Psicanálise
no divã
por Renato Mezan
O psicanalista
e professor titular da Pontifícia Universidade Católica
(PUC) de São Paulo Renato Mezan é autor de diversos livros
sobre psicanálise - e o seu reflexo em diferentes áreas
do conhecimento humano. Em Freud Pensador da Cultura (Companhia das Letras,
2006) - publicado originalmente em 1985 -, Mezan expõe a relação
entre o neurologista austríaco Sigmund Freud, fundador da psicanálise,
e a cultura, retratando o ambiente em que o médico nasceu e viveu.
Em conversa com o Conselho Editorial da Revista E, o professor falou sobre
a importância da psicanálise para a compreensão da
infância e da adolescência como fenômenos sociais, e
sobre desejos que regem inconscientemente as ações, impulsos
e até mesmo a criatividade artística. A seguir, trechos:
A relação
entre a psicanálise e a cultura é um assunto que já
abordei diversas vezes, porque me parece algo muito importante. Freud
desenvolve seus conceitos e idéias a partir da experiência
clínica, ou seja, baseado no que os pacientes lhe diziam e na sua
análise disso. Logo no começo, ele se deu conta de que o
que os pacientes falam não é muito diferente do que se encontra
na literatura, no teatro, na poesia, nas obras de arte. Soma-se a isso
o fato de que Freud era um homem do século 19, época dos
romances realistas e psicológicos, que no fundo são relatos
de vidas humanas. Por isso encontramos neles situações de
amor, ódio, afeto, cólera, inveja, rivalidade, ambição
etc. Outro grande fornecedor desse tipo de material é William Shakespeare,
a ponto de o crítico norte-americano Harold Bloom ter dito que
o autor inglês é o "inventor do humano".
Pois bem, Freud começa a analisar contos, romances e peças
de teatro, como Hamlet, Édipo Rei, e se dá conta de que
é possível utilizar, para explicar as noções
da psicanálise, elementos mais familiares a seus leitores do que
os segredos íntimos desvendados em seu consultório. Na Europa
daquela época, todos os que podiam ir a um teatro tinham ouvido
falar de Hamlet e de Édipo. Se seu estudo fosse no Brasil de hoje,
Freud abordaria outro fenômeno popular, alguma coisa que fizesse
parte do repertório do público, como as novelas.
Atos
falhos e desejos secretos
Em um primeiro
momento, ele utiliza as noções da psicanálise - o
complexo de Édipo, o inconsciente, a sexualidade etc. - para compreender
as peripécias, o enredo e as aventuras dos personagens literários.
Basicamente é isso. Depois, dá um passo além e se
pergunta sobre os mecanismos da criação artística,
utilizando noções como a de sublimação. A
idéia é que, quando um criador - seja pintor, seja poeta
ou cineasta - imagina alguma coisa na sua área específica
de atividade, coloca em suas obras as próprias fantasias inconscientes.
É uma forma de expressar e, como Freud dizia, de sublimar essas
fantasias, que deixam nas obras marcas a partir das quais é possível
deduzi-las. Claro que isso precisa ser feito com sutileza e cuidado, porque,
se não, quando se vê uma cena de batalha pode-se criar a
hipótese de que o pintor queria matar o pai, e, como não
pôde enfiar a faca nele, representou isso com a cena de luta. E
não é desse tipo de bobagem que estamos falando. Com um
pouco mais de sutileza e sofisticação, pode-se chegar à
conclusão de que ele queria, sim, matar o pai, mas esse desejo
não está expresso na cena de batalha em si. Deverá
haver algum detalhe, alguma coisa que chame a atenção, algo
dissonante, que nos ponha na trilha do inconsciente. É assim que
funciona a psicanálise: raciocinando a partir de pistas e construindo
uma hipótese sobre o conflito inconsciente.
Do ponto de vista psicanalítico, os impulsos, desejos e fantasias
que todos nós abrigamos buscam se expressar. Podem se expressar
de forma mais equilibrada ou de forma mais inopinada e explosiva, como
quando cometemos um ato falho: derrubamos o copo de água, esquecemos
a chave, perdemos os óculos, pomos no correio uma carta ou mandamos
um e-mail para uma pessoa a quem jamais deveríamos tê-los
mandado, esquecemos a cueca suja de batom da outra em cima da cama - fazemos
alguma coisa desastrada, que parece ir justamente contra a intenção
consciente. Mas na verdade, dizia Freud, isso acontece porque havia no
inconsciente uma outra tendência, que queria fazer exatamente aquilo.
Por culpa, por exemplo. Como o sujeito que trai a mulher e se sente culpado,
então dá um jeito de conseguir uma punição.
É como o criminoso que deixa rastros.
A psicanálise e os fenômenos sociais
A influência
da psicanálise na vida de quem passou por uma análise ou
por uma terapia é grande, mas não é isso que faz
a psicanálise importante. O que a torna importante é sua
influência sobre a cultura, sobretudo por ter mudado nossa maneira
de encarar a infância. Se existem hoje a infância e a adolescência
como fenômenos sociais, isso se deve em parte às descobertas
da psicanálise e aos efeitos que ela teve sobre a maneira como
as crianças são educadas. Tenho um filho de 10 anos e uma
filha de 7, e eles nunca ouviram falar na cegonha. A ponto de, quando
em um desenho animado aparece uma cegonha com um bebê, eles perguntarem
o que a cegonha está fazendo. A cegonha se tornou misteriosa, enquanto
há 50 anos o extraordinário seria uma criança que
soubesse sobre os fatos sexuais. Um dia, durante o café da manhã,
minha filha me perguntou o que acontece quando uma menina beija outra
na boca. Eu falei que não acontece nada. Então, ela me indagou
como isso se chama. Eu falei que, se elas forem namoradas, dizemos que
são lésbicas, e, se for entre homens, chamamos de gays.
Não disse isso porque sou um psicanalista particularmente ilustrado,
mas porque se tornou parte do senso comum que não se deve mentir
às crianças sobre esses assuntos, e sim tratá-los
com franqueza, dentro do que elas podem compreender. Se a sua filha perguntasse
a mesma coisa, você não iria dizer que é pecado, que
quem beija na boca vai para o inferno ou que Satanás vai pegá-la
à noite, que vai ficar doente etc. As relações pessoais
e familiares, o papel do homem e da mulher sofreram transformações
que se refletem na forma como as pessoas vêem a si mesmas, e a psicanálise
faz parte desse movimento.
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