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Ficção Inédita

Revista E - Abril 2006

 

 

DESDE 70

por Luis Fernando Verissimo

Lembra da Copa do Mundo de 1970?
- Lembro. No sofá lá de casa. Nós dois namorando. Cada vez que entrava alguém na sala a gente tinha que fingir que estava vendo o jogo.
- E ninguém sabia bem se devia torcer pela seleção ou não. Era o tempo da ditadura militar. Poderia parecer que a gente estava torcendo pela ditadura.
- Isso era coisa daquela sua turma de esquerda. Você bem que vibrou com a vitória do Brasil. E eu torci pela seleção o tempo todo.
- Lembra da Copa de 74?
- Não. Engraçado: não tenho nenhuma lembrança da Copa de 74...
- Claro que não. Você estava no hospital, tendo a Aninha.
- É mesmo. Você estava com medo que o parto coincidisse com algum jogo do Brasil. Quando ela nasceu, você chegou no hospital irritado.
- O Brasil tinha sido eliminado pela Holanda.
- Seu bom humor só voltou quando você segurou a Aninha no colo.
- E isso que ela tinha uma carinha de holandesa...
- A Aninha. Quem diria. Hoje ela está aí, com a Adriana, uma filha de 14 anos... Qualquer dia nós vamos ter bisneto.
- Na outra Copa o Carlos Alberto já tinha nascido?
- Na de 78? Tinha 2 anos. Aquela não foi na Argentina?
- Nem me fala. Uma vergonheira.
- Nossa primeira TV a cores...
- A Argentina comprou a Copa. Até hoje não me convenço que não comprou.
- Calma. Olha o coração.
- Só de lembrar...
- Depois veio a Copa de 82.
- Precisava me lembrar?
- 1982...
- Tínhamos um timaço. Falcão, Sócrates, Zico, Cerezo... Todos em grande forma.
- Não foi o ano da nossa crise?
- Crise?
- É. Você esqueceu? Eu saí de casa com as crianças.
- É mesmo. Foi a primeira Copa que eu assisti sozinho... Não tínhamos como perder aquela. E perdemos. Por que foi?
- Não sei. Os italianos jogaram melhor do que nós.
- Não, por que foi a nossa crise?
- Você tem certeza que quer falar sobre isso? Faz tanto tempo.
- Eu não mereci aquilo.
- Mereceu. Faça um esforço de memória. Mereceu. Não sei se mereceu eu ter voltado para casa.
- Não, eu não mereci o Brasil ter perdido aquela Copa. Com aquele time, não podia perder. Foi o melhor time que já tivemos!
- A Copa seguinte qual foi?
- 1986. Guadalajara, México.
- 1986 foi o ano que a mamãe morreu. E que tivemos o problema com a Aninha, lembra?
- É. A Aninha com 16 anos. Aquele namorado dela, como é que se chamava?
- Rocão.
- Rocão! Os dois no sofá da sala, e quando a gente entrava eles fingiam que estavam vendo televisão.
- Não era o Rocão que não gostava de futebol?
- É. Dizia: "Não me ligo, não me ligo". Imagine, um brasileiro que não se ligava em futebol nem numa Copa. E ainda por cima era maconheiro.
- Aquele jogo Brasil e França foi muito bonito.
- Bonito, nada. Um desastre. Perdemos nos pênaltis. O Sócrates perdeu um pênalti!
- Calma!
- Depois veio a Copa de 90, na Itália. Quando fomos desclassificados pela Argentina. Eu posso?
- Tudo isso já passou. Calma.
- Calma... Perder para a Argentina dói.
- Olha o seu coração!
- Mas aí veio 94. Estados Unidos.
- Foi o ano que mudamos de casa e eu fiz a plástica que você nem notou.
- É. E em que o Carlos Alberto só queria ver basquete americano na TV. Meu próprio filho, fanático por basquete americano, em vez de fanático por futebol. E é claro que eu notei a sua plástica.
- Só quando a Aninha chamou sua atenção.
- Lavamos a alma contra a Itália.
- Depois 98...
- Aquela história estranha com o Ronaldo. Até hoje desconfio que tinha argentino no meio.
- Mas a derrota foi para a França. E você teve a sua ameaça de enfarte.
- Sei lá. A vingança veio em 2002, no Japão. A França nem se classificou, e o Ronaldo ganhou a Copa para o Brasil. Que maravilha!
- E vem outra Copa aí. Acho melhor já reservarmos nosso lugar no sofá. A Adriana e o namoradinho dela estão na fase de fingir que vêem televisão quando a gente entra na sala.
- Só temos que garantir a posse do controle remoto. A questão é quem controla o controle.
- E você tem que me prometer que não vai se exasperar demais. Olha o coração.
- Eu, me exasperar por quê? Com esse time, não podemos perder. É o melhor time que já tivemos!



Luis Fernando Verissimo é autor, entre outros, de O Opositor (Editora Objetiva, 2005) e criador dos personagens As Cobras e O Analista de Bagé


 

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