
Quantidade
X qualidade
Dados apresentados
pelos convidados do Em Pauta desta edição comprovam que
o número de vagas tanto no ciclo fundamental quanto no superior
aumentou na última década. Isso fez com que o foco da discussão
sobre
a educação no Brasil se voltasse para a qualidade do ensino
oferecido. Em artigos exclusivos a educadora Eunice R. Durham, professora
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da
Universidade de São Paulo (USP)e diretora científica do
Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior (NUPES) (leia
o artigo), e o ex-reitor da USP Roberto Leal Lobo e Silva Filho (leia
o artigo) discutem a relação entre o aumento de escolas
e universidades e a boa educação.
Há que se escolher entre expansão
e qualidade na educação?
por Roberto
Leal Lobo e Silva Filho
Uma questão
sempre recorrente quando se trata do ensino em qualquer nível é
a oposição qualidade X quantidade. Qualquer esforço
do governo no sentido de ampliar vagas públicas, ou reduzir as
restrições para a criação de vagas no setor
privado, ajuda a reavivar a polêmica.
É claro que um aumento indiscriminado de vagas em qualquer setor,
sem que haja um investimento proporcional na infra-estrutura e na capacitação
de professores, pode levar a um declínio da qualidade média
do ensino. No entanto, mesmo que se reconheça essa possibilidade,
dois pontos merecem uma reflexão equilibrada.
A melhoria da infra-estrutura e da qualificação docente
deve ser feita conjuntamente com o crescimento, ou seja, investimentos
e ampliação correndo paralelamente. Grande parte dos problemas
com a educação em todo o mundo, e no Brasil não foi
diferente, decorreu da necessidade de uma decisão política
de universalizar o ensino básico, que se acentuou após a
Segunda Guerra Mundial. Essa política, implantada também
em muitos países em desenvolvimento, foi prejudicada pela crise
econômica mundial da década de 80, o que fez com que a ampliação
não fosse acompanhada dos necessários investimentos, gerando
uma crise na educação mundial, que vem sendo, aos poucos,
revertida.
Mesmo quando a ampliação reduz a qualidade média
do ensino, é preciso verificar se a educação média
do povo aumentou ou diminuiu. Por exemplo, se um país mantém
o mesmo número de escolas de qualidade, mas cria outras escolas
com qualidade um pouco inferior, embora a educação média
possa ter decrescido, a educação global da população
aumentou porque mais gente tem acesso a ela, mesmo que não seja
de excelência. É importante lembrar, aliás, que educação
uniforme não existe em nenhuma parte. É natural haver escolas
melhores e piores - o péssimo é não haver escola,
o ruim é não existir nenhum segmento da educação
como referência de qualidade e o injusto é discriminar o
estudante pelo poder econômico.
O Brasil, até a década de 90, apresentava péssimos
indicadores de escolaridade. Pouca gente atingia o segundo grau [atual
ensino médio], eram altos os índices de repetência
e evasão. A partir de então, esses índices foram
se tornado mais satisfatórios. De 1999 para cá, o perfil
das instituições de ensino mudou, principalmente no ensino
médio, no qual as públicas cresceram 30% e as privadas somente
12%, as escolas públicas correspondendo a 71% do total e 88% das
matrículas (em 1999 eram 83%). Houve, portanto, o aumento da presença
do ensino público na educação de nível médio
brasileira, um fator que vai ao encontro das responsabilidades constitucionais
do Estado.
Voltamos então à questão inicial: esse crescimento
do setor público absoluto e relativo, muitas vezes sem o devido
investimento, pode estar piorando a qualidade de nosso ensino básico?
Com era e como é essa qualidade? Como defini-la?
O Brasil tem na educação indicadores semelhantes ao que
tem no tênis e não no futebol. O desempenho médio
do estudante brasileiro é, como sempre foi, extremamente medíocre
se comparado com o de outros países.
Nos exames aplicados pela OECD (Organization for Economic Cooperation
and Development), em estudantes do ensino fundamental, o Brasil se situa
entre as dez piores nações, tanto na compreensão
e elaboração de textos quanto na capacidade de resolver
problemas. Em alguns exames ficamos em último lugar dentre 40 países,
incluindo vários ainda em desenvolvimento. No entanto, temos alguns
estudantes que obtêm sucesso nas Olimpíadas Internacionais
de Matemática. São os nossos Gugas. Por isso, tirando as
exceções, podemos dizer que nosso ensino é, como
sempre foi, bastante medíocre, e não se deve temer nenhuma
mudança, pois para pior é difícil mudar.
Nosso ensino
sempre passou ao estudante uma visão formalista e abstraída
da realidade que contaminou o ensino brasileiro
ao longo do tempo. Uma análise que, infelizmente, até hoje
permanece verdadeira, foi feita pelo físico americano Richard Feynman,
que esteve no Brasil nas décadas de 50 e 60, e ganhou o Prêmio
Nobel de Física por suas magníficas contribuições
para o desenvolvimento da mecânica quântica. Feynman descobriu
que, quando perguntava sobre a teoria de um determinado assunto, os alunos
brasileiros respondiam com rapidez, mas se o mesmo assunto era tratado
de outra maneira, saindo do formal para a experiência objetiva,
esses estudantes se perdiam completamente. Eles só eram capazes
de reproduzir, por simples memorização, o que os professores
lhes haviam ditado em aula. Eram, portanto, incapazes de ver a realidade
por detrás das palavras e de aplicar aqueles conhecimentos aos
fenômenos cotidianos. As palavras definiam palavras. Não
se aprendia física no Brasil, segundo ele.
Mais cruel, Feynman afirmava: "Um erudito grego descobre que os alunos
de outro país são capazes de recitar em perfeito grego desde
pequenos. Ao questionar os alunos, percebe que esses estudantes aprendem
a pronunciar as letras, depois as palavras e finalmente frases e parágrafos
- mas sem compreender que aquelas palavras gregas têm um significado.
Para os alunos elas são sons artificiais. É isso que me
parece ser o ensino de ciências no Brasil".
Por isso, não nos preocupemos com o passado. Não há
muito a perder, em um país onde o ensino era, no geral, ruim e
elitizado.
Olhemos, portanto, para a frente. Os programas de apoio ao ensino básico
têm procurado reverter o quadro de penúria do ensino público.
O Fundef [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e de Valorização do Magistério] e agora
o Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação
Básica] são exemplos importantes, como financiamento que
estimula os professores e induz os governos estaduais e municipais a ampliar
a oferta de vagas.
Em São Paulo, a Secretaria Municipal de Educação
lançou um programa, Ler e Escrever - Prioridade da Escola Municipal,
em que merecem destaque a preocupação permanente com o sucesso
do estudante e a atenção especial aos estudantes do 1º
ano. São esforços que tentam reverter o quadro de desânimo
e aceitação do insucesso que tomou conta do ensino brasileiro
e que é refletido na citação corriqueira: "O
professor ganha mal e o aluno não tem formação, por
isso não há nada a fazer, nem o professor precisa ensinar
bem nem o aluno estudar". Esse pacto de mediocridade em nada ajudou,
ou ajudará, nosso ensino.
Não podemos dizer que há um real movimento da sociedade
no sentido de lutar pela qualidade da educação. Ainda é
um setor em que a questão político-ideológica prepondera,
as avaliações, quando existem, não têm conseqüências
e não se aproveitam experiências bem-sucedidas em outros
lugares
.
Resumindo, é muito importante ampliar o acesso aos níveis
fundamental e médio de ensino, sabendo que haverá problemas
que precisam ser enfrentados. A eventual queda de qualidade não
deve ser motivo para abandonar essa política, porque a busca de
qualidade se fazia necessária muito antes da atual expansão.
Havia mais qualidade, mas para muito poucos. A mesma lógica vale
para o ensino superior.
Não há muito a perder, porque nosso ensino nunca primou
pela excelência. O mais importante é que se saia da posição
defensiva da queixa e da tolerância com o insucesso. É fundamental
que diretores, professores, pais e alunos passem a ter obsessão
pelo sucesso acadêmico para que o país possa vir a ter um
crescimento compatível com seu potencial, o que sem educação
é impossível. Se a educação não é
suficiente para o desenvolvimento, ela é certamente necessária.
Roberto Leal Lobo e Silva Filho é ex-reitor da Universidade
de São Paulo (USP), ex-reitor da Universidade de Mogi das Cruzes
e diretor da Lobo & Associados Consultoria
volta
ao início
próximo
artigo
A
qualidade de ensino no Brasil hoje
por Eunice R.
Durham
Presenciamos no Brasil,
durante toda a última década, um enorme aumento de número
de crianças matriculadas no ensino fundamental de forma a praticamente
universalizar o acesso a esse nível de ensino: cerca de 97% das
crianças de 7 a 14 anos ou quase 35,3 milhões de alunos
em 2002.O ensino médio teve uma aceleração do crescimento
surpreendente a partir de 1995, dobrando o número de matrículas,
que chegou, em 2002, a 8,4 milhões de estudantes.
Finalmente, no ensino superior também houve uma grande expansão
a partir da década de 90, depois de dez anos de estagnação:
assim, de 1,54 milhão de alunos em 1990, passamos para mais de
3 milhões em 2001, o que significa um crescimento de quase 100%.
Não se pode subestimar o tamanho desse esforço, especialmente
no que diz respeito ao ensino básico. É preciso lembrar
que, em 1950, mais da metade da população do país
era analfabeta (50,6%) e, na faixa etária de 7 a 14 anos, apenas
pouco mais de um terço freqüentava a escola (38,2%). Essa
enorme expansão se deu, basicamente, no ensino público e
gratuito.
Era de esperar que uma expansão tão acelerada provocasse
uma queda na qualidade de ensino. Mas o decréscimo da qualidade
tem sido excessivo.
Existem alguns problemas estruturais que só podem ser resolvidos
a médio e a longo prazo. Em primeiro lugar existe, em todos os
lugares do mundo, uma associação entre desempenho escolar
das crianças e nível de escolaridade dos pais. No Brasil,
essa associação é exacerbada em virtude de o sistema
ter incluído parcelas crescentes de filhos de pais analfabetos
ou com menos de quatro anos de escolarização, ao passo que,
nos países desenvolvidos, a universalização da educação
básica já havia ocorrido no século 19. O outro diferencial,
altamente associado ao anterior, é o nível de renda. Sabemos
todos que o Brasil apresenta um dos maiores índices de desigualdade
econômica.
Crianças pobres, com pais pouco escolarizados, encontram grande
dificuldade de adaptação ao ambiente escolar dominado pela
escrita. Muitas delas provêm de lares nos quais não há
nem papel, nem lápis para escrever ou desenhar, nem livros, nem
revistas, nem jornais. Os pais não têm como orientar os filhos
para superar as dificuldades escolares, e a escola não se equipou
para suprir as dificuldades de familiarização com a linguagem
escrita.
A escola não está equipada para ajudar esses alunos. Raramente
há bibliotecas, de tal forma que o único contato da criança
com os livros é com o livro didático, distribuído
gratuitamente pelo governo - mas isso é muito pouco, especialmente
quando nos damos conta de que o horário escolar é muito
reduzido, chegando a menos de três horas diárias. Nos países
desenvolvidos, o horário é de cinco a seis horas/dia e os
alunos contam com apoio na escola para as tarefas fora da sala de aula
(a lição de casa). As deficiências da escola constituem,
portanto, outro fator importante na baixa qualidade média do ensino
e no baixo desempenho dos alunos.
Além disso, a expansão se deu sem que houvesse um esforço
de formação adequada de um número suficiente de professores
capacitados. Antes dos anos 70, quando o ensino obrigatório passou
de quatro para oito anos, o Brasil possuía um sistema organizado
de formação de professores (ou, melhor, de professoras)
primários em nível médio: eram as escolas normais,
que ofereciam um curso de três anos, após o ginásio,
que havia logrado integrar uma formação aprofundada em nível
médio com uma formação profissional.
Com a reforma, o curso normal foi abandonado e precariamente substituído
por uma mera habilitação no nível médio comum,
que não se integrava com ele. Passou-se a privilegiar uma formação
de nível superior, favorecendo os cursos de pedagogia, que não
tinham (e ainda em grande parte não têm) a tradição
da formação de professores para as séries iniciais,
e nos quais, apesar de todos os discursos em contrário, não
se logrou conciliar e integrar uma boa formação geral, para
promover o domínio das matérias a ser ensinadas, com a formação
para o exercício da profissão e a prática pedagógica.
Criou-se um círculo vicioso que envolve o professor pobremente
habilitado, o horário reduzido, a escola desequipada, círculo
esse que se completa com os baixos salários.
A questão dos baixos salários é complexa - ela não
se resolve com um simples aumento salarial, pois este precisa estar associado
a uma melhor preparação e um melhor desempenho dos professores.
É necessário também resolver, simultaneamente, as
deformações da carreira, pois não há estímulos
monetários para desempenho diferencial.
Como conseqüência da estrutura da carreira, os salários
iniciais são insuficientes para atrair pessoal com melhor desempenho
escolar. As vantagens salariais se acumulam no fim da carreira e são
incorporadas à aposentadoria. Nesse sistema, o salário médio
dos professores aposentados é substancialmente superior ao dos
docentes da ativa, onerando pesadamente a folha de pagamento. Qualquer
aumento no salário dos docentes em início de carreira promove
uma cascata de aumentos proporcionais em todos os níveis, dificultando
enormemente uma remuneração mais justa para os iniciantes,
capaz de atrair pessoal mais qualificado.
O resultado do conjunto desses fatores é documentado pelo Sistema
de Avaliação do Ensino Básico (Saeb), que testa as
competências e o desempenho dos alunos na 4ª e 8ª série
do ensino fundamental e na 3ª série do ensino médio.
O exame mostra os efeitos das deficiências da formação
inicial nas séries subseqüentes. Nos três níveis
de ensino, a maioria dos alunos está abaixo dos padrões
considerados satisfatórios para o nível em questão.
Mas a proporção de alunos com bom desempenho diminui da
4ª para a 8ª série e desta para a 3ª série
do ensino médio. Este último nível é particularmente
sacrificado e é aquele no qual há maior porcentagem de evasão.
O fato de que a maioria desses alunos cursa o período noturno e
está regularmente empregada certamente dificulta, e muito, o aproveitamento
escolar. Esses resultados influem no acesso ao ensino superior, uma vez
que apenas uma minoria dos egressos do ensino médio apresenta formação
anterior suficiente para cursar com proveito a universidade.
A melhoria da qualidade do ensino básico depende de algumas alterações
de longo prazo, como o aumento do nível de escolarização
das famílias, que é um fator fortemente associado ao desempenho
escolar.
O segundo fator estrutural é a desigualdade econômica. Esse
fator, entretanto, não depende de ações diretamente
sobre o sistema escolar.
Há, entretanto, políticas educacionais que podem a curto
e médio prazo melhorar a qualidade do ensino e o desempenho dos
alunos do curso básico.
A principal delas é a formação dos professores, especialmente
os que trabalham nas séries iniciais, das quais depende o desempenho
posterior. Para tanto, precisamos de uma reforma do sistema salarial nesse
nível de ensino, que crie benefícios para os docentes mais
dedicados, mais bem preparados e que trabalhem nas escolas que atendem
as crianças mais pobres.
Para melhorar a qualidade do ensino e o aproveitamento dos alunos dever-se-á
também, a curto prazo, aumentar o número de horas de permanência
dos alunos na escola, de modo a atingir, rapidamente, pelo menos quatro
horas de trabalho efetivo em sala de aula, num total de cinco horas de
permanência, o que deveria estar associado a uma melhoria salarial
para os docentes em virtude do prolongamento da jornada.
Também a curto prazo é necessário acelerar o processo
de melhoria das escolas, equipando-as gradualmente com bibliotecas, computadores
e recursos audiovisuais, estabelecendo horários de leitura e mantendo
um ambiente limpo e organizado.
Programas já existentes que têm um grande alcance social
e beneficiam diretamente os alunos mais pobres precisam ser mantidos:
consistem no fornecimento gratuito de material didático e alimentação.
As deficiências do ensino público de nível básico
influem no ensino superior. O sistema público em geral é
de boa qualidade e, selecionando pelo vestibular, absorve um terço
das matrículas. Isso corresponde à quase totalidade dos
egressos do ensino médio que obtiveram um desempenho acima de satisfatório.
De fato, a qualidade do ensino depende tanto de bons professores como
de alunos com boa formação básica. Os demais dois
terços, mal preparados, ingressam nas faculdades e universidades
privadas de pior desempenho. A questão destas últimas (que
constituem a maioria, mas não a totalidade do setor privado) é
que, voltadas para o lucro, se preocupam muito pouco com a preparação
dos alunos que recebem e com a qualidade do ensino que ministram. Um sistema
de avaliação e recredenciamento dessas instituições
seria uma solução viável.
Eunice R. Durham
é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP)
volta
ao início
|