
Granulações da memória
por Évelim
Lúcia Moraes
Difícil precisar
o primeiro momento em que tive contato com a fotografia. Imagino que,
como a maior parte das pessoas, ainda criança, vendo minhas fotos
quando bebê, período que teria se perdido sem esse registro.
Curioso pensar no poder especular que as imagens fotográficas possuem,
de "ser testemunhas inquestionáveis" de momentos sem
volta, capazes de nos apresentar a nós mesmos e até aos
tataranetos de nossos tataranetos. O primeiro banho, o batizado, as salas
de aula, aniversários e natais, a formatura, o casamento, o nascimento
dos filhos... Cenas organizadas cronologicamente em álbuns folheados
de geração em geração, nos quais nos conhecemos
e reconhecemos na leitura das fisionomias ali reveladas.
Ainda guardo, inclusive na memória - que organiza o registro dos
fatos como fotografias e não em movimento, como seqüência
fílmica - os momentos das poses para os instantâneos nos
passeios de domingo e os pequenos binóculos nos quais eram colocados.
Neles, até hoje posso me ver no vestido claro, sujo de sorvete
de groselha, passeando em uma pequena charrete puxada por um bode em Poços
de Caldas ou em Itu, ao lado do orelhão gigante...
Na busca pelo que estaria do outro lado da foto, por trás dessa
espécie de espelho fixado pela química, além do negativo,
foi se revelando um papel totalmente diferente daquele do âmbito
familiar, das imagens retocadas a aquarela ou amarelecidas pelo tempo.
Na observação das particularidades entre o que o fotógrafo
seleciona por meio do olhar e aquilo que percebemos e imaginamos ao ver
uma fotografia, foi se desvelando, pouco a pouco, o caráter polissêmico
dessa linguagem, que cada um vê e entende de maneira diferenciada,
já que sempre buscamos nela uma relação de identidade.
Constatada a subjetividade do papel documental atribuído à
fotografia, o próprio meio buscou tornar-se independente dessa
incumbência, passando a experimentar e produzir imagens nas quais
essa condição é posta em xeque. Os anos 20 e 30 marcam
o momento em que a técnica questiona e subverte essa relação,
bem como democratiza seu uso com equipamentos simplificados e de custo
acessível. Um movimento do período a se observar e no qual
centrar foco é o surrealismo, que contrariando o que se julgava
ser função da foto, deu status de real às
imagens oníricas criadas pelos fotógrafos surrealistas.
Nelas a impossibilidade de identificação provoca no observador
uma sensação de estranhamento.
Além do estudo do surrealismo, outro elo que concatena minha história
com a fotografia é o trabalho no Sesc São Paulo, que proporciona
um contato próximo com a linguagem. Alguns momentos que pude vivenciar
na unidade Pompéia são memoráveis. A exposição
Fotoformas em 1999, com trabalhos de Geraldo de Barros, pioneiro no Brasil
na criação de imagens abstratas e geométricas. Em
2004, Afotodissolvida, mostra coletiva que abordou a diluição
da fronteira com outras linguagens, bem como do próprio suporte,
salientou o impacto das novas tecnologias na produção da
fotografia contemporânea.
Sobre a oposição diluição-fixação,
bem como o jogo de espelhos e inversões da identidade e história
dos homens com a fotografia, encerro a exposição de minhas
imagens memoráveis com Roland Barthes: "(...) não somente
ela (a foto) tem em geral o destino do papel (perecível),
como também, mesmo que seja fixada em suportes mais duros, não
se torna menos mortal: como um organismo vivo, nasce dos próprios
grãos de prata que germinam, desabrocha por um instante, depois
envelhece. Atacada pela luz, pela umidade, ela empalidece, extenua-se,
desaparece; (...)" (A Câmara Clara, Nova Fronteira,
1984).
Évelim Lúcia
Moraes, mestra em sistemas de significação da imagem, é
assistente para a área de artes visuais da Gerência de Ação
Cultural do SESC.
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