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Folclore

Revista Junho - 2006
A invenção do Brasil

Da história da alimentação aos gestos do povo, a obra de Câmara Cascudo descortina um país até então desconhecido

Eis nosso Pedro Álvares Cabral do folclore: Luís da Câmara Cascudo. Nascido no Rio Grande do Norte em 1898, ao longo de seus 88 anos de vida tornou-se uma das maiores autoridades sobre a cultura popular brasileira, com uma obra extensa e de temática variada. "Câmara Cascudo conseguiu, no Brasil, dar dignidade aos estudos folclóricos. Ele destruiu bastante o preconceito que as pessoas tinham da palavra folclore", afirma o professor e folclorista Clovis Garcia, do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da Universidade de São Paulo (USP).

O tamanho de sua obra é incerto, como explica Marcos Silva, livre-docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da USP, e organizador do Dicionário Crítico Câmara Cascudo (Perspectiva, 2006). "O livro, que organizei com a colaboração de 91 especialistas, contém verbetes sobre 87 obras", diz. "No entanto, o número linear de livros que ele publicou é ainda maior, uma vez que, em várias ocasiões, Câmara Cascudo reagrupou textos anteriormente divulgados num só volume. Mais que a quantidade, impressiona a qualidade desse percurso marcado, em larga escala, pela ousadia de temas e abordagens, que falam de alimentação, cachaça, rede, jangada, gestos etc." Ainda segundo o professor, um dos fatores que fizeram a grandeza da obra do potiguar foi seu eruditismo. "Ele pertence a uma geração de intelectuais que se beneficiava de um notável enciclopedismo, anterior à universidade moderna, que, no Brasil, se iniciou tardiamente, com a fundação da USP, em 1934", explica. Essa geração, que incluía nomes como Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda, antecipou o caráter interdisciplinar da universidade. Por outro lado, Câmara Cascudo faz parte do grupo que construiu uma cultura universitária no Rio Grande do Norte. "Quer pelo estilo de trabalhar, que incluía pesquisa sistemática, acumulação de acervo bibliográfico e documental, além das publicações, quer pela participação direta na ainda mais tardia criação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em 1956", declara o professor.

Apesar de ter saído poucas vezes de Natal, para viajar pelo país ou para visitar lugares importantes na formação cultural brasileira, como Espanha, Portugal e algumas nações africanas, manteve contato com outros pesquisadores da área e recebia muitas notícias sobre seus temas de interesse. "Numa época em que não existia internet, ele se mantinha bem informado sobre debates brasileiros e internacionais a respeito de seus campos de estudo", afirma Marcos Silva.


Cascudo vem ao mundo
Segundo o jornalista potiguar Vicente Serejo, Cascudo foi uma criança cercada de cuidados. "(Ele) teve uma infância guardada entre cuidados exagerados, com ama de companhia, professora particular e proibido do encanto das ruas", escreveu o jornalista no site Memória Viva, especializado em personalidades brasileiras. "No verão, vivia os dias na beira do mar, entre barcos e pescadores, e o inverno passava no sertão ouvindo vaqueiros e cantadores. Entre espumas e espinhos sedimentou sua cultura descobridora de homem brasileiro." Na juventude, o folclorista viu-se dividido entre as carreiras clássicas. Na dúvida entre direito e medicina, fez um pouco dos dois e não seguiu nenhum. Na Bahia e no Rio de Janeiro, cursou um pouco de medicina. Em seguida cursou a Faculdade de Direito do Recife. Sonhava mesmo era ser jornalista. Como seu pai nessa época era um homem rico, instalou para Cascudo o jornal A Imprensa. Foi ali que o aspirante a repórter começou a tomar gosto pela escrita. Inaugurou nesse jornal uma coluna chamada Bric-à-Brac, na qual seu principal tema era o exercício do olhar sobre o povo e a cultura de seu estado. A paixão pelo jornalismo tomou corpo e, de 1939 a 1960, ele publicou artigos nos jornais A República e Diário de Natal, pela coluna Actas Diurnas, sobre os mais variados assuntos.

A inclinação para o estudo sistemático do folclore não veio logo de início. O primeiro livro, Alma Patrícia, saiu em 1921 e reunia estudos sobre poetas e prosadores natalenses. Cascudo transitou ainda um pouco mais no terreno da crítica e da ficção, até chegar à fase de biografias, quando escreveu, entre outras, a do líder paraguaio Francisco Solano López e do conde d'Eu, marido da princesa Isabel. Nessa época, recebeu duras críticas do escritor paulista Mário de Andrade, com quem trocou inúmeras correspondências ao longo da vida (veja boxe Ligados pelo Folclore). "Minha convicção é que você vale muito mais do que já produziu [...]. Vou dar um exemplo de seu descomedimento: a sua monografia sobre o conde d'Eu. Mas, franqueza, por que você atacou um assunto tão desimportante, uma figura de homem de nenhum alcance, pra pesquisar tantos dados e dadinhos sobre ela?!", disse Mário em carta de 1937.


Encontro popular
Dois anos depois, em 1939, veio finalmente a publicação de Vaqueiros e Cantadores, obra que amadurece sua relação com modernistas de São Paulo e de Recife e serve como estopim para fazer de seu nome uma referência nos estudos sobre cultura popular. Foi só o começo de uma relação profunda com a pesquisa folclórica. "Autor de clássicos da cultura brasileira como o Dicionário do Folclore Brasileiro, Civilização e Cultura, História da Alimentação no Brasil, ensaísta da Jangada e da Rede de Dormir; antropólogo das Superstições; etnólogo dos Costumes; sociólogo do Açúcar; tradutor de Montaigne e Koster; historiador dos gestos - a obra de Cascudo é continente e ilha", resume o jornalista Vicente Serejo, no texto O Centenário do Nascimento de Luís da Câmara Cascudo, publicado no Memória Viva (veja boxe Cascudo para crinaças).

A pesquisa do folclorista começava em casa, como relata Daliana Cascudo, sua neta. "O folclore nacional, que ele gostava de chamar de cultura popular, estava presente no nosso dia-a-dia. Em casa ele recebia pescadores, rendeiras, emboladores de coco, dançarinos do bumba-meu-boi e as mais diversas pessoas possíveis", lembra Daliana, que hoje está à frente do Memorial Câmara Cascudo, em Natal. Segundo ela, a residência do folclorista vivia agitada, freqüentada por amigos que ficavam encantados com sua erudição e seduzidos por seu carisma, como o musicista Oswaldo de Souza, o pintor Enélio Petrovich e o advogado Diógenes da Cunha Lima.

Com dezenas de livros, artigos e traduções publicadas, sem nunca ter mudado de sua Natal para outro centro urbano, Câmara Cascudo morreu em 30 de julho de 1986, deixando como legado o segundo descobrimento do Brasil.

 

 

Saiba mais:
Vida e obra de Cascudo:
http://www.memoriaviva.digi.com.br/cascudo/
Textos originais de Cascudo:
http://www.memoriaviva.digi.com.br/cascudo/blog/

 

 

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Ligados pelo folclore

Câmara Cascudo e Mário de Andrade tiveram uma forte amizade, construída por meio de cartas

Dois amantes e estudiosos do folclore brasileiro, Câmara Cascudo e Mário de Andrade, tendo vivido na mesma época, tinham de se encontrar - e se encontraram. Responsável pela organização da correspondência trocada entre eles - são 150 cartas, de 1924 a 1944 -, o professor e pesquisador Marcos Moraes, do Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo (USP), tem detalhes preciosos dessa relação. "Tudo começou em 1924, quando Câmara Cascudo publicou no jornal A Imprensa de Natal o artigo O Sr. Mário de Andrade e enviou o recorte ao escritor, que respondeu agradecendo e elogiando o 'estilo atual, vivaz e serelepe' do texto", diz. No ano seguinte, Mário recebeu livros de Cascudo, entre os quais Histórias Que o Tempo Leva (1921) e Joio (1924). Foi assim que, desde os primeiros contatos, eles se afinaram intelectualmente. "Ao buscar uma expressão literária mais viva, afastando-se das regras rígidas determinadas pelos clássicos portugueses, que eram modelo de escrita literária no Brasil antes do modernismo, Cascudo colaborava no projeto de atualização da língua literária brasileira, projeto que Mário pregava desde Paulicéia Desvairada, escrito em 1922", explica Moraes. O encontro entre os dois só se deu em agosto de 1927, mas isso não impediu que construíssem uma forte amizade por meio das cartas, a ponto de Cascudo ter sido requisitado para colaborar no clássico Macunaíma (1928), de Mário. "Ora o que eu quero de você é isto: você tem recolhido lendas e tradições aí do Nordeste. Meu livro já está escrito, porém tenho ainda um ano pra matutar sobre ele e modificá-lo à vontade. Eu queria botar uma lenda aí do Nordeste nele, você não pode ceder uma que recolheu?", pediu o escritor paulista. Outro momento marcou a amizade dos dois. Era 1937, Cascudo via-se em dificuldades financeiras e decidiu recorrer a Mário, então diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, para conseguir a publicação de seus estudos. "Nessa ocasião, em uma longa carta, Cascudo encontra pela frente a dura e talhada crítica de Mário, incitando-o a tomar a sério o estudo do folclore", diz Moraes. Um dos trechos da carta dizia assim: "Você precisa um bocado mais descer dessa rede em que você passa o tempo inteiro lendo até dormir." Segundo o professor, esse pode ter sido um marco na carreira de Cascudo. "Talvez essa carta difícil, sincera, tenha calado fundo no pensamento intelectual de Câmara Cascudo, guiando-o na concepção de futuras obras. Afinal, a partir de 1939, começaram a surgir os seus estudos mais importantes na seara do folclore brasileiro", afirma.

 

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Cascudo para crianças

Unidades do Sesc São Paulo apresentam espetáculos inspirados na obra do folclorista

O escritor e folclorista Câmara Cascudo, ao lado de Mário de Andrade, faz parte do time daqueles que podem ser chamados, com toda propriedade, de descobridores do Brasil. O olhar atento do potiguar de Natal sobre a variedade de cores e causos brasileiros resultou numa obra fundamental para futuros estudos etnográficos e antropológicos do país. E é esse olhar - e suas revelações - que serviu de inspiração para dois espetáculos voltados para o público infantil, em cartaz no Sesc São Paulo no mês de junho. Casos Cascudos (foto), que fica até dia 11 na unidade provisória Avenida Paulista, e O Valente Filho da Burra, com apresentações nos dias 3, 10, 15, 17 e 24 no Teatro Sesc Anchieta, no Consolação. O primeiro, um espetáculo de bonecos produzido pela Cia. da Tribo, é baseado em três contos populares do escritor. "Trabalhamos com cultura popular, que contém diversas linguagens, e os bonecos compõem uma delas", explica Wanderley Piras, diretor da companhia. "Eu e Milene [Milene Perez, também diretora] acreditamos que, para falar de assombrações, monstros e figuras fantásticas, ninguém melhor do que o boneco." Sobre a escolha da obra de Cascudo como roteiro para o espetáculo, Piras destaca a diversidade de informações que se pode encontrar nela. "Essa riqueza que ele conseguiu pesquisar e registrar é o mais fascinante em seu trabalho", afirma o diretor. "Verificado isso, nos pareceu óbvio que deveríamos trabalhar com o universo imaginário do medo infantil e tentar dessa forma trazer à tona a sensação de sentar numa roda com uma fogueira no meio, ouvindo bem baixinho aquela história que aconteceu à meia-noite na porta do cemitério, que faz a gente ter arrepio na espinha e frio na barriga, mas mesmo assim querer continuar escutando até o fim."

Já O Valente Filho da Burra será levado ao palco em formato de teatro de sombras pela Cia. Articularte. O espetáculo narra as aventuras e paixões do Filho da Burra, um menino agigantado - amamentado e criado por uma burra, daí seu nome - que enfrenta preconceitos e diversos problemas de sobrevivência até ir para o fundo da terra, onde entra em contato com seres estranhos. "Nós vínhamos há algum tempo querendo nos aprofundar em nossas pesquisas de cultura popular", conta o diretor Dario Uzam. "Até que deparamos com esse conto do Câmara Cascudo e notamos que ele tinha tudo a ver com nosso trabalho, que fala de sabedoria popular." As saídas encontradas pela Cia. Articularte casam a engenhosidade da narrativa de Cascudo com a criatividade típica das crianças. Em cena, alguns galhos secos se transformam numa densa floresta, enquanto pedaços recortados de papelão viram estalactites e estalagmites nas profundezas da terra. "O legal é que as crianças se encarregam de rechear nossas formas em sua cabeça", diz o diretor. "Se no palco as silhuetas sugerem, na platéia as crianças continuam a viagem."

Consulte os horários de Casos Cascudos e O Valente Filho da Burra no Em Cartaz desta edição.

 

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