Conexão
leste-oeste
Encontrados
quase por acaso, 15 filmes de animação produzidos na antiga
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS)
revelam a rica produção do gênero na região
Cortina de ferro era
a expressão usado para designar o muro imaginário que dividiu
o mundo entre comunistas e capitalistas por mais de quatro décadas
após a Segunda Guerra Mundial. O peso do termo é indicativo
da cegueira que acometia alguns países sobre o povo e a cultura
de outros. A divisão era clara: de um lado, o fechado regime comunista;
do outro, o capitalista, que tinha entre suas prioridades evitar a propagação
dos ideais do bloco de lá. Somem-se a isso as ditaduras militares
que tomaram países do chamado Terceiro Mundo a partir da década
de 60 - grande parte delas nas nações latino-americanas,
inclusive o Brasil - e o resultado foi comunicação zero
e ausência de circulação de produções
artísticas. Tanto que ainda se desenterram tesouros perdidos por
muito tempo - um deles exibido em março no Sesc Ipiranga. Trata-se
de 15 animações produzidas entre os anos 60 e 70 na União
Soviética, material que veio à luz na Mostra de Filmes
de Animação Soviéticos das Décadas de 60 e
70 (veja boxe: Traços históricos)
e fez a alegria dos amantes do cinema, da animação e de
produções obscuras candidatas a ganhar o selo cult.
De 14 a 19 de março, o público teve acesso, por meio dos
filmes, a um breve panorama da vida e dos costumes soviéticos naqueles
tempos, além de se inteirar das técnicas usadas nos trabalhos.
"É possível conferir as possibilidades da aquarela,
do guache, do carvão, do stop-motion e muitas outras",
afirma Hernani Heffner, curador-assistente e conservador-chefe da Cinemateca
do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, que co-assina a curadoria
do evento(veja boxe: Para encher os olhos).
Quem dividiu a tarefa com Hernani foi a produtora de cinema Eliana Cobbett,
uma das responsáveis por esses títulos terem chegado aqui.
Durante parte das décadas de 50 e 60, ela era gerente da extinta
produtora e distribuidora Tabajara Filmes - que funcionou de 1955 a 1964
e tinha seu marido, o cineasta William Cobbett, como sócio -, uma
das responsáveis pela vinda de produções do Leste
Europeu para o Brasil. "Todos os filmes eram importados legalmente
até 1963", lembra. Até que, um ano depois, os militares
tomaram o poder no Brasil e instauraram a ditadura que duraria mais de
20 anos. "Aí foi uma verdadeira caça às bruxas.
Para que o vandalismo não detonasse todo o material, enviamos parte
dele para a Cinemateca do MAM do Rio de Janeiro. Assim foram salvas algumas
cópias", conta ela. As fitas exibidas no Sesc Ipiranga ficaram
perdidas durante anos nos fundos da casa de Eliana, até que, poeira
mais que baixada, foram encontradas, restauradas e vieram a público.
Competição
com a Disney
O precursor do gênero na União Soviética foi o polonês
radicado na Rússia Ladislau Starewich. De acordo com o texto Panorama
da Animação Soviética Clássica, escrito
pelo curador Hernani Heffner para a mostra, Starewich "inaugurou
a primeira grande tendência da área no país, usando
a liberdade do desenho para uma aproximação com as vanguardas
em voga na Europa durante as décadas de 10 e 20". O curador
afirma ainda que a própria revolução de 1917, que
tirou o país das mãos dos czares e marcou a ascensão
do comunismo, estimulou esse tipo de pesquisa em sintonia com um ímpeto
inicial de revolucionar também as artes, muito embora os filmetes
assumissem a função de ajudar na "propaganda dos novos
tempos". Teria sido ainda por questões políticas que
surgiu a primeira grande geração de animadores soviéticos,
entre os quais se destacaram Ivan Ivanov-Vano, Mikhail Tchekanovski e
Nikolai Kodataev. Segundo Hernani, isso está ligado ao fato de
o ditador Josef Stalin (1879-1953) - o sucessor de Lenin no comando da
URSS, que dirigiu o país do fim da década de 20 ao início
dos anos 50 - ter admitido que pequenos estúdios desenvolvessem
animações no país para competir com a Disney, a poderosa
empresa fundada em 1923 por Walt Disney e seu irmão Roy Oliver
Disney. A necessidade política de uma animação soviética
maciça e de qualidade ampliou a pesquisa nesse campo, que chegou
até mesmo a experimentar certo vanguardismo em sua produção.
No entanto, Stalin acabou inviabilizando essa tendência. "Até
a ascensão de Nikita Kruschev, em meados dos anos 50, com sua crítica
aos desmandos stalinistas e a proclamação de uma maior liberdade
artística, a animação soviética viveu um período
de extremo conservadorismo de temas, técnicas e estéticas",
explica Hernani. Mesmo assim, segundo ele, os anos 30, 40 e 50 foram uma
época muito importante para esse tipo de produção
porque nesses anos se consolidou o mercado local para o gênero.
Identidade
própria
As animações que vieram para o Brasil já são
fruto dessa abertura. Em 1956, com a chegada de Kruschev ao poder, a União
Soviética entrou num período de maior liberalização
do regime. Na área agrícola, econômica e tecnológica,
os avanços foram grandes - foi em 1957, por exemplo, que os russos
lançaram a Sputnik ao espaço. Uma das mais importantes mudanças
ocorreu, no entanto, no campo político, com um processo de abertura
que, entre outras coisas, amenizou o rigor da censura. Esse processo recebeu
os nomes de degelo ou desestalinização - uma tentativa de
apagar as marcas da mão pesada do governo de Stalin. As artes,
claro, agradeceram o respiro, e foi assim que se descortinou toda uma
geração de animadores. "Fugindo do parâmetro
disneyano, nomes como Fiodor Khitruk, Anatali Petrov e Vadim Kurchevski
recolocam a animação soviética na ordem do dia, utilizando-se
do surrealismo à la Chagall", escreve o curador Hernani Heffner,
referindo-se ao pintor russo radicado em Paris Marc Chagall (1887-1985),
considerado um dos líderes da vanguarda de sua época. Nessa
nova fase, segundo ele, as animações passaram a revelar
traços da iconografia russa e a tocar em temas como o contraste
entre a perspectiva socialista e os problemas do mundo industrial ocidental.
"A maioria dos filmes se destinava a um público infanto-juvenil,
dentro do espírito de competição com a animação
soviética que norteava a produção dos Estados Unidos.
São em sua maioria adaptações de contos infantis
e de manifestações folclóricas. Contudo, buscavam
um apuro maior de acabamento e o uso de técnicas diferenciadas
para a composição da imagem e a feitura da animação,
explorando a iconografia da pintura clássica russa", afirma
Hernani. O que se viu no Sesc Ipiranga foi um pequeno pedaço desse
rico universo produzido na extinta União Soviética. Além
de apresentar um material inédito, o evento também revelou,
ou lembrou, a ampla influência de filmes e seus criadores nas animações
ocidentais, principalmente por conta da imigração de muitos
deles para os Estados Unidos. "Muitas das séries de animação
mais famosas da televisão atual contam com esses profissionais
e principalmente com um traço, um estilo e uma maneira de ver o
mundo que mudaram os antigos padrões Hanna-Barbera", conta
Hernani, mencionando a dupla formada por William Hanna e Joseph Barbera,
responsável por sucessos como Os Flintstones, Zé Colméia
e Os Jetsons. "Estamos mais perto da animação russa
do que se imagina", conclui o curador.
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ao início
veja boxes:
Para encher
os ohos
Traços históricos
Para
encher os olhos
Exposição
mergulha na história da sétima arte e homenageia a
Cinemateca Brasileira
De 27 de abril a 28 de maio, o Sesc Pompéia prestará
outra grande homenagem ao cinema com a exposição Cinema
e Memória, que abordará, no hall do teatro da unidade,
a relação entre a história da sétima
arte e a trajetória da Cinemateca Brasileira, uma das mais
importantes instituições de preservação
da memória cinematográfica do país, conservando
ou mesmo restaurando filmes. A Cinemateca surgiu da criação
do Clube de Cinema de São Paulo, em 1940. Na época
a iniciativa partiu de jovens estudantes do curso de Filosofia da
Universidade de São Paulo (USP), entre eles, Paulo Emílio
Salles Gomes, Décio de Almeida Prado e Antonio Cândido
de Mello e Souza. O clube foi fechado em seguida pela polícia
do Estado Novo, chefiado pelo presidente Getúlio Vargas.
Nesses anos, após várias tentativas de organização,
foi inaugurado finalmente um segundo cineclube, cujo acervo de filmes
constituiu a Filmoteca do Museu de Arte Moderna (MAM). Em 1956,
a filmoteca foi transformada na Cinemateca Brasileira, uma das primeiras
instituições de arquivos de filmes brasileiros a se
filiar à Fédération Internationale des Archives
du Film (www.fiafnet.org),
organização francesa de preservação
da memória do cinema famosa em todo o mundo. Em 1984, a importância
do espaço foi reconhecida pelo governo federal, que o incorporou
como um órgão do Ministério de Educação
e Cultura (MEC). No final dos anos 80, todo o acervo se mudou para
o antigo Matadouro Municipal, localizado na Vila Mariana, Zona Sul
de São Paulo.
A exposição do Sesc Pompéia mostrará
ainda as fases vividas pelo cinema no mundo, desde o período
que precedeu seu nascimento até as novas tecnologias digitais.
Farão parte da mostra equipamentos utilizados nas primeiras
experiências que levaram ao descobrimento da sétima
arte na França, na virada do século 19 para o 20.
O projeto prevê ainda um módulo que trará informações
sobre conservação e restauro de imagens, além
de atender quem está interessado em recuperar seus acervos.
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Traços
históricos
Ao todo, 15
desenhos foram apresentados na Mostra de Filmes de Animação
Soviéticos das Décadas de 60 e 70. O período
que o evento cobriu se destacou pelas pesquisas em torno das técnicas
de animação, tradição que alcançaria
o ápice em tempos recentes, com a adaptação
do livro O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway, para animação.
A produção, dirigida por Aleksandr Petrov, foi premiada
com o Oscar em 2000. Enquanto a Disney lançava longas de
animação, como Mogli - O Menino Lobo (1967),
sobre a história de um menino que cresceu na selva sozinho
com os animais, Robin Hood (1973), o herói que roubava
dos ricos para dar aos pobres, e Pooh - O Ursinho Guloso
(1977), conheça um pouco do que estava sendo produzido do
outro lado da cortina de ferro.
KALEIDOSCÓPIO
70 (KALEDOSKOP 70), 1970 - A série Kaleidoscópio
reunia o melhor da animação soviética do ano
em um único programa. Na versão de 1970, as histórias
abordam temas como as neuroses da época. Assim as animações
retratam o sedentarismo, que vai se acumulando na frente da TV,
o desejo da eterna juventude e o apelo à ordem na sociedade.
FRANCISQUINHO
(FRANTICHEK), 1967 - O universo natalino visto pelos
ingênuos olhos de Francisquinho revela-se cheio de surpresas
e graça. O filme é a adaptação de um
conto infantil que tem como pano de fundo a tentativa de um menino
de pintar uma janela de branco. A animação foi premiada
com o Pelicano de Prata do Festival Internacional de Animação
de Mamaye, na Romênia, em 1968, considerado uma das mais importantes
premiações da época no campo da animação.
RUA DE
CHITA (SITSEVAIA), 1964 - Uma crítica à
vaidade, a partir da moda e das aparências. A história
mostra o processo de criação de um vestido de chita
desejado por uma menina.
MODA,
MODA (O MODA, MODA), 1968 - O tema é visto
através dos tempos, analisado por meio de suas manifestações
mais típicas, como penteados, vestuário e acessórios.
A idéia era evidenciar comportamentos e satirizar os costumes.

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