A
invenção do Brasil
Da história
da alimentação aos gestos do povo, a obra de Câmara
Cascudo descortina um país até então desconhecido
Eis nosso Pedro Álvares
Cabral do folclore: Luís da Câmara Cascudo. Nascido no Rio
Grande do Norte em 1898, ao longo de seus 88 anos de vida tornou-se uma
das maiores autoridades sobre a cultura popular brasileira, com uma obra
extensa e de temática variada. "Câmara Cascudo conseguiu,
no Brasil, dar dignidade aos estudos folclóricos. Ele destruiu
bastante o preconceito que as pessoas tinham da palavra folclore",
afirma o professor e folclorista Clovis Garcia, do Departamento de Artes
Cênicas da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da
Universidade de São Paulo (USP).
O tamanho de sua obra é incerto, como explica Marcos Silva, livre-docente
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da
USP, e organizador do Dicionário Crítico Câmara Cascudo
(Perspectiva, 2006). "O livro, que organizei com a colaboração
de 91 especialistas, contém verbetes sobre 87 obras", diz.
"No entanto, o número linear de livros que ele publicou é
ainda maior, uma vez que, em várias ocasiões, Câmara
Cascudo reagrupou textos anteriormente divulgados num só volume.
Mais que a quantidade, impressiona a qualidade desse percurso marcado,
em larga escala, pela ousadia de temas e abordagens, que falam de alimentação,
cachaça, rede, jangada, gestos etc." Ainda segundo o professor,
um dos fatores que fizeram a grandeza da obra do potiguar foi seu eruditismo.
"Ele pertence a uma geração de intelectuais que se
beneficiava de um notável enciclopedismo, anterior à universidade
moderna, que, no Brasil, se iniciou tardiamente, com a fundação
da USP, em 1934", explica. Essa geração, que incluía
nomes como Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda,
antecipou o caráter interdisciplinar da universidade. Por outro
lado, Câmara Cascudo faz parte do grupo que construiu uma cultura
universitária no Rio Grande do Norte. "Quer pelo estilo de
trabalhar, que incluía pesquisa sistemática, acumulação
de acervo bibliográfico e documental, além das publicações,
quer pela participação direta na ainda mais tardia criação
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em 1956", declara
o professor.
Apesar de ter saído poucas vezes de Natal, para viajar pelo país
ou para visitar lugares importantes na formação cultural
brasileira, como Espanha, Portugal e algumas nações africanas,
manteve contato com outros pesquisadores da área e recebia muitas
notícias sobre seus temas de interesse. "Numa época
em que não existia internet, ele se mantinha bem informado sobre
debates brasileiros e internacionais a respeito de seus campos de estudo",
afirma Marcos Silva.
Cascudo
vem ao mundo
Segundo o jornalista potiguar Vicente Serejo, Cascudo foi uma criança
cercada de cuidados. "(Ele) teve uma infância guardada entre
cuidados exagerados, com ama de companhia, professora particular e proibido
do encanto das ruas", escreveu o jornalista no site Memória
Viva, especializado em personalidades brasileiras. "No verão,
vivia os dias na beira do mar, entre barcos e pescadores, e o inverno
passava no sertão ouvindo vaqueiros e cantadores. Entre espumas
e espinhos sedimentou sua cultura descobridora de homem brasileiro."
Na juventude, o folclorista viu-se dividido entre as carreiras clássicas.
Na dúvida entre direito e medicina, fez um pouco dos dois e não
seguiu nenhum. Na Bahia e no Rio de Janeiro, cursou um pouco de medicina.
Em seguida cursou a Faculdade de Direito do Recife. Sonhava mesmo era
ser jornalista. Como seu pai nessa época era um homem rico, instalou
para Cascudo o jornal A Imprensa. Foi ali que o aspirante a repórter
começou a tomar gosto pela escrita. Inaugurou nesse jornal uma
coluna chamada Bric-à-Brac, na qual seu principal tema era o exercício
do olhar sobre o povo e a cultura de seu estado. A paixão pelo
jornalismo tomou corpo e, de 1939 a 1960, ele publicou artigos nos jornais
A República e Diário de Natal, pela coluna Actas Diurnas,
sobre os mais variados assuntos.
A inclinação para o estudo sistemático do folclore
não veio logo de início. O primeiro livro, Alma Patrícia,
saiu em 1921 e reunia estudos sobre poetas e prosadores natalenses. Cascudo
transitou ainda um pouco mais no terreno da crítica e da ficção,
até chegar à fase de biografias, quando escreveu, entre
outras, a do líder paraguaio Francisco Solano López e do
conde d'Eu, marido da princesa Isabel. Nessa época, recebeu duras
críticas do escritor paulista Mário de Andrade, com quem
trocou inúmeras correspondências ao longo da vida (veja
boxe Ligados pelo Folclore). "Minha convicção
é que você vale muito mais do que já produziu [...].
Vou dar um exemplo de seu descomedimento: a sua monografia sobre o conde
d'Eu. Mas, franqueza, por que você atacou um assunto tão
desimportante, uma figura de homem de nenhum alcance, pra pesquisar tantos
dados e dadinhos sobre ela?!", disse Mário em carta de 1937.
Encontro
popular
Dois anos depois, em 1939, veio finalmente a publicação
de Vaqueiros e Cantadores, obra que amadurece sua relação
com modernistas de São Paulo e de Recife e serve como estopim para
fazer de seu nome uma referência nos estudos sobre cultura popular.
Foi só o começo de uma relação profunda com
a pesquisa folclórica. "Autor de clássicos da cultura
brasileira como o Dicionário do Folclore Brasileiro, Civilização
e Cultura, História da Alimentação no Brasil, ensaísta
da Jangada e da Rede de Dormir; antropólogo das Superstições;
etnólogo dos Costumes; sociólogo do Açúcar;
tradutor de Montaigne e Koster; historiador dos gestos - a obra de Cascudo
é continente e ilha", resume o jornalista Vicente Serejo,
no texto O Centenário do Nascimento de Luís da Câmara
Cascudo, publicado no Memória Viva (veja boxe
Cascudo para crinaças).
A pesquisa do folclorista começava em casa, como relata Daliana
Cascudo, sua neta. "O folclore nacional, que ele gostava de chamar
de cultura popular, estava presente no nosso dia-a-dia. Em casa ele recebia
pescadores, rendeiras, emboladores de coco, dançarinos do bumba-meu-boi
e as mais diversas pessoas possíveis", lembra Daliana, que
hoje está à frente do Memorial Câmara Cascudo, em
Natal. Segundo ela, a residência do folclorista vivia agitada, freqüentada
por amigos que ficavam encantados com sua erudição e seduzidos
por seu carisma, como o musicista Oswaldo de Souza, o pintor Enélio
Petrovich e o advogado Diógenes da Cunha Lima.
Com dezenas de livros, artigos e traduções publicadas, sem
nunca ter mudado de sua Natal para outro centro urbano, Câmara Cascudo
morreu em 30 de julho de 1986, deixando como legado o segundo descobrimento
do Brasil.
Saiba mais:
Vida e obra de Cascudo:
http://www.memoriaviva.digi.com.br/cascudo/
Textos originais de Cascudo:
http://www.memoriaviva.digi.com.br/cascudo/blog/
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Ligados
pelo folclore
Câmara
Cascudo e Mário de Andrade tiveram uma forte amizade, construída
por meio de cartas
 Dois
amantes e estudiosos do folclore brasileiro, Câmara Cascudo
e Mário de Andrade, tendo vivido na mesma época, tinham
de se encontrar - e se encontraram. Responsável pela organização
da correspondência trocada entre eles - são 150 cartas,
de 1924 a 1944 -, o professor e pesquisador Marcos Moraes, do Instituto
de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo (USP),
tem detalhes preciosos dessa relação. "Tudo começou
em 1924, quando Câmara Cascudo publicou no jornal A Imprensa
de Natal o artigo O Sr. Mário de Andrade e enviou o recorte
ao escritor, que respondeu agradecendo e elogiando o 'estilo atual,
vivaz e serelepe' do texto", diz. No ano seguinte, Mário
recebeu livros de Cascudo, entre os quais Histórias Que o
Tempo Leva (1921) e Joio (1924). Foi assim que, desde os primeiros
contatos, eles se afinaram intelectualmente. "Ao buscar uma
expressão literária mais viva, afastando-se das regras
rígidas determinadas pelos clássicos portugueses,
que eram modelo de escrita literária no Brasil antes do modernismo,
Cascudo colaborava no projeto de atualização da língua
literária brasileira, projeto que Mário pregava desde
Paulicéia Desvairada, escrito em 1922", explica Moraes.
O encontro entre os dois só se deu em agosto de 1927, mas
isso não impediu que construíssem uma forte amizade
por meio das cartas, a ponto de Cascudo ter sido requisitado para
colaborar no clássico Macunaíma (1928), de Mário.
"Ora o que eu quero de você é isto: você
tem recolhido lendas e tradições aí do Nordeste.
Meu livro já está escrito, porém tenho ainda
um ano pra matutar sobre ele e modificá-lo à vontade.
Eu queria botar uma lenda aí do Nordeste nele, você
não pode ceder uma que recolheu?", pediu o escritor
paulista. Outro momento marcou a amizade dos dois. Era 1937, Cascudo
via-se em dificuldades financeiras e decidiu recorrer a Mário,
então diretor do Departamento de Cultura de São Paulo,
para conseguir a publicação de seus estudos. "Nessa
ocasião, em uma longa carta, Cascudo encontra pela frente
a dura e talhada crítica de Mário, incitando-o a tomar
a sério o estudo do folclore", diz Moraes. Um dos trechos
da carta dizia assim: "Você precisa um bocado mais descer
dessa rede em que você passa o tempo inteiro lendo até
dormir." Segundo o professor, esse pode ter sido um marco na
carreira de Cascudo. "Talvez essa carta difícil, sincera,
tenha calado fundo no pensamento intelectual de Câmara Cascudo,
guiando-o na concepção de futuras obras. Afinal, a
partir de 1939, começaram a surgir os seus estudos mais importantes
na seara do folclore brasileiro", afirma.
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Cascudo
para crianças
Unidades
do Sesc São Paulo apresentam espetáculos inspirados
na obra do folclorista
O escritor e
folclorista Câmara Cascudo, ao lado de Mário de Andrade,
faz parte do time daqueles que podem ser chamados, com toda propriedade,
de descobridores do Brasil. O olhar atento do potiguar de Natal
sobre a variedade de cores e causos brasileiros resultou numa obra
fundamental para futuros estudos etnográficos e antropológicos
do país. E é esse olhar - e suas revelações
- que serviu de inspiração para dois espetáculos
voltados para o público infantil, em cartaz no Sesc São
Paulo no mês de junho. Casos Cascudos (foto), que fica até
dia 11 na unidade provisória Avenida Paulista, e O Valente
Filho da Burra, com apresentações nos dias 3, 10,
15, 17 e 24 no Teatro Sesc Anchieta, no Consolação.
O primeiro, um espetáculo de bonecos produzido pela Cia.
da Tribo, é baseado em três contos populares do escritor.
"Trabalhamos com cultura popular, que contém diversas
linguagens, e os bonecos compõem uma delas", explica
Wanderley Piras, diretor da companhia. "Eu e Milene [Milene
Perez, também diretora] acreditamos que, para falar de assombrações,
monstros e figuras fantásticas, ninguém melhor do
que o boneco." Sobre a escolha da obra de Cascudo como roteiro
para o espetáculo, Piras destaca a diversidade de informações
que se pode encontrar nela. "Essa riqueza que ele conseguiu
pesquisar e registrar é o mais fascinante em seu trabalho",
afirma o diretor. "Verificado isso, nos pareceu óbvio
que deveríamos trabalhar com o universo imaginário
do medo infantil e tentar dessa forma trazer à tona a sensação
de sentar numa roda com uma fogueira no meio, ouvindo bem baixinho
aquela história que aconteceu à meia-noite na porta
do cemitério, que faz a gente ter arrepio na espinha e frio
na barriga, mas mesmo assim querer continuar escutando até
o fim."
Já O Valente Filho da Burra será levado ao palco em
formato de teatro de sombras pela Cia. Articularte. O espetáculo
narra as aventuras e paixões do Filho da Burra, um menino
agigantado - amamentado e criado por uma burra, daí seu nome
- que enfrenta preconceitos e diversos problemas de sobrevivência
até ir para o fundo da terra, onde entra em contato com seres
estranhos. "Nós vínhamos há algum tempo
querendo nos aprofundar em nossas pesquisas de cultura popular",
conta o diretor Dario Uzam. "Até que deparamos com esse
conto do Câmara Cascudo e notamos que ele tinha tudo a ver
com nosso trabalho, que fala de sabedoria popular." As saídas
encontradas pela Cia. Articularte casam a engenhosidade da narrativa
de Cascudo com a criatividade típica das crianças.
Em cena, alguns galhos secos se transformam numa densa floresta,
enquanto pedaços recortados de papelão viram estalactites
e estalagmites nas profundezas da terra. "O legal é
que as crianças se encarregam de rechear nossas formas em
sua cabeça", diz o diretor. "Se no palco as silhuetas
sugerem, na platéia as crianças continuam a viagem."
Consulte os horários de Casos Cascudos e O Valente Filho
da Burra no Em Cartaz desta edição.
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