
O
Brasil em campo
ilustrações:
Marcos Garuti
O status
de paixão nacional adquirido pelo futebol é mais que merecido.
Afinal, a efervescência de emoções demonstradas pela
torcida traduz muito dos sentimentos dos brasileiros: alegria, raiva,
amor, desespero. No entanto, não é só nas arquibancadas
que o esporte mais popular do mundo reflete o país. No gramado,
o comportamento dos "personagens" envolvidos no espetáculo
- jogadores, juízes, técnicos - deixa transparecer valores
que encontramos facilmente na sociedade: criatividade e garra, mas também
malícia, preconceito e violência. Em artigos exclusivos,
o professor de cultura brasileira da Universidade de São Paulo
(USP) Waldenyr Caldas e o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, ambos apaixonados
por futebol, discutem o assunto.
veja o artigo:
Futebol
e violência no Brasil
Violência
pacificada

Futebol
e violência no Brasil
por Waldenyr Caldas
Houve um período
em nosso país, entre os anos 30 e 60, em que uma partida de futebol
começava e terminava apenas entre as quatro linhas do campo. Todas
as disputas e polêmicas, naturais em uma competição,
cessavam com o apito final do árbitro. Torcedores vitoriosos e
perdedores, claro, usavam a emoção e os gritos de incentivo
a seu time, mas nunca a violência física. Dificilmente havia
brigas entre os jogadores e muito raramente agressão entre os torcedores.
Hoje não é mais assim. A sociedade brasileira mudou, urbanizou-se,
seus valores sociais são outros e o futebol, que antes era sobretudo
espetáculo esportivo, transformou-se em um evento no qual a vitória
é mais importante que a vida. Entre as quatro linhas do campo,
míngua a solidariedade profissional entre os atletas e aumenta
a violência física. A torcida, de sua parte (há exceções),
cultiva e estimula essa violência antes, durante e depois do jogo.
Mas as origens desse quadro inaceitável para um espetáculo
esportivo não começaram só nos estádios de
futebol. Elas remontam à formação mais recente da
sociedade brasileira. Não é possível, aqui, mencionar
e analisar todas as causas, mas convém citar algumas: a crônica
pobreza de grande parte de nossa população, a insegurança
do emprego transitório, temporário, as imensas dificuldades
para viver dignamente, a falta de dinheiro, as frustrações
e decepções do cotidiano são algumas causas notórias.
Mas não são apenas essas. Aliás, talvez elas nem
sejam as mais importantes.
É preciso considerar que nem todas as pessoas são dotadas
de boa índole. As causas aqui citadas certamente aguçam
ainda mais o caráter pernicioso de uma índole malévola.
Nos estádios de futebol, onde o comportamento coletivo sobrepõe-se
às atitudes isoladas, onde o anonimato está quase totalmente
assegurado, tem-se o espaço ideal para que as pessoas de má
índole pratiquem toda sorte de atrocidades. O nível socioeconômico,
a formação escolar e os eventuais princípios de cidadania
que esse torcedor possa ter cedem espaço à insensatez e
à bestialidade. Que se pense, por exemplo, nos jovens universitários
de classe média ainda financiados pelos pais. Nas estatísticas
policiais sobre violência nos estádios de futebol, eles têm
destacada participação. Mas não é só
nesse momento. É também antes, quando se dirigem ao estádio,
e depois do jogo. Os patrimônios público e privado são
alvos da truculência e do vandalismo desses torcedores de índole
malévola.
As conseqüências desse comportamento todos nós já
conhecemos. São funestas para o esporte e a sociedade. São
as agressões físicas que redundam em mortes nos estádios,
nas ruas, nas estações do metrô, nos pontos de ônibus,
enfim, onde a maledicência e a estupidez humana possam alcançar.
É como se o simples resultado de um espetáculo futebolístico
fosse uma questão de vida ou morte. Infelizmente, sabemos todos
que, para o torcedor de índole malévola, o resultado final
do jogo é mesmo uma questão de vida ou morte. Nesse caso,
somente a psicanálise profunda poderia explicar com mais precisão
os motivos desses desvios comportamentais, das desordens mentais e emocionais,
das neuroses e psicoses que levam uma pessoa a assassinar outra, especialmente
em um lugar público, de diversão, porque seu time perdeu.
Dizer, por exemplo, que o torcedor reproduz nos estádios a violência
cotidiana da sociedade é parcialmente verdade. É o óbvio
ululante e, como tal, não explica nada. O sentimento de ódio
(esta é a palavra exata) que o torcedor e as torcidas organizadas
levam para os estádios tem, conscientemente ou não, grande
estímulo de boa parte da imprensa esportiva que disputa audiência
a qualquer preço. São profissionais que fazem do sensacionalismo
e da linguagem bélica no futebol sua marca registrada, com algumas
exceções, é claro. Quase sempre os grandes clássicos
são alimentados por esses cidadãos que têm o microfone
ou a caneta nas mãos. São os formadores de opinião
pública. Com uma semana de antecedência eles falam do jogo
com termos como "a guerra", "a batalha", "a luta",
"o combate" etc. As duas equipes, por exemplo, Corinthians e
Palmeiras, passam a ser para essa imprensa não adversários
de um espetáculo esportivo, mas inimigos em uma guerra. O que lemos
e vemos é todo um discurso belicoso a aumentar a tensão
entre as torcidas, a acirrar os ânimos entre os "inimigos"
que se enfrentarão nessa guerra programada para as atividades lúdicas
do torcedor.
É assim que o comportamento individual, mas especialmente o comportamento
coletivo tornam-se extremamente perigosos à ordem social. Nessas
condições, o que era para ser um espetáculo de competição
esportiva, de diversão para o grande público, pode transformar-se
em uma terrível e sinistra batalha campal. Há muitos exemplos
a ser citados, mas quero lembrar apenas o caso de um adolescente torcedor
do São Paulo Futebol Clube, que foi brutalmente assassinado a pauladas
por seus "inimigos" palmeirenses, diante de uma multidão
atônita, perplexa e impotente para evitar a tragédia. Nessa
ocasião, o Estádio do Pacaembu transformou-se realmente
em uma praça de guerra. A polícia acovardou-se diante de
centenas de torcedores (ou de bandidos perigosos?) e o resultado não
poderia ser mais trágico: um adolescente assassinado no próprio
estádio, outro morreria seis dias depois e milhares de pessoas
feridas no corpo e na alma. Traumatizadas.
Acreditar que a desorganização do futebol brasileiro, os
desmandos e as falcatruas fora e dentro do campo sejam co-responsáveis
pela violência nos estádios é bastante discutível,
senão puerilidade. A grande massa de torcedores que vai aos campos
de futebol não acompanha o cotidiano administrativo desse esporte
em nosso país. Se isso realmente acontecesse, a Confederação
Brasileira de Futebol (CBF) e boa parte de suas filiadas teriam recebido
algum tipo de sanção imposta pelo torcedor - desde o boicote
aos jogos e, em atitudes mais extremas, invasões, depredações,
até saques - já em 1982.
Naquele ano, a revista Placar publicou um longo documento denunciando
"a máfia da loteria esportiva". Uma abominável
história de corrupção no futebol brasileiro, envolvendo
125 nomes, entre jogadores, dirigentes, árbitros, técnicos
e outras personalidades. A despeito do grande estardalhaço midiático
na época, essa mesma grande massa a que me refiro não tomou
conhecimento das bandalheiras em nosso futebol. Permaneceu indiferente
ao que estava acontecendo. É preciso dizer rigorosamente a verdade:
ela só tem interesse exclusivo no desempenho de seu time dentro
do campo. As outras questões são periféricas e desimportantes.
No dia seguinte ao resultado do jogo, com os ânimos ainda acirrados,
o que conta mesmo é a vitória. Entre os torcedores nas fábricas,
escritórios, construções, enfim, nos locais de trabalho,
escolas e outros pontos de concentração coletiva, o vitorioso
sente-se orgulhoso de seu time. Em alguns casos, até ironiza o
perdedor. Esse comportamento talvez seja o mais corriqueiro na cultura
do futebol em nosso país. Para boa parte dos torcedores, não
basta seu time vencer. Esse prazer é parcial. Seu desejo mórbido
e prepotente só atinge a plenitude depois de tripudiar sobre o
perdedor que, combalido pela derrota (e justamente por isso), tem os nervos
à flor da pele, pronto para reagir às chacotas. O comportamento
é visto como uma tentativa de humilhação do "inimigo".
Nesse instante, o perdedor sente-se desrespeitado e desonrado. É
aqui que muitas vezes a irracionalidade e a paixão pelo time fazem
aflorar a violência física com toda força.
Considero que os aspectos até aqui mencionados nada têm a
ver com a terrível corrosão do caráter nacional,
especialmente por parte dos políticos. São muitos os casos
e quase todos eles publicamente conhecidos. Não creio que a bandalheira
do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional, das Assembléias
Legislativas estaduais e das Câmaras Municipais de vereadores (salvaguardem-se
as exceções, evidentemente) possa ter importância
significativa sobre a violência em nosso futebol. Sempre houve políticos
corruptos na história de nosso país. No entanto, nunca houve
tanta violência dentro e fora dos gramados como vemos hoje. Na verdade,
vivemos uma grande contradição que precisa ser mais bem
estudada.
Neste artigo não há espaço para se analisar com detalhes,
mas ocorre o seguinte: à medida que avançam e se aprimoram
os princípios e a prática da cidadania em nossa sociedade,
ironicamente ocorre também a corrosão do caráter
nacional de forma generalizada, mas capitaneada pela maledicência
dos incorrigíveis políticos corruptos. Ainda têm força
nas relações sociais o "jeitinho brasileiro" e
a ambição de sempre levar vantagem em qualquer situação.
Esses aspectos sim, aliados à corrupção de nossas
autoridades, são de fato os grandes problemas que nos atingem e
afligem a todos.
Waldenyr Caldas
é professor de cultura brasileira na Escola de Comunicações
e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP)
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Violência pacificada
por Luiz Gonzaga
Belluzzo*
Respeito muito a atuação
do esporte em geral, do futebol em particular, na sociedade contemporânea.
Ao mesmo tempo em que ele desempenha o papel de simular uma disputa, uma
luta, ele disciplina a violência. O jogo com a bola é muito
antigo. O futebol, tal como existe hoje, é um produto do século
19, nascido na Inglaterra como um esporte popular jogado com o pé,
em seguida encampado pelas escolas públicas inglesas, onde se desenvolveu
com o rúgbi. Hoje em dia, o fato de o futebol ter regras, muito
claras inclusive, é o que o torna um esporte atraente. Mas isso
não impede as explosões de violência. O futebol contém
dentro de si a violência, uma violência pacificada, digamos
assim, disciplinada, mas que pode explodir a qualquer momento porque pode
sair dos limites que as regras impõem. E os torcedores muitas vezes
se comportam como os freqüentadores do circo romano, que se dividiam
entre os verdes e os azuis, e levavam a disputa para fora do espetáculo,
o que acabava se transformando num conflito.
O esporte moderno tem a função de pacificar e disciplinar
a luta, mas é uma forma de sublimação. A linha divisória
entre o jogo disciplinado, ordenado pelas regras, e a perda de controle
é muito tênue e freqüentemente violada.
Entre a prática, o jogador e o espectador há uma relação
muito complexa que envolve êxtase, por um lado, mas muitas vezes
implica também ódio, sobretudo quando o jogador tem um mau
desempenho. É muito freqüente que se passe da admiração
quase absoluta e irracional de um ídolo para o ódio e a
rejeição. E isso tem uma função psicológica
muito importante porque de certa forma vejo os espectadores do futebol
concentrando ali mais esperança do que o esporte pode realmente
dar conta. O que torna a dinâmica toda também uma simulação
da luta pela vida e da superação dos obstáculos,
e com todos os efeitos e conseqüências: a vitória leva
à euforia e à auto-satisfação; e a derrota,
à frustração. Isso está se intensificando
à medida que o futebol vai se tornando um esporte universal - atualmente
o único espetáculo universal. O futebol sofreu transformações
importantíssimas de significados para a sociedade. Ainda peguei
um tempo em que as torcidas se misturavam. Havia a disputa, a rivalidade,
havia até mesmo a fruição da derrota do outro - a
famosa gozação -, mas isso não atingia os níveis
de agressividade de hoje. O escritor italiano Umberto Eco diz que detesta
futebol porque não consegue compreender como dois grupos podem
se desentender a tal ponto por conta de uma bola. Mas isso é subestimar
um pouco a importância que o futebol tem na moldagem das emoções.
A agressividade que vemos com freqüência não tem a ver
propriamente com o futebol, mas sim com essa situação da
sociedade na qual a violência está pacificada. O pensador
Norbert Elias [autor de O Processo Civilizador, Jorge Zahar Editor, 1995,
entre outros livros] até diz que não se admira que haja
tanta violência, mas sim que haja tão pouca. Isso porque
a sociedade criou hábitos e convicções mais profundas
a respeito de como deve ser o comportamento, mas, normalmente, diz Elias,
o comportamento humano é, na origem, agressivo e violento.
Quando acontecem certas coisas no futebol - que são contemporizadas
sob o argumento de que "no campo pode" -, o que vemos é
uma movimentação num espaço no qual a agressividade
está prestes a explodir. Uma agressividade contida no cotidiano
flui num espaço no qual é possível violar regras.
No futebol, a violação das regras faz parte do jogo. E,
desde que o sujeito não seja punido - e mais, seja bem-sucedido
-, ele é celebrado. É como a "mão de Deus",
do Maradona [gol feito com a mão por Diego Maradona que classificou
a Argentina para as semifinais da Copa do México em 1986]. Ou seja,
coisas como simular um pênalti ou conseguir fazer uma falta sem
que ninguém perceba são admitidas como pertencentes ao próprio
espírito do jogo. Diante disso, quando jogadores se agridem verbalmente
em campo e, minutos depois, dizem nas entrevistas que não brigaram
de verdade, quase sempre essa resposta vem acompanhada da frase: "Isso
é coisa do futebol". Ou seja, esse tipo de violação
- que, por sua vez, está no limite de derrogar todas as regras
normais de convivência - é tolerada no futebol.
De fato, existe uma contradição, nesse que é o esporte
mais popular do mundo, que o coloca como uma simulação da
violência, mas ao mesmo tempo como uma emulação catártica.
E as opiniões se dividem. Afinal, há os que consideram a
prática educativa, por conter aspectos de socialização,
tendo em vista que é coletivo. Mas, ao mesmo tempo, ele é
o que mais desperta esse impulso à valorização do
indivíduo. E muitos não entendem essa dualidade do futebol.
Por exemplo, quando analisamos o comportamento dos envolvidos dentro e
fora de campo, chegamos ainda a outras contradições. É
a imagem do jogador racista que, na verdade, não é um cidadão
racista. Nós tivemos dois casos famosos: o do jogador argentino
Leandro Desábato, que, no ano passado, se aproximou do brasileiro
Grafite e proferiu palavras de cunho racista, e mais recentemente o do
zagueiro do Juventude, Antônio Carlos, que inclusive foi suspenso
por agredir Jeovânio, do Grêmio. Em ambos os casos, o racismo
foi superficial. Não é o caso de afirmar que Antônio
Carlos seja racista, até porque ele mesmo disse - quando demonstrou
se dar conta da bobagem que havia feito - que é amigo de uma porção
de jogadores negros. Isso tem mais a ver com a situação
dentro de campo do que com uma opinião consolidada dele sobre as
questões raciais.
O mesmo vale para outros tipos de violência, que são muito
freqüentes. Há muitos casos de Dr. Jekill e Mr. Hyde [personagens
do famoso romance O Médico e o Monstro, do inglês Robert
Louis Stevenson, no qual o pacato e gentil doutor Jekill se transformava
no selvagem e violento senhor Hyde]. Um grande exemplo é o do jogador
Edmundo que, quando mais jovem - agora parece que sossegou -, dava o que
falar ao agredir adversários, companheiros de time, enfim, se descontrolava.
Eu conheci o jogador, fora de campo ele era um sujeito mais que razoável,
tem uma inteligência acima da média e conversava com grande
desenvoltura. Posso até citar meu próprio exemplo: joguei
muito futebol na vida e dentro de campo eu virava bicho. Brigava com os
companheiros, dava cotovelada, era terrível. Conheço vários
casos desses, pessoas pacíficas e gentis que a disputa transforma
em jogadores violentos. Ocorre que o jogo provoca isso. Podemos chamar
de falta de espírito esportivo, de um lado, e de descuido na vigilância
sobre a violência pacificada, de outro.
Por fim, vale lembrar ainda que a sociedade brasileira tende a celebrar
um pouco o indivíduo que se utiliza de certo ardil na solução
das situações. Um "jeitinho" de tentar violar
as regras suavemente, que não é admitido em outros países.
Esse comportamento é mais típico de uma sociedade na qual
o respeito à lei não é muito valorizado. No Brasil
existe o fenômeno cultural da valorização do violador,
do que leva vantagem. E no futebol isso se traduz naquele jogador que
acha que é legal enganar o juiz. Mas, no caso de outras sociedades,
com mais tradição de respeito à lei, isso ocorre
menos, tanto dentro quanto fora de campo.
*Excertos de depoimento
concedido com exclusividade à Revista E.
Luiz Gonzaga Belluzzo
é economista
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