
Olhar brasileiro
A fotografia retrata a trajetória sociocultural do país
desde o Império, numa produção de qualidade, que
garante destaque no cenário internacional
Em seu livro Formação da Literatura Brasileira (Editora
Itatiaia, 1997), lançado em 1959, o crítico literário
Antonio Candido inicia sua análise mostrando como a construção
da identidade de uma determinada manifestação cultural -
no caso, a literatura - tem como ponto de partida o estabelecimento de
uma tradição nessa produção. Trata-se, segundo
Candido, do início de uma sistematização na realização
das obras, que formam uma rede. "Quando a atividade dos escritores
de um dado período se integra em tal sistema", escreve o crítico,
"ocorre outro elemento decisivo: a formação da continuidade
literária, espécie de transmissão da tocha entre
corredores, que assegura no tempo o movimento conjunto definindo os lineamentos
de um todo". É detectando esse alicerce que se pode afirmar
que um país possui lastro numa determinada produçãocultural.
"Sem essa tradição não há literatura,
como fenômeno da civilização", afirma.
É possível
traçar um paralelo desse pensamento para explicar a solidez de
outra faceta da cultura na qual o Brasil se destaca hoje: a fotografia.
Se nomes como os de Sebastião Salgado, Cristiano Mascaro, Araquém
Alcântara e Mario Cravo Neto, entre outros, são sinônimos
de imagens aclamadas por críticos de vários países,
é porque existe no país tradição nesse meio
de expressão - um conjunto de obras que remonta a seus primórdios
-, e não apenas alguns indivíduos talentosos. A trajetória
teve início ainda no século 19. Por exemplo, no Brasil,
mais precisamente na Vila de São Carlos, onde hoje fica a cidade
de Campinas, interior de São Paulo, em 1833 o francês Hercules
Florence (1804-1879) realizou tentativas pioneiras na área - "seis
anos antes do anúncio oficial da descoberta da fotografia na França",
como ressalta o livro Fotografia no Brasil: Um Olhar das Origens ao
Contemporâneo (Funarte, 2004), de Angela Magalhães e
Nadja Fonsêca Peregrino. O fato foi descoberto pelo fotógrafo
e pesquisador Boris Kossoy e é explicado em seu livro Hercules
Florence, a Descoberta Isolada da Fotografia no Brasil (Editora Duas
Cidades, 1980) e que teve, em 2004, uma edição revista e
ampliada lançada em espanhol pelo Instituto Nacional de Antropologia
e História (INAH) do México. "Nas investigações
que desenvolvi entre 1972 e 1976 foi possível comprovar histórica
e tecnicamente a ocorrência de uma descoberta independente da fotografia
no Brasil (e nas Américas) por Hercules Florence", conta Kossoy.
"Florence era francês de Nice e aportou aqui em 1824 para participar
como desenhista da famosa Expedição Langsdorff, que percorreu
boa parte do território brasileiro".
Sete anos depois, o abade francês Louis Compte, de passagem pelo
Rio de Janeiro, faz três daguerreótipos - imagens obtidas
com um aparelho, de mesmo nome, capaz de fixá-las em placas de
cobre cobertas com sais de prata -, acontecimento que viria a ser a primeira
demonstração do funcionamento do processo na América
Latina. Durante os anos de 1842 e 1843, o norte-americano Augustus Morand
torna-se um dos "primeiros daguerreotipistas a exercer atividade
fotográfica comercial no Brasil" - como relata o Dicionário
Histórico-Fotográfico Brasileiro (Instituto Moreira
Salles, 2002), de Boris Kossoy -, retratando famílias no Rio de
Janeiro em meados do século 19. Enfim, datas históricas
não faltam. "A fotografia brasileira é importante e
ponto. Historicamente, inclusive", enfatiza o professor, pesquisador
e crítico de fotografia Rubens Fernandes Júnior. Segundo
o crítico, esse arcabouço garantiu o apuro e o desenvolvimento
do olhar do fotógrafo brasileiro - para ele, nosso grande diferencial.
"O que destaca a nossa produção é principalmente
o talento do nosso artista. Nós não temos no mercado brasileiro
a gama de produtos que a Europa e os Estados Unidos têm, em termos
de diversidade de papéis, químicas e equipamentos, nem temos
fácil acesso ao que existe de importado. Por isso, o fotógrafo
brasileiro tem de ser mais criativo na busca de suas soluções.
Nesse sentido, o percurso é mais difícil, mas, ao mesmo
tempo, muito mais vantajoso, afinal ele acaba se superando."
Veja a foto
O fato de a fotografia se aliar a outras linguagens também contribuiu
para que, no Brasil, a produção fosse não só
aprofundando suas raízes na vida social do país, mas também
se alastrando por diversos campos - sobretudo, no jornalismo. Ao longo
das décadas de 40, 50 e 60 revistas como O Cruzeiro (1942),
Manchete (1952), Realidade (1967) - e também a Veja,
criada em 1968 e existente até hoje - abriram espaço para
o chamado fotojornalismo. O pesquisador Luís Humberto Martins Pereira,
em seu livro Fotografia - Universos e Arrabaldes (Funarte, 1983),
fala sobre esse momento em que a imagem passou a dividir espaço
com o texto no noticiário: "O importante não era buscar
mais espaço para a fotografia, mas evitar a atomização
do elemento visual, (...) passando a considerar a fotografia como um item
relevante e inteligente de informação e que, possuindo uma
linguagem original, deveria carregar um conteúdo próprio
e não ser apenas (...) um simples elemento gráfico de discutível
importância".
Altos e baixos
Esses avanços, no entanto, não significam que a produção
nacional esteja livre de dificuldades. Para o fotógrafo Thomaz
Farkas a fotografia brasileira "tem qualidade internacional, sim,
mas status não". Segundo ele, talentos não faltam em
todo o país, mas ainda é preciso fazer muito em termos de
divulgação desses trabalhos. "Nos EUA, por exemplo,
há interesse, os museus compram fotografias, há as revistas
de arte etc. Aqui ainda não", opina. O percurso tem muitos
altos e baixos. Por exemplo, o baiano Mario Cravo Neto, que já
expôs na Alemanha e nos EUA, teve uma foto comercializada por 30
mil dólares, segundo lembra o galerista Cliff Li, curador da filial
brasileira da rede de galerias especializadas em fotografia Leica Gallery.
O que é um valor considerável, se comparado ao cenário
nacional. No entanto, o mercado internacional já chegou a pagar
700 mil dólares pelo trabalho do fotógrafo norte-americano
Alfred Stieglitz (1864-1946). Como se pode ver, a perspectiva é
outra.
Acervos
importantes
Mercados à parte, é possível detectar, pelo crescimento
e estruturação dos acervos fotográficos de algumas
instituições culturais, e pela realização
de exposições de fotografias brasileiras, que o interesse
não está estagnado e que o valor dado à produção
nacional tem crescido ao longo do tempo. Entre as principais coleções
estão a do Instituto Moreira Salles (IMS), com 350 mil originais;
a da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, que guarda as cerca de 25
mil fotos do tempo do Império, que pertenciam a dom Pedro II (veja
boxe: Imperador bom de foto); a do acervo Pirelli-Masp,
com aproximadamente 800 imagens; a da Fundação Pierre Verger,
na Bahia, com 62 mil negativos; e a da própria Pinacoteca do Estado
de São Paulo, que, embora possua apenas 250 obras, conta atualmente
com uma curadoria exclusiva que visa justamente a organizar e explorar
esse material da melhor forma possível.
No Instituto Moreira Salles, entre os 170 fotógrafos representados
em suas coleções, pode-se encontrar trabalhos de precursores
do século 19, como Augusto Stahl, Militão Augusto de Azevedo,
Marc Ferrez, Guilherme Gaensly e Augusto Malta; nomes do século
20, caso de Hildegard Rosenthal, Alice Brill e Marcel Gautherot; e safras
mais recentes, como Madalena Schwartz e Juca Martins.
Já a coleção que o Museu de Arte de São Paulo
(Masp) e a Pirelli têm em comum, iniciada em 1991, aumenta o número
de aquisições constantemente e uma vez por ano expõe
recortes de seu acervo no próprio Masp. Entre os pontos positivos
está um conselho consultivo experiente no assunto, formado por
nomes como os do crítico Rubens Fernandes Júnior, do fotógrafo
Thomaz Farkas e do fotógrafo e pesquisador Boris Kossoy, e 210
fotógrafos que representam, antes de tudo, a proficuidade da produção
brasileira. "Esta é uma coleção de autores",
explica Anna Carboncini, curadora e pesquisadora que coordena a coleção
desde o lançamento. "O que nos interessa são os nomes
fundamentais para compor um conjunto com o melhor da criação
fotográfica contemporânea." E de fato estão lá,
entre outros, German Lorca, representante da fotografia moderna paulistana,
a pernambucana Alcir Lacerda, nome do estilo documental, e a gaúcha
Adriana Vasquez, que tem como traço marcante de seu trabalho contar
histórias.
Para compor o cenário, as imagens da Fundação Pierre
Verger, criada pelo próprio em 1988, que funciona até hoje
na mesma casa em que o francês viveu durante anos na Ladeira da
Vila América, em Salvador, contam a história, não
só do estrangeiro que se apaixonou pelo Brasil, mas também
a do próprio país, que ele registrou em detalhes. Parte
desse acervo, mais precisamente 800 imagens, pôde ser vista recentemente
pelos paulistanos na exposição O Brasil de Pierre Verger,
que ficou até o fim de março em cartaz no Museu de Arte
Moderna de São Paulo. A mostra é composta de fotos que retratam
o Brasil dos anos 40 e 50, sobretudo a partir de 1946, ano em que Verger
chegou à Bahia. Ela poderá ser vista no Rio de Janeiro,
de 30 de maio a 17 de julho, e em Salvador, de 5 de agosto - data em que
Verger chegou à Baía de Todos os Santos - a 5 de outubro.
Produção
atual
Acervos, museus, coleções. Iniciativas de preservação
que contam a história da fotografia no Brasil e registram o passado.
Mas há muito trabalho em curso. Novos nomes que estão garantindo
a continuidade dessa tradição. "A produção
atual ocupa lugar de destaque nas manifestações das artes
visuais no Brasil e no mundo", conta Rubens Fernandes Júnior.
"Ela é bem-vista tanto na Europa quanto nos EUA." Aliás,
ainda segundo o crítico, pesquisas realizadas por revistas estrangeiras
tradicionais no assunto, como a belga Cliché e a francesa
Photo, no início dos anos 2000, colocam a produção
brasileira em fotografia entre as cinco melhores do mundo. Mapear a atual
produção é trabalho para pesquisador, mas alguns
exemplos servem para dar idéia do que se tem feito de mais relevante
na área. Parte dessa novidade vem da cidade de Crato, no Ceará,
onde nasceu o fotógrafo Tiago Santana. Seu trabalho já pôde
ser
visto em duas ocasiões em São Paulo, ambas no Sesc Pompéia(veja
boxe: Imagens e mais imagens): na exposição
individual Benditos, em 2001, e nas fotos que fizeram parte do
projeto O Chão de Graciliano, em 2003, evento que lembrou
os 50 anos de morte do autor de Vidas Secas. Nos dois trabalhos,
variações do mesmo enfoque: a vida e a paisagem do sertão
nordestino. "Minha idéia é evitar a redundância
através de um relato que transcenda o mero registro (jornalístico
ou antropológico) e dê conta de toda uma carga de significações,
optando pela dosagem de razão e emoção para captar
a essência dessa manifestação de religiosidade popular",
explica o fotógrafo em depoimento publicado no site do Itaú
Cultural. "Embarcar no imaginário popular, fugindo dos estereótipos
e buscando um resultado que não se feche em si mesmo, que não
se explique por palavras, mas que esteja prenhe de emoção."
Representante ainda mais jovem da atual fase desse meio de expressão,
a paulistana Gabriela Toledo explora novas formas de enxergar objetos
comuns - como garrafas plásticas e peças de tecidos - só
que de maneira fragmentada. Essa foi a tônica dos trabalhos apresentados
na exposição Paisagens Submersas: Pequena Arqueologia
do Descartável, em Brasília, no final do ano passado.
"A proposta era mostrar uma paisagem submersa de dejetos urbanos",
explica. "A câmera fotográfica busca desvelar esses
fragmentos de texturas em diversos momentos da sua transformação."(veja
boxe: Parece Mágica)
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ao início
veja
boxes:
Imperador bom de foto
Imagens e mais imagens
Parece Mágica
Imperador
bom de foto
Curiosidades
sobre dom Pedro II, um apaixonado pela fotografia
O herdeiro de dom Pedro I cresceu um homem das artes. E uma delas,
particularmente, lhe despertou grande interesse: a fotografia. Pedro
II, declarado imperador com apenas 15 anos, era amante e incentivador
do processo. Atribuiu, em 1851, o título de "Photographo
da Casa Imperial", ao retratista suíço Abraham
Louis Buvelot, que exercia o ofício da daguerreotipia no
Brasil - e foi pioneiro nesse tipo de honraria. "Ele
foi o primeiro monarca do mundo a ter seu fotógrafo oficial,
por exemplo. Antes da rainha Vitória, da Inglaterra. Ou seja,
nós temos uma tradição fotográfica",
revela o professor, pesquisador e crítico de fotografia Rubens
Fernandes Júnior. Além disso, ele próprio adquiriu
um daguerreótipo e começou a produzir imagens, tornando-se
o primeiro brasileiro a dedicar-se à fotografia.
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Imagens
e mais imagens
A
fotografia tem espaço garantido na programação
das diversas unidades do Sesc São Paulo
Alguns dos maiores projetos realizados pelo Sesc São Paulo
na área da cultura - levados a público por meio de
suas unidades na capital e no interior - encontram na fotografia
uma poderosa aliada. Às vezes, ela é o centro das
atrações, como na mostra World Press Photo, realizada
anualmente, e cuja versão brasileira é realizada no
Sesc Pompéia, noutras é instrumento precioso de apoio,
como quando ajudou a contar a história da São Paulo
cantada nos sambas de Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini em evento
no Sesc Vila Mariana, em março. Já o Sesc Carmo envolveu
as crianças do Projeto Curumim na magia da fotografia na
exposição Olhar em Preto e Branco, que exibiu, em
fevereiro, 26 imagens feitas pelos participantes do programa por
meio da técnica do pin hole - processo artesanal que se serve
de latas ou caixas de papelão para a impressão de
uma imagem em papel fotográfico (veja boxe Parece mágica).
O resultado divertiu os fotógrafos mirins, uma vez que as
imagens produzidas se assemelham a fotos antigas.
Neste mês, a fotografia é destaque no Sesc Santana,
com a exposição Peixes, de Ângelo Pastorello,
e também em oficinas e cursos regulares. O projeto Laboratório
de Fotografia do Sesc Pinheiros vai abordar a produção
em diferentes linguagens e técnicas, e, no Pompéia,
a fotógrafa Patrícia Yamamoto ministrará as
oficinas de iniciação em fotografia em preto e branco
e de técnicas não convencionais de revelação.
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Parece
mágica
Modalidade
fotográfica artesanal, o pinhole revela o processo de captar
imagens por meio da luz
O processo remete
às primeiras experiências com as câmaras escuras,
caixas vedadas
com um pequeno furo feito em dos lados por onde passava um fio de
luz que captava a imagem. O processo foi descoberto simultaneamente
por diversos cientistas na Europa do século 16, entre eles
o italiano Leonardo da Vinci, também consagrado como pintor
de obras como a Mona Lisa. A seguir um passo-a- passo:
1.O pinhole
pode ser feito com uma caixa de papelão ou uma lata, revestida
de cartolina preta e arrematada com fita isolante.
2. Na técnica
pinhole (buraco de alfinete em inglês), esse furo é
feito com um alfinete, daí o nome.
3. No escuro,
coloca-se um papel fotográfico preto e branco no lado oposto
ao do furo.
4. A caixa é
então levada à luz do dia e o orifício destampado.
Como ponto de partida, o tempo de exposição é
de cerca de 1 minuto. Em geral, é necessário fazer
algumas tentativas até chegar ao tempo ideal de contato com
a luz.
5. A luz entra
na caixa e a atravessa, formando na parede oposta uma imagem
duplamente invertida, de cabeça para baixo e com os lados
trocados.
6. Quanto menor
o furo, maior a nitidez da imagem. O aumento progressivo do orifício
faz com que a imagem vá perdendo o foco até desaparecer.
7. Depois do
período de exposição à luz, a caixa
é levada novamente para o escuro.
Só então ela pode ser aberta.
8. O papel fotográfico
precisa passar por um processo de revelação com produtos
químicos para o surgimento da imagem. O resultado é
um negativo fotográfico.
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