Com
todas as palavras
Em conversa com
a Revista E, o ator Luís Melo fala de teatro, televisão
e da relação com a platéia
Boa parte da vida do ator Luís Melo foi vivida no palco. Entre
outros, no palco do Teatro Anchieta, do Centro de Pesquisa Teatral do
Sesc Consolação, onde atuou sob direção de
Antunes Filho em montagens como Trono de Sangue (1992) e Gilgamesh (1995).
Já o grande público veio a conhecer o talento desse curitibano
quando ele estreou na tela da Rede Globo na novela Cara e Coroa, de Antônio
Calmon - papel que lhe rendeu o prêmio da Associação
Paulista dos Críticos de Arte (APCA), como ator revelação
em televisão. Seu último personagem na telinha foi o Coronel
Licurgo, um vilão na minissérie JK, escrita por Maria Adelaide
Amaral, Geraldo Carneiro e Alcides Nogueira, também da Globo. Tantos
papéis vividos na TV, porém, não fizeram sombra à
sua paixão incondicional pelo teatro. "Na verdade, a elevisão,
principalmente no Brasil, se tornou necessária para o ator poder
continuar desenvolvendo um trabalho e envelhecer fazendo aquilo de que
gosta", afirma. O mais recente fruto dessa paixão é
o espetáculo Daqui a Duzentos Anos, produção do Ateliê
de Criação Teatral (ACT), criado pelo próprio Melo
em Curitiba. A peça, dirigida por Márcio Abreu, reúne
três contos do autor russo Anton Tchekhov (1860-1904): O Amor, Brincadeira
e O Caso do Champagne. No palco, além de Luís Melo, estão
André Coelho, Janja, Carolina Fauquemont e Edith Camargo. "Escolhemos
Anton Tchekhov porque sentimos necessidade de um trabalho mais profundo
com a palavra", explicou o ator em conversa com a Revista E. A seguir,
trechos.
Contos e simplicidade
Depois de seis meses de pesquisa, optamos por desenvolver um trabalho
em cima dos contos de Anton Tchekhov - formato por meio do qual ele se
iniciou no exercício da dramaturgia, dos personagens e das situações
dramáticas, até conseguir atingir uma simplicidade característica
de sua obra. Ele fala de coisas profundas de maneira objetiva, sem floreios.
O espetáculo não conta com nada além do prazer do
ator em contar uma bela história para alguém. A gente não
usa nenhum recurso de figurino ou cenário. Somente o tablado. Desse
modo, pegamos a palavra de frente, de cara e por inteiro.
Em se tratando de Tchekhov, muitas vezes em virtude da dificuldade de
transpor a história para o palco somente com a palavra, é
muito mais fácil adaptar, dividir o conto, apresentar os personagens
e até retirar partes que supostamente poderiam ser substituídas
pela força do gesto em detrimento da força das palavras.
Assim se esconde o problema da dificuldade de lidar com a palavra, jogando-o
para debaixo do tapete, por meio de outros recursos. O teatro brasileiro,
infelizmente, pela incapacidade muitas vezes dos próprios atores
de compreensão do texto - e da dificuldade de dizê-lo -,
caracteriza-se muito mais pela força dos gestos e da imagem do
que da palavra. Por isso, tivemos de ampliar os instrumentos de expressão.
Não adianta florear a palavra para depois ela não ser compreendida.
Esse espetáculo deixa o ator completamente desarmado. É
preciso simplesmente contar a história, como faziam os contadores.
E não existe uma fórmula para isso. O que existe, sim, é
o prazer e a necessidade de contar alguma coisa a alguém. Daí
a surpresa que tive com o reconhecimento que representou a premiação
da Associação Paulista de Críticos de Arte, a APCA
[Luís Melo foi premiado como melhor ator em 2005, por sua atuação
em Daqui a Duzentos Anos]. Trata-se de uma peça na qual se utiliza
o recurso do ator, mas de uma forma muito mais pura e honesta.
Resposta da platéia
Não temos nada no palco a não ser a força da palavra,
uma bela história para contar e a capacidade do ator de conseguir
segurar a atenção das pessoas. É com isso que esperamos
fazer com que o público acompanhe o espetáculo e, quem sabe,
queira voltar no outro dia para escutar a mesma história. E até
que o pessoal volta. Existem pessoas que vêm assistir ao espetáculo
três, quatro vezes. Uma vez eu perguntei a um deles por que voltar
tantas vezes, e essa pessoa me disse que o espetáculo resgatava
muito do seu tempo de criança. E, de fato, às vezes, ao
contar uma história nova para uma criança, chega-se no meio
e ela fala: "Não, conta aquela outra". Em compensação,
se a história for boa e a maneira de contar também, a criança
vai escutar essa história muitas vezes e não vai se cansar.
A platéia recebe muito bem o espetáculo, principalmente
porque o amor é o tema principal. Trata-se de contos muito simples,
escritos para jornal, o que possibilitava que Tchekhov tivesse um retorno
imediato, já que o público escrevia para ele dizendo se
tinha gostado ou não. E assim também foi amadurecendo o
espetáculo, nessa relação com a platéia. Pois
a verdade é que não há como você ensaiar apenas
fingindo que está contando uma história e fingindo que tem
alguém na platéia. Daqui a Duzentos Anos é muito
direto, ou seja, quanto mais o público tem contato com o espetáculo,
mais ele funciona.
Ator de televisão
A TV, principalmente no Brasil, se tornou necessária para o ator
poder continuar desenvolvendo um trabalho e envelhecer fazendo aquilo
de que gosta. Você não consegue viver e desenvolver projetos
só fazendo teatro. A gente ainda não tem uma lei, um apoio,
que possibilite o envelhecimento com dignidade. Então, a televisão
é uma maneira de você popularizar mais seu trabalho. Infelizmente
se você não está na mídia é muito difícil
conseguir apoios e recursos - algo que está ligado a todo um problema
cultural nosso. Sinto prazer no que faço [na TV], tem o lado ruim
e o lado bom, porque envolve as relações pessoais. E muitas
vezes você consegue trabalhar com um ator na TV que dificilmente
conseguiria trabalhar no teatro. Existe também a troca de gerações,
que é muito grande dentro da televisão. É ótimo
trabalhar em uma obra fechada, você faz parte da criação
e consegue trabalhar o início, o meio e o fim. Existe uma diferença
entre ator e artista, o ator é aquele que vai e executa, o artista
é aquele que faz parte de um processo de criação.
Quando você não sabe o que vai acontecer com seu personagem
e não consegue fazer parte do processo de criação,
o trabalho se torna bastante desgastante. Hoje em dia, a TV é muito
dependente do Ibope. Há também muito poder preestabelecido
na mão do autor e dos diretores; com isso, quem acaba sofrendo
as conseqüências são os atores. Na televisão
dificilmente se consegue ser artista, lá você acaba sendo
somente ator e procura executar a tarefa da melhor forma possível.
Quando se tem oportunidade de pegar bons trabalhos, com bons autores,
consegue-se um excelente resultado.
O espetáculo
Daqui a Duzentos Anos, que esteve em temporada no Sesc Belenzinho, circula
ainda pelas unidades do interior. Confira
a programação
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