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Matérias da edição

Postado em

Em Pauta

Revista Junho - 2006

 

 


O Brasil em campo

ilustrações: Marcos Garuti

O status de paixão nacional adquirido pelo futebol é mais que merecido. Afinal, a efervescência de emoções demonstradas pela torcida traduz muito dos sentimentos dos brasileiros: alegria, raiva, amor, desespero. No entanto, não é só nas arquibancadas que o esporte mais popular do mundo reflete o país. No gramado, o comportamento dos "personagens" envolvidos no espetáculo - jogadores, juízes, técnicos - deixa transparecer valores que encontramos facilmente na sociedade: criatividade e garra, mas também malícia, preconceito e violência. Em artigos exclusivos, o professor de cultura brasileira da Universidade de São Paulo (USP) Waldenyr Caldas e o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, ambos apaixonados por futebol, discutem o assunto.

veja o artigo:

Futebol e violência no Brasil
Violência pacificada

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Futebol e violência no Brasil

por Waldenyr Caldas

Houve um período em nosso país, entre os anos 30 e 60, em que uma partida de futebol começava e terminava apenas entre as quatro linhas do campo. Todas as disputas e polêmicas, naturais em uma competição, cessavam com o apito final do árbitro. Torcedores vitoriosos e perdedores, claro, usavam a emoção e os gritos de incentivo a seu time, mas nunca a violência física. Dificilmente havia brigas entre os jogadores e muito raramente agressão entre os torcedores.
Hoje não é mais assim. A sociedade brasileira mudou, urbanizou-se, seus valores sociais são outros e o futebol, que antes era sobretudo espetáculo esportivo, transformou-se em um evento no qual a vitória é mais importante que a vida. Entre as quatro linhas do campo, míngua a solidariedade profissional entre os atletas e aumenta a violência física. A torcida, de sua parte (há exceções), cultiva e estimula essa violência antes, durante e depois do jogo.

Mas as origens desse quadro inaceitável para um espetáculo esportivo não começaram só nos estádios de futebol. Elas remontam à formação mais recente da sociedade brasileira. Não é possível, aqui, mencionar e analisar todas as causas, mas convém citar algumas: a crônica pobreza de grande parte de nossa população, a insegurança do emprego transitório, temporário, as imensas dificuldades para viver dignamente, a falta de dinheiro, as frustrações e decepções do cotidiano são algumas causas notórias. Mas não são apenas essas. Aliás, talvez elas nem sejam as mais importantes.

É preciso considerar que nem todas as pessoas são dotadas de boa índole. As causas aqui citadas certamente aguçam ainda mais o caráter pernicioso de uma índole malévola. Nos estádios de futebol, onde o comportamento coletivo sobrepõe-se às atitudes isoladas, onde o anonimato está quase totalmente assegurado, tem-se o espaço ideal para que as pessoas de má índole pratiquem toda sorte de atrocidades. O nível socioeconômico, a formação escolar e os eventuais princípios de cidadania que esse torcedor possa ter cedem espaço à insensatez e à bestialidade. Que se pense, por exemplo, nos jovens universitários de classe média ainda financiados pelos pais. Nas estatísticas policiais sobre violência nos estádios de futebol, eles têm destacada participação. Mas não é só nesse momento. É também antes, quando se dirigem ao estádio, e depois do jogo. Os patrimônios público e privado são alvos da truculência e do vandalismo desses torcedores de índole malévola.

As conseqüências desse comportamento todos nós já conhecemos. São funestas para o esporte e a sociedade. São as agressões físicas que redundam em mortes nos estádios, nas ruas, nas estações do metrô, nos pontos de ônibus, enfim, onde a maledicência e a estupidez humana possam alcançar. É como se o simples resultado de um espetáculo futebolístico fosse uma questão de vida ou morte. Infelizmente, sabemos todos que, para o torcedor de índole malévola, o resultado final do jogo é mesmo uma questão de vida ou morte. Nesse caso, somente a psicanálise profunda poderia explicar com mais precisão os motivos desses desvios comportamentais, das desordens mentais e emocionais, das neuroses e psicoses que levam uma pessoa a assassinar outra, especialmente em um lugar público, de diversão, porque seu time perdeu.

Dizer, por exemplo, que o torcedor reproduz nos estádios a violência cotidiana da sociedade é parcialmente verdade. É o óbvio ululante e, como tal, não explica nada. O sentimento de ódio (esta é a palavra exata) que o torcedor e as torcidas organizadas levam para os estádios tem, conscientemente ou não, grande estímulo de boa parte da imprensa esportiva que disputa audiência a qualquer preço. São profissionais que fazem do sensacionalismo e da linguagem bélica no futebol sua marca registrada, com algumas exceções, é claro. Quase sempre os grandes clássicos são alimentados por esses cidadãos que têm o microfone ou a caneta nas mãos. São os formadores de opinião pública. Com uma semana de antecedência eles falam do jogo com termos como "a guerra", "a batalha", "a luta", "o combate" etc. As duas equipes, por exemplo, Corinthians e Palmeiras, passam a ser para essa imprensa não adversários de um espetáculo esportivo, mas inimigos em uma guerra. O que lemos e vemos é todo um discurso belicoso a aumentar a tensão entre as torcidas, a acirrar os ânimos entre os "inimigos" que se enfrentarão nessa guerra programada para as atividades lúdicas do torcedor.

É assim que o comportamento individual, mas especialmente o comportamento coletivo tornam-se extremamente perigosos à ordem social. Nessas condições, o que era para ser um espetáculo de competição esportiva, de diversão para o grande público, pode transformar-se em uma terrível e sinistra batalha campal. Há muitos exemplos a ser citados, mas quero lembrar apenas o caso de um adolescente torcedor do São Paulo Futebol Clube, que foi brutalmente assassinado a pauladas por seus "inimigos" palmeirenses, diante de uma multidão atônita, perplexa e impotente para evitar a tragédia. Nessa ocasião, o Estádio do Pacaembu transformou-se realmente em uma praça de guerra. A polícia acovardou-se diante de centenas de torcedores (ou de bandidos perigosos?) e o resultado não poderia ser mais trágico: um adolescente assassinado no próprio estádio, outro morreria seis dias depois e milhares de pessoas feridas no corpo e na alma. Traumatizadas.

Acreditar que a desorganização do futebol brasileiro, os desmandos e as falcatruas fora e dentro do campo sejam co-responsáveis pela violência nos estádios é bastante discutível, senão puerilidade. A grande massa de torcedores que vai aos campos de futebol não acompanha o cotidiano administrativo desse esporte em nosso país. Se isso realmente acontecesse, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e boa parte de suas filiadas teriam recebido algum tipo de sanção imposta pelo torcedor - desde o boicote aos jogos e, em atitudes mais extremas, invasões, depredações, até saques - já em 1982.

Naquele ano, a revista Placar publicou um longo documento denunciando "a máfia da loteria esportiva". Uma abominável história de corrupção no futebol brasileiro, envolvendo 125 nomes, entre jogadores, dirigentes, árbitros, técnicos e outras personalidades. A despeito do grande estardalhaço midiático na época, essa mesma grande massa a que me refiro não tomou conhecimento das bandalheiras em nosso futebol. Permaneceu indiferente ao que estava acontecendo. É preciso dizer rigorosamente a verdade: ela só tem interesse exclusivo no desempenho de seu time dentro do campo. As outras questões são periféricas e desimportantes. No dia seguinte ao resultado do jogo, com os ânimos ainda acirrados, o que conta mesmo é a vitória. Entre os torcedores nas fábricas, escritórios, construções, enfim, nos locais de trabalho, escolas e outros pontos de concentração coletiva, o vitorioso sente-se orgulhoso de seu time. Em alguns casos, até ironiza o perdedor. Esse comportamento talvez seja o mais corriqueiro na cultura do futebol em nosso país. Para boa parte dos torcedores, não basta seu time vencer. Esse prazer é parcial. Seu desejo mórbido e prepotente só atinge a plenitude depois de tripudiar sobre o perdedor que, combalido pela derrota (e justamente por isso), tem os nervos à flor da pele, pronto para reagir às chacotas. O comportamento é visto como uma tentativa de humilhação do "inimigo". Nesse instante, o perdedor sente-se desrespeitado e desonrado. É aqui que muitas vezes a irracionalidade e a paixão pelo time fazem aflorar a violência física com toda força.

Considero que os aspectos até aqui mencionados nada têm a ver com a terrível corrosão do caráter nacional, especialmente por parte dos políticos. São muitos os casos e quase todos eles publicamente conhecidos. Não creio que a bandalheira do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas estaduais e das Câmaras Municipais de vereadores (salvaguardem-se as exceções, evidentemente) possa ter importância significativa sobre a violência em nosso futebol. Sempre houve políticos corruptos na história de nosso país. No entanto, nunca houve tanta violência dentro e fora dos gramados como vemos hoje. Na verdade, vivemos uma grande contradição que precisa ser mais bem estudada.

Neste artigo não há espaço para se analisar com detalhes, mas ocorre o seguinte: à medida que avançam e se aprimoram os princípios e a prática da cidadania em nossa sociedade, ironicamente ocorre também a corrosão do caráter nacional de forma generalizada, mas capitaneada pela maledicência dos incorrigíveis políticos corruptos. Ainda têm força nas relações sociais o "jeitinho brasileiro" e a ambição de sempre levar vantagem em qualquer situação. Esses aspectos sim, aliados à corrupção de nossas autoridades, são de fato os grandes problemas que nos atingem e afligem a todos.

Waldenyr Caldas é professor de cultura brasileira na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP)

 

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Violência pacificada

por Luiz Gonzaga Belluzzo*

Respeito muito a atuação do esporte em geral, do futebol em particular, na sociedade contemporânea. Ao mesmo tempo em que ele desempenha o papel de simular uma disputa, uma luta, ele disciplina a violência. O jogo com a bola é muito antigo. O futebol, tal como existe hoje, é um produto do século 19, nascido na Inglaterra como um esporte popular jogado com o pé, em seguida encampado pelas escolas públicas inglesas, onde se desenvolveu com o rúgbi. Hoje em dia, o fato de o futebol ter regras, muito claras inclusive, é o que o torna um esporte atraente. Mas isso não impede as explosões de violência. O futebol contém dentro de si a violência, uma violência pacificada, digamos assim, disciplinada, mas que pode explodir a qualquer momento porque pode sair dos limites que as regras impõem. E os torcedores muitas vezes se comportam como os freqüentadores do circo romano, que se dividiam entre os verdes e os azuis, e levavam a disputa para fora do espetáculo, o que acabava se transformando num conflito.

O esporte moderno tem a função de pacificar e disciplinar a luta, mas é uma forma de sublimação. A linha divisória entre o jogo disciplinado, ordenado pelas regras, e a perda de controle é muito tênue e freqüentemente violada.

Entre a prática, o jogador e o espectador há uma relação muito complexa que envolve êxtase, por um lado, mas muitas vezes implica também ódio, sobretudo quando o jogador tem um mau desempenho. É muito freqüente que se passe da admiração quase absoluta e irracional de um ídolo para o ódio e a rejeição. E isso tem uma função psicológica muito importante porque de certa forma vejo os espectadores do futebol concentrando ali mais esperança do que o esporte pode realmente dar conta. O que torna a dinâmica toda também uma simulação da luta pela vida e da superação dos obstáculos, e com todos os efeitos e conseqüências: a vitória leva à euforia e à auto-satisfação; e a derrota, à frustração. Isso está se intensificando à medida que o futebol vai se tornando um esporte universal - atualmente o único espetáculo universal. O futebol sofreu transformações importantíssimas de significados para a sociedade. Ainda peguei um tempo em que as torcidas se misturavam. Havia a disputa, a rivalidade, havia até mesmo a fruição da derrota do outro - a famosa gozação -, mas isso não atingia os níveis de agressividade de hoje. O escritor italiano Umberto Eco diz que detesta futebol porque não consegue compreender como dois grupos podem se desentender a tal ponto por conta de uma bola. Mas isso é subestimar um pouco a importância que o futebol tem na moldagem das emoções. A agressividade que vemos com freqüência não tem a ver propriamente com o futebol, mas sim com essa situação da sociedade na qual a violência está pacificada. O pensador Norbert Elias [autor de O Processo Civilizador, Jorge Zahar Editor, 1995, entre outros livros] até diz que não se admira que haja tanta violência, mas sim que haja tão pouca. Isso porque a sociedade criou hábitos e convicções mais profundas a respeito de como deve ser o comportamento, mas, normalmente, diz Elias, o comportamento humano é, na origem, agressivo e violento.

Quando acontecem certas coisas no futebol - que são contemporizadas sob o argumento de que "no campo pode" -, o que vemos é uma movimentação num espaço no qual a agressividade está prestes a explodir. Uma agressividade contida no cotidiano flui num espaço no qual é possível violar regras. No futebol, a violação das regras faz parte do jogo. E, desde que o sujeito não seja punido - e mais, seja bem-sucedido -, ele é celebrado. É como a "mão de Deus", do Maradona [gol feito com a mão por Diego Maradona que classificou a Argentina para as semifinais da Copa do México em 1986]. Ou seja, coisas como simular um pênalti ou conseguir fazer uma falta sem que ninguém perceba são admitidas como pertencentes ao próprio espírito do jogo. Diante disso, quando jogadores se agridem verbalmente em campo e, minutos depois, dizem nas entrevistas que não brigaram de verdade, quase sempre essa resposta vem acompanhada da frase: "Isso é coisa do futebol". Ou seja, esse tipo de violação - que, por sua vez, está no limite de derrogar todas as regras normais de convivência - é tolerada no futebol.

De fato, existe uma contradição, nesse que é o esporte mais popular do mundo, que o coloca como uma simulação da violência, mas ao mesmo tempo como uma emulação catártica. E as opiniões se dividem. Afinal, há os que consideram a prática educativa, por conter aspectos de socialização, tendo em vista que é coletivo. Mas, ao mesmo tempo, ele é o que mais desperta esse impulso à valorização do indivíduo. E muitos não entendem essa dualidade do futebol. Por exemplo, quando analisamos o comportamento dos envolvidos dentro e fora de campo, chegamos ainda a outras contradições. É a imagem do jogador racista que, na verdade, não é um cidadão racista. Nós tivemos dois casos famosos: o do jogador argentino Leandro Desábato, que, no ano passado, se aproximou do brasileiro Grafite e proferiu palavras de cunho racista, e mais recentemente o do zagueiro do Juventude, Antônio Carlos, que inclusive foi suspenso por agredir Jeovânio, do Grêmio. Em ambos os casos, o racismo foi superficial. Não é o caso de afirmar que Antônio Carlos seja racista, até porque ele mesmo disse - quando demonstrou se dar conta da bobagem que havia feito - que é amigo de uma porção de jogadores negros. Isso tem mais a ver com a situação dentro de campo do que com uma opinião consolidada dele sobre as questões raciais.

O mesmo vale para outros tipos de violência, que são muito freqüentes. Há muitos casos de Dr. Jekill e Mr. Hyde [personagens do famoso romance O Médico e o Monstro, do inglês Robert Louis Stevenson, no qual o pacato e gentil doutor Jekill se transformava no selvagem e violento senhor Hyde]. Um grande exemplo é o do jogador Edmundo que, quando mais jovem - agora parece que sossegou -, dava o que falar ao agredir adversários, companheiros de time, enfim, se descontrolava. Eu conheci o jogador, fora de campo ele era um sujeito mais que razoável, tem uma inteligência acima da média e conversava com grande desenvoltura. Posso até citar meu próprio exemplo: joguei muito futebol na vida e dentro de campo eu virava bicho. Brigava com os companheiros, dava cotovelada, era terrível. Conheço vários casos desses, pessoas pacíficas e gentis que a disputa transforma em jogadores violentos. Ocorre que o jogo provoca isso. Podemos chamar de falta de espírito esportivo, de um lado, e de descuido na vigilância sobre a violência pacificada, de outro.

Por fim, vale lembrar ainda que a sociedade brasileira tende a celebrar um pouco o indivíduo que se utiliza de certo ardil na solução das situações. Um "jeitinho" de tentar violar as regras suavemente, que não é admitido em outros países. Esse comportamento é mais típico de uma sociedade na qual o respeito à lei não é muito valorizado. No Brasil existe o fenômeno cultural da valorização do violador, do que leva vantagem. E no futebol isso se traduz naquele jogador que acha que é legal enganar o juiz. Mas, no caso de outras sociedades, com mais tradição de respeito à lei, isso ocorre menos, tanto dentro quanto fora de campo.

*Excertos de depoimento concedido com exclusividade à Revista E.

Luiz Gonzaga Belluzzo é economista

 

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