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Encontros

Postado em 01/06/2006

Revista Junho - 2006
Psicanálise no divã

por Renato Mezan

O psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo Renato Mezan é autor de diversos livros sobre psicanálise - e o seu reflexo em diferentes áreas do conhecimento humano. Em Freud Pensador da Cultura (Companhia das Letras, 2006) - publicado originalmente em 1985 -, Mezan expõe a relação entre o neurologista austríaco Sigmund Freud, fundador da psicanálise, e a cultura, retratando o ambiente em que o médico nasceu e viveu. Em conversa com o Conselho Editorial da Revista E, o professor falou sobre a importância da psicanálise para a compreensão da infância e da adolescência como fenômenos sociais, e sobre desejos que regem inconscientemente as ações, impulsos e até mesmo a criatividade artística. A seguir, trechos:

A relação entre a psicanálise e a cultura é um assunto que já abordei diversas vezes, porque me parece algo muito importante. Freud desenvolve seus conceitos e idéias a partir da experiência clínica, ou seja, baseado no que os pacientes lhe diziam e na sua análise disso. Logo no começo, ele se deu conta de que o que os pacientes falam não é muito diferente do que se encontra na literatura, no teatro, na poesia, nas obras de arte. Soma-se a isso o fato de que Freud era um homem do século 19, época dos romances realistas e psicológicos, que no fundo são relatos de vidas humanas. Por isso encontramos neles situações de amor, ódio, afeto, cólera, inveja, rivalidade, ambição etc. Outro grande fornecedor desse tipo de material é William Shakespeare, a ponto de o crítico norte-americano Harold Bloom ter dito que o autor inglês é o "inventor do humano".

Pois bem, Freud começa a analisar contos, romances e peças de teatro, como Hamlet, Édipo Rei, e se dá conta de que é possível utilizar, para explicar as noções da psicanálise, elementos mais familiares a seus leitores do que os segredos íntimos desvendados em seu consultório. Na Europa daquela época, todos os que podiam ir a um teatro tinham ouvido falar de Hamlet e de Édipo. Se seu estudo fosse no Brasil de hoje, Freud abordaria outro fenômeno popular, alguma coisa que fizesse parte do repertório do público, como as novelas.


Atos falhos e desejos secretos
Em um primeiro momento, ele utiliza as noções da psicanálise - o complexo de Édipo, o inconsciente, a sexualidade etc. - para compreender as peripécias, o enredo e as aventuras dos personagens literários. Basicamente é isso. Depois, dá um passo além e se pergunta sobre os mecanismos da criação artística, utilizando noções como a de sublimação. A idéia é que, quando um criador - seja pintor, seja poeta ou cineasta - imagina alguma coisa na sua área específica de atividade, coloca em suas obras as próprias fantasias inconscientes. É uma forma de expressar e, como Freud dizia, de sublimar essas fantasias, que deixam nas obras marcas a partir das quais é possível deduzi-las. Claro que isso precisa ser feito com sutileza e cuidado, porque, se não, quando se vê uma cena de batalha pode-se criar a hipótese de que o pintor queria matar o pai, e, como não pôde enfiar a faca nele, representou isso com a cena de luta. E não é desse tipo de bobagem que estamos falando. Com um pouco mais de sutileza e sofisticação, pode-se chegar à conclusão de que ele queria, sim, matar o pai, mas esse desejo não está expresso na cena de batalha em si. Deverá haver algum detalhe, alguma coisa que chame a atenção, algo dissonante, que nos ponha na trilha do inconsciente. É assim que funciona a psicanálise: raciocinando a partir de pistas e construindo uma hipótese sobre o conflito inconsciente.

Do ponto de vista psicanalítico, os impulsos, desejos e fantasias que todos nós abrigamos buscam se expressar. Podem se expressar de forma mais equilibrada ou de forma mais inopinada e explosiva, como quando cometemos um ato falho: derrubamos o copo de água, esquecemos a chave, perdemos os óculos, pomos no correio uma carta ou mandamos um e-mail para uma pessoa a quem jamais deveríamos tê-los mandado, esquecemos a cueca suja de batom da outra em cima da cama - fazemos alguma coisa desastrada, que parece ir justamente contra a intenção consciente. Mas na verdade, dizia Freud, isso acontece porque havia no inconsciente uma outra tendência, que queria fazer exatamente aquilo. Por culpa, por exemplo. Como o sujeito que trai a mulher e se sente culpado, então dá um jeito de conseguir uma punição. É como o criminoso que deixa rastros.


A psicanálise e os fenômenos sociais
A influência da psicanálise na vida de quem passou por uma análise ou por uma terapia é grande, mas não é isso que faz a psicanálise importante. O que a torna importante é sua influência sobre a cultura, sobretudo por ter mudado nossa maneira de encarar a infância. Se existem hoje a infância e a adolescência como fenômenos sociais, isso se deve em parte às descobertas da psicanálise e aos efeitos que ela teve sobre a maneira como as crianças são educadas. Tenho um filho de 10 anos e uma filha de 7, e eles nunca ouviram falar na cegonha. A ponto de, quando em um desenho animado aparece uma cegonha com um bebê, eles perguntarem o que a cegonha está fazendo. A cegonha se tornou misteriosa, enquanto há 50 anos o extraordinário seria uma criança que soubesse sobre os fatos sexuais. Um dia, durante o café da manhã, minha filha me perguntou o que acontece quando uma menina beija outra na boca. Eu falei que não acontece nada. Então, ela me indagou como isso se chama. Eu falei que, se elas forem namoradas, dizemos que são lésbicas, e, se for entre homens, chamamos de gays. Não disse isso porque sou um psicanalista particularmente ilustrado, mas porque se tornou parte do senso comum que não se deve mentir às crianças sobre esses assuntos, e sim tratá-los com franqueza, dentro do que elas podem compreender. Se a sua filha perguntasse a mesma coisa, você não iria dizer que é pecado, que quem beija na boca vai para o inferno ou que Satanás vai pegá-la à noite, que vai ficar doente etc. As relações pessoais e familiares, o papel do homem e da mulher sofreram transformações que se refletem na forma como as pessoas vêem a si mesmas, e a psicanálise faz parte desse movimento.



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