Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Depoimentos

 

 

Além da estética

por Sebastião Milaré

Em depoimento exclusivo à Revista E, o crítico de teatro fala da série de espetáculos produzidos pelo Centro de Pesquisa Teatral (CPT) de Antunes Filho


O crítico e pesquisador de teatro Sebastião Milaré é também diretor da Divisão de Artes Cênicas e Música do Centro Cultural São Paulo e autor do livro Antunes Filho e a Dimensão Utópica (Perspectiva, 1994). Autor do roteiro da minissérie O Teatro Segundo Antunes Filho, com direção de Amílcar Claro, exibida pela antiga STV, atual SescTV, Milaré acompanha a obra de Antunes desde seus primeiros espetáculos. "A primeira peça dele a que assisti foi Yerma, em 1962. Lembro-me que foi uma revelação imensa", diz. O crítico está agora na fase final de seu mais recente trabalho, o livro Hierofania, no qual teoriza e descreve o método de atuação desenvolvido por Antunes Filho no Centro de Pesquisa Teatral (CPT), que o diretor coordena no Sesc Consolação desde 1982.

As jornadas de Prêt-à-Porter, iniciadas em 1998, consolidaram uma escola teatral, fruto das pesquisas de Antunes Filho no CPT-Sesc. A influência dessa escola vem se manifestando em espetáculos econômicos, baseados no trabalho dos intérpretes e na linguagem naturalista. Ou no "falso naturalismo", como diz Antunes. Falso porque o ator trabalha com a sensibilidade da emoção e não com a própria emoção, como na técnica naturalista usual. E falso por ser realismo, já que elaborado através de sínteses.

Prêt-à-Porter nasceu exercício de classe, espaço em que dois atores unem os procedimentos técnicos do método Antunes Filho e, servindo-se da sensibilidade, da imaginação e da intuição, criam a cena. Elegem o tema e na ação criativa estabelecem novo conceito de dramaturgia, que inclui o silêncio, o não dito e o inverbalizável como elementos narrativos.

Os espetáculos de Prêt-à-Porter compõem-se de três cenas, realizadas em espaços não convencionais, com luz natural e cenário improvisado. De início, os atores expunham a gênese dos personagens e, depois da apresentação, dialogavam com a platéia, de modo a tornar acessível à compreensão do espectador o processo criativo do CPT. Com o tempo, sendo as cenas renovadas a cada ano, o aspecto didático da apresentação reduziu-se a quase nada e as próprias cenas foram se impondo como pequenas obras autônomas, que se autodefinem.

A afluência do público, que nos últimos oito anos lota as apresentações de Prêt-à-Porter, é eloqüente atestado do poder de comunicação dessa escola interpretativa. Nada mais natural, portanto, do que a influência que passou a exercer especialmente sobre jovens profissionais do palco.


Paralelos e aproximações
Não se pode, é verdade, consignar a qualquer espetáculo naturalista na forma e materialmente econômico a influência direta de Prêt-à-Porter. Mas a influência existe por ser essa nova teatralidade um paradigma, um pensamento estético que dispensa excesso narrativo, seja do ponto de vista dos elementos da fábula, com absoluta valorização da "realidade implícita", seja pelos cenários e elementos cênicos improvisados, que visam apenas a apoiar a ação dramática.
Há exemplos de encenações, anteriores a Prêt-à-Porter, baseadas no naturalismo e realizadas em espaços não convencionais. Lembro, por exemplo, os espetáculos de Celina Sodré, no Rio de Janeiro. Suas pesquisas se aprofundavam nas teorias de Stanislavsky, mesma fonte de que se serviu Antunes Filho. Mas, além de preservar a emoção como matéria-prima, o espetáculo da senhora Sodré mantinha a "quarta parede", dependia de cenografia realista e da iluminação cênica para criar a ilusão da realidade. Outro digno exemplo é um grupo de alunos de Celina Sodré, dirigido por Ivan Sugahara, que em 1995 apresentou peça baseada em obra de Dostoievsky em um quarto do apartamento do diretor.

Apesar das aparentes semelhanças e da fonte comum das pesquisas, as diferenças de suas concepções são imensas. A encenadora carioca mantém preceitos stanislavskianos, que propõem a emoção e o sentimento como matéria-prima, ao passo que Antunes estabeleceu o afastamento ator/personagem como princípio básico da ação dramática. A "quarta parede", preservada nas encenações da senhora Sodré, é posta abaixo em Prêt-à-Porter já pela postura do ator, que entra em cena como ele mesmo e diante do público "vira" o personagem; e abandona o personagem aos olhos do público, assim que alguém fora de cena diz "ok", dando fim à peça.

O rigor conceitual que marca a presença de Prêt-à-Porter no panorama contemporâneo (não só do Brasil, pois suas apresentações no Mayo Teatral da Casa de las Americas, em Havana, Cuba, causaram forte impressão a artistas de vários países) expõe nova ideologia teatral, que ensejou novo sistema, ou método.

Sem dúvida, as jornadas de Prêt-à-Porter abriram fronteiras. Novamente recorro a um grupo carioca, o Teatro Autônomo, dirigido por Jefferson Miranda, para exemplificar expressões paralelas. Em seus últimos espetáculos, como no Deve Haver Algum Sentido em Mim Que Basta, o grupo abandona o exercício da pura teatralidade, marca do trabalho anterior, voltando-se para um naturalismo, no qual a influência de Prêt-à-Porter me parece óbvia, embora a estrutura do espetáculo e o tratamento cênico observem perspectivas da pesquisa que o grupo desenvolve há uma década e meia, tendo características próprias, as marcas de seus criadores.


O novo paradigma
Sem dúvida, as jornadas de Prêt-à-Porter, com absoluta radicalização da forma e do conteúdo, vêm alargando os horizontes da estética teatral e demonstrando a viabilidade de um teatro de arte com parcos recursos, independente de material cênico (cenografia excessiva, caros equipamentos de luz e som), que muitas vezes inviabiliza a produção para grupos de escassas finanças e nenhum patrocínio.

Mas, antes de ser forma estética, Prêt-à-Porter é uma técnica. Ou, melhor: é a síntese dos procedimentos técnicos do método Antunes Filho. Embora a cena pareça um pedaço da vida, como pede o naturalismo, tudo nela é desenhado pelos atores, que trabalham na ressonância, com absoluto controle dos músculos, nervos e ocorrências cênicas. Isso envolve rigoroso treinamento de corpo e voz, muita leitura, devendo o intérprete colocar-se em processo de individuação, no sentido junguiano, pois o autoconhecimento é uma das principais ferramentas da técnica.

Antes de "influência", Prêt-à-Porter é estímulo à busca de formas que respondam às carências materiais do teatro, mas sem abrir mão da qualidade artística e do poder comunicativo. Em São Paulo, dada a grande quantidade de atores que passaram pelo CPT, não é raro encontrar espetáculos inspirados em Prêt-à-Porter e realizados em condições técnicas mais ou menos adequadas. Mas pelo Brasil todo se alastra essa nova idéia estética, que já conseguiu prestígio intelectual, atestando a condição de novo paradigma que Prêt-à-Porter representa para o nosso teatro.



volta ao início