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Revista E - Abril 2006

 

 

Com todas as palavras

Em conversa com a Revista E, o ator Luís Melo fala de teatro, televisão e da relação com a platéia


Boa parte da vida do ator Luís Melo foi vivida no palco. Entre outros, no palco do Teatro Anchieta, do Centro de Pesquisa Teatral do Sesc Consolação, onde atuou sob direção de Antunes Filho em montagens como Trono de Sangue (1992) e Gilgamesh (1995). Já o grande público veio a conhecer o talento desse curitibano quando ele estreou na tela da Rede Globo na novela Cara e Coroa, de Antônio Calmon - papel que lhe rendeu o prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), como ator revelação em televisão. Seu último personagem na telinha foi o Coronel Licurgo, um vilão na minissérie JK, escrita por Maria Adelaide Amaral, Geraldo Carneiro e Alcides Nogueira, também da Globo. Tantos papéis vividos na TV, porém, não fizeram sombra à sua paixão incondicional pelo teatro. "Na verdade, a elevisão, principalmente no Brasil, se tornou necessária para o ator poder continuar desenvolvendo um trabalho e envelhecer fazendo aquilo de que gosta", afirma. O mais recente fruto dessa paixão é o espetáculo Daqui a Duzentos Anos, produção do Ateliê de Criação Teatral (ACT), criado pelo próprio Melo em Curitiba. A peça, dirigida por Márcio Abreu, reúne três contos do autor russo Anton Tchekhov (1860-1904): O Amor, Brincadeira e O Caso do Champagne. No palco, além de Luís Melo, estão André Coelho, Janja, Carolina Fauquemont e Edith Camargo. "Escolhemos Anton Tchekhov porque sentimos necessidade de um trabalho mais profundo com a palavra", explicou o ator em conversa com a Revista E. A seguir, trechos.

Contos e simplicidade
Depois de seis meses de pesquisa, optamos por desenvolver um trabalho em cima dos contos de Anton Tchekhov - formato por meio do qual ele se iniciou no exercício da dramaturgia, dos personagens e das situações dramáticas, até conseguir atingir uma simplicidade característica de sua obra. Ele fala de coisas profundas de maneira objetiva, sem floreios. O espetáculo não conta com nada além do prazer do ator em contar uma bela história para alguém. A gente não usa nenhum recurso de figurino ou cenário. Somente o tablado. Desse modo, pegamos a palavra de frente, de cara e por inteiro.
Em se tratando de Tchekhov, muitas vezes em virtude da dificuldade de transpor a história para o palco somente com a palavra, é muito mais fácil adaptar, dividir o conto, apresentar os personagens e até retirar partes que supostamente poderiam ser substituídas pela força do gesto em detrimento da força das palavras. Assim se esconde o problema da dificuldade de lidar com a palavra, jogando-o para debaixo do tapete, por meio de outros recursos. O teatro brasileiro, infelizmente, pela incapacidade muitas vezes dos próprios atores de compreensão do texto - e da dificuldade de dizê-lo -, caracteriza-se muito mais pela força dos gestos e da imagem do que da palavra. Por isso, tivemos de ampliar os instrumentos de expressão. Não adianta florear a palavra para depois ela não ser compreendida. Esse espetáculo deixa o ator completamente desarmado. É preciso simplesmente contar a história, como faziam os contadores. E não existe uma fórmula para isso. O que existe, sim, é o prazer e a necessidade de contar alguma coisa a alguém. Daí a surpresa que tive com o reconhecimento que representou a premiação da Associação Paulista de Críticos de Arte, a APCA [Luís Melo foi premiado como melhor ator em 2005, por sua atuação em Daqui a Duzentos Anos]. Trata-se de uma peça na qual se utiliza o recurso do ator, mas de uma forma muito mais pura e honesta.

Resposta da platéia
Não temos nada no palco a não ser a força da palavra, uma bela história para contar e a capacidade do ator de conseguir segurar a atenção das pessoas. É com isso que esperamos fazer com que o público acompanhe o espetáculo e, quem sabe, queira voltar no outro dia para escutar a mesma história. E até que o pessoal volta. Existem pessoas que vêm assistir ao espetáculo três, quatro vezes. Uma vez eu perguntei a um deles por que voltar tantas vezes, e essa pessoa me disse que o espetáculo resgatava muito do seu tempo de criança. E, de fato, às vezes, ao contar uma história nova para uma criança, chega-se no meio e ela fala: "Não, conta aquela outra". Em compensação, se a história for boa e a maneira de contar também, a criança vai escutar essa história muitas vezes e não vai se cansar.


A platéia recebe muito bem o espetáculo, principalmente porque o amor é o tema principal. Trata-se de contos muito simples, escritos para jornal, o que possibilitava que Tchekhov tivesse um retorno imediato, já que o público escrevia para ele dizendo se tinha gostado ou não. E assim também foi amadurecendo o espetáculo, nessa relação com a platéia. Pois a verdade é que não há como você ensaiar apenas fingindo que está contando uma história e fingindo que tem alguém na platéia. Daqui a Duzentos Anos é muito direto, ou seja, quanto mais o público tem contato com o espetáculo, mais ele funciona.

Ator de televisão
A TV, principalmente no Brasil, se tornou necessária para o ator poder continuar desenvolvendo um trabalho e envelhecer fazendo aquilo de que gosta. Você não consegue viver e desenvolver projetos só fazendo teatro. A gente ainda não tem uma lei, um apoio, que possibilite o envelhecimento com dignidade. Então, a televisão é uma maneira de você popularizar mais seu trabalho. Infelizmente se você não está na mídia é muito difícil conseguir apoios e recursos - algo que está ligado a todo um problema cultural nosso. Sinto prazer no que faço [na TV], tem o lado ruim e o lado bom, porque envolve as relações pessoais. E muitas vezes você consegue trabalhar com um ator na TV que dificilmente conseguiria trabalhar no teatro. Existe também a troca de gerações, que é muito grande dentro da televisão. É ótimo trabalhar em uma obra fechada, você faz parte da criação e consegue trabalhar o início, o meio e o fim. Existe uma diferença entre ator e artista, o ator é aquele que vai e executa, o artista é aquele que faz parte de um processo de criação. Quando você não sabe o que vai acontecer com seu personagem e não consegue fazer parte do processo de criação, o trabalho se torna bastante desgastante. Hoje em dia, a TV é muito dependente do Ibope. Há também muito poder preestabelecido na mão do autor e dos diretores; com isso, quem acaba sofrendo as conseqüências são os atores. Na televisão dificilmente se consegue ser artista, lá você acaba sendo somente ator e procura executar a tarefa da melhor forma possível. Quando se tem oportunidade de pegar bons trabalhos, com bons autores, consegue-se um excelente resultado.


O espetáculo Daqui a Duzentos Anos, que esteve em temporada no Sesc Belenzinho, circula ainda pelas unidades do interior. Confira a programação




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