
O
homem de meia cidade
por Whisner Fraga
ilustrações:
Marcos Garuti
"e uma tróia
perdida no meio da cidade que eu inventei para circular, além do
círculo de giz não passo, porque criei a
cidade contra a cidade, a minha cidadela excluindo a
minimetrópole envergonhada, ilhado, pavorosamente ilhado..."
(Ronaldo Cagiano)
Traição, ela acusa quando eu, volteando um hemisfério
novo, galgando traumas com a astúcia de minha cólera, irrompo
num domínio de geometrias irregulares, bradando agitado: como?,
quando?, e acirramos nossas discórdias, dois amantes luxuriosos,
meu bem, grito, ajoelhado rente à linha, esse marco imaginário
que me impus, margeando prédios como lambesse de longe a chaga
de um ato consumado, sua ressurreição.
(nervosa)2 enfurecida vomitando agonias pelo carril denteado de suas entranhas
férreas, eu: o seu depósito, lixão à mercê
da própria decadência: eu: atalaia avistando emboscadas,
paranóia no encalço da cabeça fraca, de tanto penar,
vaguear, perder-se pelos labirínticos logradouros dessa meia cidade
insana. digo meia porque é o que há, o resto perdi num átimo,
embora os avisos da chegada desse instante fossem exaustivamente excessivos.
ela: ela: ela: é urgente repetir para que algo se estremeça,
mesmo que memória, ou se funda, embargando a fissão iniciada,
quando se deu não havia: preparação, danos assim,
praticamente irreparáveis, não há cursos para eles,
terapias, sempre a justa saia, cueca à mão: foi assim, ela
se foi: helena.
quem ela?, quem de vestido, bruxuleante e ansiosa tez e alva, tons castanhos
de cabelos longos, olhos de me perdoar, quem de você que nós
arrogantes amamos se dois de um mesmo e ainda menos quando eu, tremulando
de dizer proibições a vejo amparada por uma dor que tudo
redime.
perguntem-me de que a morte, quais intrigas vitimaram suas células,
que meandros ou nomenclaturas estavam por trás do estrago e posterior
desintegração, não, sobre isso nada saberei responder,
é assunto inútil. apreciaria falar de seu último
penteado ou mesmo da palavra também derradeira ou dos passos sorriso
sonhos e de coisas práticas saberei precisar apenas o cruzamento
em que tudo se deu, claro a cor do semáforo no instante da perda
ou.
posso ter hoje 40, 50, a tal ponto embrenhado nas insignificâncias
da vida que seria inútil me explicar, tentar no rol das importâncias
ordinárias uma resposta para os que me tomam por louco. por isso
o menos falo, também porque ela me entende o bastante para que
não haja necessidade de acrescer diálogos ao meu cotidiano.
desde então os flashes, a fulguração mais ou menos
tépida daquilo que entretanto jamais nomearia de alucinação.
sei que é ela se insinuando, usando helena como subterfúgio,
mostrando o que teria lá do outro lado, não, minha cara,
eu já sei o que existe em todos os pontos das coordenadas euclidianas.
não se fie nesta ingenuidade arquitetada com cimentos de medo.
chegarei à margem como de costume, estancarei meus passos diante
do cruzamento: pronto: para a revanche, para a sua fúria prestes
a verter venenos ousados, serei a mais sólida vontade, de concreto
e aço, não, desde aquele dia que tenho coragem, enfrentei
heroicamente meu medo, travamos injusta batalha: não venci, não
era para ter triunfos ou derrotas: mas tendo subjugado a mim mesmo, exigiu
meu cérebro um preço e a ele sou fiel até o fim:
e a cidade? a cidade? a cidade? confusa geografia a me cuspir...
há o cruzamento e dizem que de lá, do outro lado, existe
um manancial de maravilhas, que tantas e tão grandes novidades
brotam fossem milagres, mas não me iludo, sei que não me
posso vencer, estender o meu domínio além dessa banda de
cá: venha com prêmios, recompensas, promessas, nada disso
me corromperá.
daí a fúria, o engendramento de inúmeras artimanhas
e, sim, sei o que ela quer e o que quer desconfio que somente eu posso
lhe dar, por isso as novidades, uma vitrine nova, estampando meus livros
preferidos em edições faustosas, mesmo lojas expondo sua
lingerie preferida, esse o ardil que quase pôs tudo a perder, porque
sei da impossibilidade de atravessar, mas saberá assim tão
arraigadamente o meu raciocínio? que desconfio eu dessas coisas
funcionais, da possibilidade do impossível?
desarranjo se em suas ruas, mesmo um terreno, endereço certo, erigiram
um templo, lá onde vertem desesperos em pardos de prece,
percebendo
que essa imponente e pútrida árvore procria seus frutos
robustos, e que as polpas podem nutrir o bom ou o mau e que, aqui, curvo-me
ante uma presença incerta, auferindo os grãos de uma ceifa
aleatória, o que lhe fiz?, concordando que praguejar não
me trará de volta,
protelando golpes em um deus de cerâmica, ou o barro covarde com
o qual me tramaram, ambos mesma matéria, puto, extravaso: por que
helena?,
por fim os flashes. que perfídias rondam a sua vontade para descer
a tanto? dos seus tijolos ela expele um jato que em muito se assemelha
àquela que se foi, helena, mesmo em poses sensuais num canto de
muro, outrora implorando (sim, ela fala) que vá ao seu encontro:
ela sempre do outro lado, da metade que já não conheço
a não ser de uma visão breve, sem entretanto de pisar ou
apalpar.
é verdade, todos os dias vou até lá, rotina que devo
seguir à risca, outro resquício da minha luta, helena: a
cidade percebe tudo, estou sujo até os ossos do seu encalço;
e ela pode de mim tentar o que quiser: não vou ceder, sei da impossibilidade
de lhe entregar o que deseja, sei contudo e também que não
há muito mais o que suportar além da certeza que ladra ao
lado da ânsia que experimento ao pensar que posso colocar tudo a
perder e para isso basta um aceno seu, feito de segredo nosso, de modo
que ninguém (?) mais compartilha, quem sabe o demônio?, ou
o meu fim, não fosse o que se tornou agora a minha mente, um antro
de impossibilidades arrasando o que antes era apenas vôo. todavia
tornou-se mais: uma furna de novidades, onde talvez a sua reencarnação
ou, para ser mais exato, a sua literal concretização: ela,
me diz que você, helena, tornou-se concreto, espalha-se por muros,
prédios, lares e então devo ceder, ousar o passo a mais
ou que cresçam novamente as asas e que elas, sim, me conduzam.
ela que inerte em seu caixão implora uma visita que anseio por
fazer, um assunto que retomaremos, resolvendo assim o que de fato, a não
ser, sim, truque, quiçá um exército com armas avançadas,
cada soldado a ousar uma pontaria apurada, porque ela, compreendo, me
quer a seu lado e então meu medo de retornar ao que de mais puro,
não haveria temor se simples o final, e um encontro planejado descerraríamos
os instintos de uma dura sobrevivência, amparados pelos vícios
do amor canhestro, mas a dúvida, o que ela deseja, helena?, por
que eu?, de fé abaulada que em rodopios me faz pensar o que de
deus para a mágoa que retomo a cada instante redobrada, servo revoltado
com pagamento injusto, que tanto me dediquei que mereço semelhante
recompensa?, tento o cérebro para uma guerra iníqua, a ferrugem
tragando meus fuzis, o que de maldito naquele carro que desobedeceu um
sinal correto, ajustado por leis eletrodinâmicas, trafegando deliberadamente
na linha de seu peito, quando ela para mim, o que de culpa, corria voluptuosa
adensando sorrisos numa face que era minha remissão, percebi que
jamais, palavra fundida, eu-jamais, o corvo a repetir, entoando cantos
irônicos, eu-humilhado, eu-torpe, eu-tudo exceto você.
quem para atender ao chamado?, recorrer às garras que mesmo de
unhas horrendas sabe acarinhar?
você é a cidade, helena?, e o que me resta?
o que desejam?
mesmo assim, tão rígido e frio, quereria-os (cimentos e
tijolos) como colo para mim.
aí reside a minha fragilidade e então preciso de uma vontade
tesa para não deliberar ultrapassado o querer anterior saindo em
debandada contra a decisão que tomei: não ser o que sei,
poderia me tornar hoje.
ela joga sabiamente comigo, maneja as peças com experiência
secular: saberemos disso quando, helena, eu sair em disparada rumo ao
seu regaço
(ou)
disfarçar com um grito o estampido rouco de um disparo à
queima-roupa
(e)
aqui do quarto, bairro, cidade?, espírito engolfado, vejo-me confinar
em suas vísceras, ingênuo, recluso em um lar que não
passa de uma fração de seu território, o corpo metido
num linho charmoso, tons cinza para (seu?) dia vermelho, linhas delimitando
excluindo agregando passos certeiros moradia definitiva, helena, essa
fatalidade que nos cingiu, agora compreendo o quão vigiado, e que
há um vigor brotando desse fruto novo, empenhados na militância
de uma ciência que me tem como cobaia, irei ao seu encontro, helena,
o mais rápido que puder.
Whisner Fraga é
escritor, autor de Coreografia dos Danados (contos, Edições
Galo Branco, 2002) e A Cidade Devolvida (contos, 7Letras, 2005)
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