfoque: a vida e a paisagem do sertão nordestino. "Minha idéia é evitar a redundância através de um relato que transcenda o mero registro (jornalístico ou antropológico) e dê conta de toda uma carga de significações, optando pela dosagem de razão e emoção para captar a essência dessa manifestação de religiosidade popular", explica o fotógrafo em depoimento publicado no site do Itaú Cultural. "Embarcar no imaginário popular, fugindo dos estereótipos e buscando um resultado que não se feche em si mesmo, que não se explique por palavras, mas que esteja prenhe de emoção."


Representante ainda mais jovem da atual fase desse meio de expressão, a paulistana Gabriela Toledo explora novas formas de enxergar objetos comuns - como garrafas plásticas e peças de tecidos - só que de maneira fragmentada. Essa foi a tônica dos trabalhos apresentados na exposição Paisagens Submersas: Pequena Arqueologia do Descartável, em Brasília, no final do ano passado. "A proposta era mostrar uma paisagem submersa de dejetos urbanos", explica. "A câmera fotográfica busca desvelar esses fragmentos de texturas em diversos momentos da sua transformação."(veja boxe: Parece Mágica)


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veja boxes:
Imperador bom de foto
Imagens e mais imagens
Parece Mágica

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Imperador bom de foto

Curiosidades sobre dom Pedro II, um apaixonado pela fotografia

O herdeiro de dom Pedro I cresceu um homem das artes. E uma delas, particularmente, lhe despertou grande interesse: a fotografia. Pedro II, declarado imperador com apenas 15 anos, era amante e incentivador do processo. Atribuiu, em 1851, o título de "Photographo da Casa Imperial", ao retratista suíço Abraham Louis Buvelot, que exercia o ofício da daguerreotipia no Brasil - e foi pioneiro nesse tipo de honraria."Ele foi o primeiro monarca do mundo a ter seu fotógrafo oficial, por exemplo. Antes da rainha Vitória, da Inglaterra. Ou seja, nós temos uma tradição fotográfica", revela o professor, pesquisador e crítico de fotografia Rubens Fernandes Júnior. Além disso, ele próprio adquiriu um daguerreótipo e começou a produzir imagens, tornando-se o primeiro brasileiro a dedicar-se à fotografia.

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Imagens e mais imagens

A fotografia tem espaço garantido na programação das diversas unidades do Sesc São Paulo

Alguns dos maiores projetos realizados pelo Sesc São Paulo na área da cultura - levados a público por meio de suas unidades na capital e no interior - encontram na fotografia uma poderosa aliada. Às vezes, ela é o centro das atrações, como na mostra World Press Photo, realizada anualmente, e cuja versão brasileira é realizada no Sesc Pompéia, noutras é instrumento precioso de apoio, como quando ajudou a contar a história da São Paulo cantada nos sambas de Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini em evento no Sesc Vila Mariana, em março. Já o Sesc Carmo envolveu as crianças do Projeto Curumim na magia da fotografia na exposição Olhar em Preto e Branco, que exibiu, em fevereiro, 26 imagens feitas pelos participantes do programa por meio da técnica do pin hole - processo artesanal que se serve de latas ou caixas de papelão para a impressão de uma imagem em papel fotográfico (veja boxe Parece mágica). O resultado divertiu os fotógrafos mirins, uma vez que as imagens produzidas se assemelham a fotos antigas.

Neste mês, a fotografia é destaque no Sesc Santana, com a exposição Peixes, de Ângelo Pastorello, e também em oficinas e cursos regulares. O projeto Laboratório de Fotografia do Sesc Pinheiros vai abordar a produção em diferentes linguagens e técnicas, e, no Pompéia, a fotógrafa Patrícia Yamamoto ministrará as oficinas de iniciação em fotografia em preto e branco e de técnicas não convencionais de revelação.

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Parece mágica

Modalidade fotográfica artesanal, o pinhole revela o processo de captar imagens por meio da luz

O processo remete às primeiras experiências com as câmaras escuras, caixasvedadas com um pequeno furo feito em dos lados por onde passava um fio de luz que captava a imagem. O processo foi descoberto simultaneamente por diversos cientistas na Europa do século 16, entre eles o italiano Leonardo da Vinci, também consagrado como pintor de obras como a Mona Lisa. A seguir um passo-a- passo:

1.O pinhole pode ser feito com uma caixa de papelão ou uma lata, revestida de cartolina preta e arrematada com fita isolante.

2. Na técnica pinhole (buraco de alfinete em inglês), esse furo é feito com um alfinete, daí o nome.

3. No escuro, coloca-se um papel fotográfico preto e branco no lado oposto ao do furo.

4. A caixa é então levada à luz do dia e o orifício destampado. Como ponto de partida, o tempo de exposição é de cerca de 1 minuto. Em geral, é necessário fazer algumas tentativas até chegar ao tempo ideal de contato com a luz.

5. A luz entra na caixa e a atravessa, formando na parede oposta uma imagem
duplamente invertida, de cabeça para baixo e com os lados trocados.

6. Quanto menor o furo, maior a nitidez da imagem. O aumento progressivo do orifício faz com que a imagem vá perdendo o foco até desaparecer.

7. Depois do período de exposição à luz, a caixa é levada novamente para o escuro.
Só então ela pode ser aberta.

8. O papel fotográfico precisa passar por um processo de revelação com produtos químicos para o surgimento da imagem. O resultado é um negativo fotográfico.

 

 


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