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Cinema

Revista E- Abril 2006

 

 

Conexão leste-oeste

Encontrados quase por acaso, 15 filmes de animação produzidos na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) revelam a rica produção do gênero na região


Cortina de ferro era a expressão usado para designar o muro imaginário que dividiu o mundo entre comunistas e capitalistas por mais de quatro décadas após a Segunda Guerra Mundial. O peso do termo é indicativo da cegueira que acometia alguns países sobre o povo e a cultura de outros. A divisão era clara: de um lado, o fechado regime comunista; do outro, o capitalista, que tinha entre suas prioridades evitar a propagação dos ideais do bloco de lá. Somem-se a isso as ditaduras militares que tomaram países do chamado Terceiro Mundo a partir da década de 60 - grande parte delas nas nações latino-americanas, inclusive o Brasil - e o resultado foi comunicação zero e ausência de circulação de produções artísticas. Tanto que ainda se desenterram tesouros perdidos por muito tempo - um deles exibido em março no Sesc Ipiranga. Trata-se de 15 animações produzidas entre os anos 60 e 70 na União Soviética, material que veio à luz na Mostra de Filmes de Animação Soviéticos das Décadas de 60 e 70 (veja boxe: Traços históricos) e fez a alegria dos amantes do cinema, da animação e de produções obscuras candidatas a ganhar o selo cult. De 14 a 19 de março, o público teve acesso, por meio dos filmes, a um breve panorama da vida e dos costumes soviéticos naqueles tempos, além de se inteirar das técnicas usadas nos trabalhos. "É possível conferir as possibilidades da aquarela, do guache, do carvão, do stop-motion e muitas outras", afirma Hernani Heffner, curador-assistente e conservador-chefe da Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, que co-assina a curadoria do evento(veja boxe: Para encher os olhos). Quem dividiu a tarefa com Hernani foi a produtora de cinema Eliana Cobbett, uma das responsáveis por esses títulos terem chegado aqui. Durante parte das décadas de 50 e 60, ela era gerente da extinta produtora e distribuidora Tabajara Filmes - que funcionou de 1955 a 1964 e tinha seu marido, o cineasta William Cobbett, como sócio -, uma das responsáveis pela vinda de produções do Leste Europeu para o Brasil. "Todos os filmes eram importados legalmente até 1963", lembra. Até que, um ano depois, os militares tomaram o poder no Brasil e instauraram a ditadura que duraria mais de 20 anos. "Aí foi uma verdadeira caça às bruxas. Para que o vandalismo não detonasse todo o material, enviamos parte dele para a Cinemateca do MAM do Rio de Janeiro. Assim foram salvas algumas cópias", conta ela. As fitas exibidas no Sesc Ipiranga ficaram perdidas durante anos nos fundos da casa de Eliana, até que, poeira mais que baixada, foram encontradas, restauradas e vieram a público.



Competição com a Disney
O precursor do gênero na União Soviética foi o polonês radicado na Rússia Ladislau Starewich. De acordo com o texto Panorama da Animação Soviética Clássica, escrito pelo curador Hernani Heffner para a mostra, Starewich "inaugurou a primeira grande tendência da área no país, usando a liberdade do desenho para uma aproximação com as vanguardas em voga na Europa durante as décadas de 10 e 20". O curador afirma ainda que a própria revolução de 1917, que tirou o país das mãos dos czares e marcou a ascensão do comunismo, estimulou esse tipo de pesquisa em sintonia com um ímpeto inicial de revolucionar também as artes, muito embora os filmetes assumissem a função de ajudar na "propaganda dos novos tempos". Teria sido ainda por questões políticas que surgiu a primeira grande geração de animadores soviéticos, entre os quais se destacaram Ivan Ivanov-Vano, Mikhail Tchekanovski e Nikolai Kodataev. Segundo Hernani, isso está ligado ao fato de o ditador Josef Stalin (1879-1953) - o sucessor de Lenin no comando da URSS, que dirigiu o país do fim da década de 20 ao início dos anos 50 - ter admitido que pequenos estúdios desenvolvessem animações no país para competir com a Disney, a poderosa empresa fundada em 1923 por Walt Disney e seu irmão Roy Oliver Disney. A necessidade política de uma animação soviética maciça e de qualidade ampliou a pesquisa nesse campo, que chegou até mesmo a experimentar certo vanguardismo em sua produção. No entanto, Stalin acabou inviabilizando essa tendência. "Até a ascensão de Nikita Kruschev, em meados dos anos 50, com sua crítica aos desmandos stalinistas e a proclamação de uma maior liberdade artística, a animação soviética viveu um período de extremo conservadorismo de temas, técnicas e estéticas", explica Hernani. Mesmo assim, segundo ele, os anos 30, 40 e 50 foram uma época muito importante para esse tipo de produção porque nesses anos se consolidou o mercado local para o gênero.




Identidade própria
As animações que vieram para o Brasil já são fruto dessa abertura. Em 1956, com a chegada de Kruschev ao poder, a União Soviética entrou num período de maior liberalização do regime. Na área agrícola, econômica e tecnológica, os avanços foram grandes - foi em 1957, por exemplo, que os russos lançaram a Sputnik ao espaço. Uma das mais importantes mudanças ocorreu, no entanto, no campo político, com um processo de abertura que, entre outras coisas, amenizou o rigor da censura. Esse processo recebeu os nomes de degelo ou desestalinização - uma tentativa de apagar as marcas da mão pesada do governo de Stalin. As artes, claro, agradeceram o respiro, e foi assim que se descortinou toda uma geração de animadores. "Fugindo do parâmetro disneyano, nomes como Fiodor Khitruk, Anatali Petrov e Vadim Kurchevski recolocam a animação soviética na ordem do dia, utilizando-se do surrealismo à la Chagall", escreve o curador Hernani Heffner, referindo-se ao pintor russo radicado em Paris Marc Chagall (1887-1985), considerado um dos líderes da vanguarda de sua época. Nessa nova fase, segundo ele, as animações passaram a revelar traços da iconografia russa e a tocar em temas como o contraste entre a perspectiva socialista e os problemas do mundo industrial ocidental. "A maioria dos filmes se destinava a um público infanto-juvenil, dentro do espírito de competição com a animação soviética que norteava a produção dos Estados Unidos. São em sua maioria adaptações de contos infantis e de manifestações folclóricas. Contudo, buscavam um apuro maior de acabamento e o uso de técnicas diferenciadas para a composição da imagem e a feitura da animação, explorando a iconografia da pintura clássica russa", afirma Hernani. O que se viu no Sesc Ipiranga foi um pequeno pedaço desse rico universo produzido na extinta União Soviética. Além de apresentar um material inédito, o evento também revelou, ou lembrou, a ampla influência de filmes e seus criadores nas animações ocidentais, principalmente por conta da imigração de muitos deles para os Estados Unidos. "Muitas das séries de animação mais famosas da televisão atual contam com esses profissionais e principalmente com um traço, um estilo e uma maneira de ver o mundo que mudaram os antigos padrões Hanna-Barbera", conta Hernani, mencionando a dupla formada por William Hanna e Joseph Barbera, responsável por sucessos como Os Flintstones, Zé Colméia e Os Jetsons. "Estamos mais perto da animação russa do que se imagina", conclui o curador.

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veja boxes:
Para encher os ohos
Traços históricos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Para encher os olhos

Exposição mergulha na história da sétima arte e homenageia a Cinemateca Brasileira


De 27 de abril a 28 de maio, o Sesc Pompéia prestará outra grande homenagem ao cinema com a exposição Cinema e Memória, que abordará, no hall do teatro da unidade, a relação entre a história da sétima arte e a trajetória da Cinemateca Brasileira, uma das mais importantes instituições de preservação da memória cinematográfica do país, conservando ou mesmo restaurando filmes. A Cinemateca surgiu da criação do Clube de Cinema de São Paulo, em 1940. Na época a iniciativa partiu de jovens estudantes do curso de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), entre eles, Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado e Antonio Cândido de Mello e Souza. O clube foi fechado em seguida pela polícia do Estado Novo, chefiado pelo presidente Getúlio Vargas. Nesses anos, após várias tentativas de organização, foi inaugurado finalmente um segundo cineclube, cujo acervo de filmes constituiu a Filmoteca do Museu de Arte Moderna (MAM). Em 1956, a filmoteca foi transformada na Cinemateca Brasileira, uma das primeiras instituições de arquivos de filmes brasileiros a se filiar à Fédération Internationale des Archives du Film (www.fiafnet.org), organização francesa de preservação da memória do cinema famosa em todo o mundo. Em 1984, a importância do espaço foi reconhecida pelo governo federal, que o incorporou como um órgão do Ministério de Educação e Cultura (MEC). No final dos anos 80, todo o acervo se mudou para o antigo Matadouro Municipal, localizado na Vila Mariana, Zona Sul de São Paulo.

A exposição do Sesc Pompéia mostrará ainda as fases vividas pelo cinema no mundo, desde o período que precedeu seu nascimento até as novas tecnologias digitais. Farão parte da mostra equipamentos utilizados nas primeiras experiências que levaram ao descobrimento da sétima arte na França, na virada do século 19 para o 20. O projeto prevê ainda um módulo que trará informações sobre conservação e restauro de imagens, além de atender quem está interessado em recuperar seus acervos.

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Traços históricos

Ao todo, 15 desenhos foram apresentados na Mostra de Filmes de Animação Soviéticos das Décadas de 60 e 70. O período que o evento cobriu se destacou pelas pesquisas em torno das técnicas de animação, tradição que alcançaria o ápice em tempos recentes, com a adaptação do livro O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway, para animação. A produção, dirigida por Aleksandr Petrov, foi premiada com o Oscar em 2000. Enquanto a Disney lançava longas de animação, como Mogli - O Menino Lobo (1967), sobre a história de um menino que cresceu na selva sozinho com os animais, Robin Hood (1973), o herói que roubava dos ricos para dar aos pobres, e Pooh - O Ursinho Guloso (1977), conheça um pouco do que estava sendo produzido do outro lado da cortina de ferro.

KALEIDOSCÓPIO 70 (KALEDOSKOP 70), 1970 - A série Kaleidoscópio reunia o melhor da animação soviética do ano em um único programa. Na versão de 1970, as histórias abordam temas como as neuroses da época. Assim as animações retratam o sedentarismo, que vai se acumulando na frente da TV, o desejo da eterna juventude e o apelo à ordem na sociedade.

FRANCISQUINHO (FRANTICHEK), 1967 - O universo natalino visto pelos ingênuos olhos de Francisquinho revela-se cheio de surpresas e graça. O filme é a adaptação de um conto infantil que tem como pano de fundo a tentativa de um menino de pintar uma janela de branco. A animação foi premiada com o Pelicano de Prata do Festival Internacional de Animação de Mamaye, na Romênia, em 1968, considerado uma das mais importantes premiações da época no campo da animação.

RUA DE CHITA (SITSEVAIA), 1964 - Uma crítica à vaidade, a partir da moda e das aparências. A história mostra o processo de criação de um vestido de chita desejado por uma menina.

MODA, MODA (O MODA, MODA), 1968 - O tema é visto através dos tempos, analisado por meio de suas manifestações mais típicas, como penteados, vestuário e acessórios. A idéia era evidenciar comportamentos e satirizar os costumes.




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