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P.S.

Revista E- Abril 2006

 

 



Granulações da memória


por Évelim Lúcia Moraes


Difícil precisar o primeiro momento em que tive contato com a fotografia. Imagino que, como a maior parte das pessoas, ainda criança, vendo minhas fotos quando bebê, período que teria se perdido sem esse registro. Curioso pensar no poder especular que as imagens fotográficas possuem, de "ser testemunhas inquestionáveis" de momentos sem volta, capazes de nos apresentar a nós mesmos e até aos tataranetos de nossos tataranetos. O primeiro banho, o batizado, as salas de aula, aniversários e natais, a formatura, o casamento, o nascimento dos filhos... Cenas organizadas cronologicamente em álbuns folheados de geração em geração, nos quais nos conhecemos e reconhecemos na leitura das fisionomias ali reveladas.

Ainda guardo, inclusive na memória - que organiza o registro dos fatos como fotografias e não em movimento, como seqüência fílmica - os momentos das poses para os instantâneos nos passeios de domingo e os pequenos binóculos nos quais eram colocados. Neles, até hoje posso me ver no vestido claro, sujo de sorvete de groselha, passeando em uma pequena charrete puxada por um bode em Poços de Caldas ou em Itu, ao lado do orelhão gigante...
Na busca pelo que estaria do outro lado da foto, por trás dessa espécie de espelho fixado pela química, além do negativo, foi se revelando um papel totalmente diferente daquele do âmbito familiar, das imagens retocadas a aquarela ou amarelecidas pelo tempo. Na observação das particularidades entre o que o fotógrafo seleciona por meio do olhar e aquilo que percebemos e imaginamos ao ver uma fotografia, foi se desvelando, pouco a pouco, o caráter polissêmico dessa linguagem, que cada um vê e entende de maneira diferenciada, já que sempre buscamos nela uma relação de identidade.

Constatada a subjetividade do papel documental atribuído à fotografia, o próprio meio buscou tornar-se independente dessa incumbência, passando a experimentar e produzir imagens nas quais essa condição é posta em xeque. Os anos 20 e 30 marcam o momento em que a técnica questiona e subverte essa relação, bem como democratiza seu uso com equipamentos simplificados e de custo acessível. Um movimento do período a se observar e no qual centrar foco é o surrealismo, que contrariando o que se julgava ser função da foto, deu status de real às imagens oníricas criadas pelos fotógrafos surrealistas. Nelas a impossibilidade de identificação provoca no observador uma sensação de estranhamento.

Além do estudo do surrealismo, outro elo que concatena minha história com a fotografia é o trabalho no Sesc São Paulo, que proporciona um contato próximo com a linguagem. Alguns momentos que pude vivenciar na unidade Pompéia são memoráveis. A exposição Fotoformas em 1999, com trabalhos de Geraldo de Barros, pioneiro no Brasil na criação de imagens abstratas e geométricas. Em 2004, Afotodissolvida, mostra coletiva que abordou a diluição da fronteira com outras linguagens, bem como do próprio suporte, salientou o impacto das novas tecnologias na produção da fotografia contemporânea.

Sobre a oposição diluição-fixação, bem como o jogo de espelhos e inversões da identidade e história dos homens com a fotografia, encerro a exposição de minhas imagens memoráveis com Roland Barthes: "(...) não somente ela (a foto) tem em geral o destino do papel (perecível), como também, mesmo que seja fixada em suportes mais duros, não se torna menos mortal: como um organismo vivo, nasce dos próprios grãos de prata que germinam, desabrocha por um instante, depois envelhece. Atacada pela luz, pela umidade, ela empalidece, extenua-se, desaparece; (...)" (A Câmara Clara, Nova Fronteira, 1984).

Évelim Lúcia Moraes, mestra em sistemas de significação da imagem, é assistente para a área de artes visuais da Gerência de Ação Cultural do SESC.

 

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